Perguntando sobre a sustentabilidade

sexta-feira, 30 de julho de 2010
“De uma maneira ou de outra, somos forçados a tratar com complexos, com “totalidades” ou “sistemas” em todos os campos do conhecimento. Isto implica uma fundamental reorientação do pensamento científico.” Ludwig von Bertalanffy, Teoria Geral dos Sistemas


Não sei aonde, li que existem mais de 30 definições de sustentabilidade. Pesquisando e falando com as pessoas, notei que as opiniões sobre o tema estão mais ou menos divididas por grupos, todos com diferentes matizes ideológicos. O diretor da empresa multinacional tem lá a sua própria idéia do que seja a sustentabilidade. Esta, no entanto, é diferente da visão do ambientalista gestor de projetos ambientais, financiados por grandes instituições internacionais. Também diversa é a posição do pequeno empresário, às voltas com a concorrência dos produtos importados e a alta carga tarifária. Outra percepção ainda é a do prefeito da cidade do interior, empenhado em atrair investimentos para seu pequeno município, a fim de gerar empregos.
Nenhum dos profissionais citados acima discordará que sustentabilidade é “o desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades”, conforme define o Relatório Brundtland, publicado pela ONU em 1987. Todavia, a seu modo cada um julgará mais importante este ou aquele aspecto, necessário para alcançar aquilo que entende como sendo o desenvolvimento sustentado. Todos provavelmente concordarão com o modelo mental dominante do que vem a ser a sustentabilidade: a triple bottom line; algo como “tripla base”, representando a atenção aos aspectos econômicos, ambientais e sociais nas atividades econômicas. Como consequência desta linha de pensamento temos que se todos cuidarem destes três fatores – os aspectos econômicos, ambientais e sociais – em suas empresas, ONGs, governos, etc., as sociedades se tornariam sustentáveis; o todo seria só a soma das partes. O raciocínio, porém, é simplista e esquece uma infinidade de interações que existem na sociedade e que estão fora da jurisdição da ONG, da empresa ou do governo. A consequência deste visão, se fosse possível, é de um mundo formado por enclaves sustentáveis – empresas, projetos de atuação de ONGs e as administrações públicas, entre outros – cercados por um meio social, ambiental e econômico desordenado. A questão que se coloca é como a empresa, a ONG, a administração pública ou qualquer outra entidade podem ter certeza de que tudo que está sob sua influência e controle é sustentável. Ao que parece, em relação à sustentabilidade, acabamos nos iludindo com palavras. O próprio enunciado que se tornou clássico “...desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes...” é inconsistente e sujeito a interpretações díspares. Quais “necessidades presentes” devem ser consideradas? Aquelas da família americana e européia ou da africana, chinesa e indiana? Daqueles que dispõem de acesso a todos os benefícios de uma sociedade afluente ou dos que passam necessidades?
No entanto, admitamos que seria possível caminhar para um tipo de associação humana onde estas contradições fossem resolvidas e todos tivessem o suficiente para viver e se desenvolver, de acordo  com suas capacidades. Esta sociedade teria que garantir educação, saúde, alimentação e moradia para todos os seus membros, seja através do apoio do Estado ou das forças do mercado – só assim seriam asseguradas as mesmas chances de crescimento a todos. A partir desta base, a pergunta seguinte é se haveriam recursos suficientes na Terra – alimentos, água, terra, minérios, energia – para que toda humanidade pudesse manter este elevado padrão de vida. Se isto fosse possível, qual seria a duração desta sociedade, antes que os recursos começassem a minguar e surgissem os primeiros conflitos? Como seria possível existir uma sociedade que, utilizando indefinidamente os recursos naturais, não comprometesse “a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades”?
Ainda não temos resposta para estas perguntas. Alguns autores, assim como eu, não vendo luz no fim do túnel, dizem que é bastante provável que o conceito de sustentabilidade mudará ao longo do tempo. Mas isto é o mesmo que dizer que não temos respostas.
(imagens: Paul Gauguin)

Comprando gato por lebre

sexta-feira, 23 de julho de 2010

"A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que ponto, seu desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição."  Sigmund Freud  -  O Mal-Estar na Civilização  


Através da Lei 8.078 de 11 de setembro de 1990 é criado o Código de Defesa do Consumidor. A promulgação desta lei foi bastante providencial à época. A sociedade brasileira estava ficando mais cosmopolita: novos produtos e serviços eram lançados e a economia dava os primeiros passos em um processo de abertura comercial, dando início a uma concorrência entre produtos nacionais e importados. Todos que viveram aquele período da história do país lembram da grande mudança que a lei representou para o comércio. O Código criava responsabilidades para fabricantes e comerciantes, forçando-os a assumirem certas obrigações pelos produtos fabricados e vendidos. Fatos corriqueiros, que atualmente são relativamente comuns, como a troca de um produto que não atenda às expectativas ou que apresente qualquer defeito, eram extremamente difíceis - quase impossíveis - até o início dos anos 1990. O cliente, caso houvesse algo errado com a mercadoria, dependia da boa vontade do comerciante ou do fabricante. O processo de troca do bem defeituoso era lento e burocrático, de modo que o cliente muitas vezes acabava desistindo da reclamação, levando prejuízo. Os abusos chegavam ao ponto de alguns fabricantes colocarem produtos no mercado, que de antemão já sabiam ser irregulares. Ainda não havia o recall, a convocação de consumidores para troca de mercadorias fora das especificações. Também não existia o atualmente já tão difundido “SAC”, o serviço de atendimento ao cliente. Enfim, estávamos na Idade da Pedra em relação a respeito ao consumidor. Este por sua vez era ingênuo e medroso; ingenuo por sempre ter vivido em uma economia de poucos produtos e medroso por causa dos efeitos do período ditatorial, quando não se reclamava de nada - nem do produto lesado.
No entanto, hoje ainda não podemos dizer que o consumidor brasileiro vive no melhor dos mundos; não alcançamos a "modernidade do consumo". Falta-nos muito ainda para chegarmos ao nível de civilidade, transparência e legalidade que existem, por exemplo, nos Estados Unidos e na Europa. O Código do Consumidor continua sendo desrespeitado, tanto por fabricantes quanto por comerciantes e prestadores de serviços. Na economia brasileira, devido à impunidade, ainda atuam muitas empresas inescrupulosas, de todos os tamanhos, que se valem de diversos estratagemas para burlar a lei e tirar proveito do consumidor. Para este, o serviço nos PROCONs (Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor) permanece lento e por vezes burocrático; juntam-se imensas filas nos balcões de atendimento. Por outro lado, não existem estatísticas oficiais detalhadas sobre reclamações contra produtos, empresas,  serviços - se estão disponíveis, não são devidamente divulgadas. Ainda não sabemos muito bem quem continua desrespeitando o consumidor, tentando impingir-lhe produtos com validade vencida ou fora das especificações; cobradondo serviços que não são prestados. Em outras palavras, ainda não sabemos quem continua praticando o estelionato contra o consumidor e permanece impune. Exemplo desta falta de controle e informação é a demora das agências reguladoras, cuja finalidade é regular e fiscalizar atividades de determinados setores da economia – energia elétrica, telecomunicações, seguros de saúde, aviação civil, vigilância sanitária  – em tomar providências contra os abusos e as constantes falhas apresentadas nos serviços e produtos de algumas empresas destes setores. Existe uma lista negra dos maus pagadores, mas não existe um "Livro Negro dos Maus Fornecedores".
Enquanto as empresas tem todo um aparato de proteção às suas atividades, o cidadão-consumidor continua refêm de uma estrutura econômica-burocrática-jurídica, que ao menor passo em falso lhe aplica uma pena que pode variar de juros escorchantes, inclusão do nome no cadastro dos devedores, até processos judiciários. Esta é mais uma zona cinza da sociedade brasileira onde - apesar  de existirem leis - a justiça ainda não chegou em sua plenitude e por vezes impera a força do poder econômico. 
Em muitos casos nós, consumidores, ainda continuamos a comprar gato por lebre. É preciso que também as relações econômicas passem por um processo de democratização; que os direitos da parte mais fraca (o consumidor) sejam efetivamente respeitados. Não nos transformaremos em país desenvolvido da noite para o dia, somente por causa das altas taxas de consumo. A cidadania é a base para o progresso social e esta só se estabelecerá com a prática da ética e da democracia, sob o respeito da lei.
(imagens: Edward Hopper)

A psicologia evolutiva

sexta-feira, 16 de julho de 2010
“Se acreditamos com tanta ingenuidade nas idéias é porque esquecemos que foram concebidas por mamíferos.”  E. M. Cioran  -  Silogismos da Amargura

Uma das grandes dificuldades apontada por diversos autores na psicologia é a construção de uma história desta ciência. A maneira mais simples consiste em descrevê-la em uma seqüência cronologicamente ordenada – porém não logicamente correta – no que se refere à análise dos problemas e tentativas de soluções. A perspectiva mais coerente focaria as questões isoladas, seguida das análises lógica e cronologicamente ordenadas das soluções que lhe foram propostas.
Usualmente, divide-se a história da psicologia em dois períodos: o filosófico-especulativo e o científico. A primeira fase tem suas origens no pensamento grego, e se estende até o final do século XIX e início do século XX. Neste primeiro período incluem-se todas as contribuições – notadamente no campo da filosofia – desde Platão e Aristóteles, passando por Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Descartes, Locke, Hume e outros. Ainda na segunda metade do século XIX surgem os primeiros avanços no estudo do sistema nervoso e ocorre a introdução de práticas experimentais, com o alemão Wilhelm Wundt (1832-1920). É por esta época que se produzem os primeiros trabalhos de envergadura de pesquisa experimental sobre aprendizagem, com Ebbinghaus, no domínio da memória e Thorndike, em torno da formação de hábitos, com a utilização de animais. A este último deve-se a transposição das idéias de Darwin para o campo da aprendizagem.
A corrente psicológica inaugurada por Thorndike foi bastante influenciada pelo filósofo e psicólogo americano William James (1842-1910), também o mais importante representante da corrente filosófica do pragmatismo. Esta linha de pensamento dá grande valor à interação da teoria com a práxis. Segundo o próprio James, “teorias não são mais respostas para charadas, respostas com as quais podemos nos satisfazer; teorias transformam-se sobretudo em ferramentas” (James, 1994, pág. 23 e 24 – tradução nossa). William James, além de grande filósofo, é considerado por muitos o pai da psicologia americana. Em sua obra Principles of Psychology (Princípios de Psicologia), afirma que a mente não poderia aprender a menos que tivesse rudimentos de conhecimento inato. O psicólogo estava convencido de que os seres humanos dispunham de tendências inatas, que não eram provenientes da experiência, mas eram herdadas, tendo se originado através do processo da seleção natural. Na mesma obra, James afirmava que os seres humanos tinham mais instintos do que outros animais, e não menos.
As idéias de William James, que contribuíram para a criação da psicologia funcionalista e influenciaram outros autores, foram aos poucos perdendo o interesse do mundo acadêmico. O funcionalismo foi eclipsado por outras escolas psicologia, como a escola behaviorista ou comportamentalista. Todavia, o princípio do funcionalismo ressurgiu parcialmente em 1958, quando o lingüista Noam Chomsky retomou a idéia dos “rudimentos de conceitos inatos”, defendido por James anteriormente, e que Chomsky chamava agora de “gramática profunda”. Nesta teoria, o lingüista afirma que era impossível que uma criança – dado o pouco tempo de vida e a complexidade do arranjo – aprendesse as regras inatas na linguagem, como defendido pelo behaviorismo. Chomsky apresentou exemplos onde criticava a posição comportamentalista e tentava provar que a mente da criança deveria ter as regras inatas, através das quais o vocabulário da linguagem é fixado.
O desenvolvimento conjunto de várias ciências como a biologia, a genética, a neurologia, a antropologia, a paleontologia e a psicologia, permitiu que nos últimos trinta anos se reunisse um número cada vez maior de informações, que propiciaram o ressurgimento do funcionalismo, agora sob novas roupagens. O primeiro indício deste reaparecimento desta corrente de pensamento psicológico foi a publicação do livro Sociobiology: The New Synthesis, do biólogo Edward O. Wilson, que causou grande impacto no mundo acadêmico quando surgiu. A obra, interpretada à época tendenciosamente por vários autores e universidade americanas, acabou gerando forte oposição e foi acusada de defender o darwinismo social. O psicólogo americano Stephen Pinker, referindo-se a Wilson em seu livro Tábula Rasa, defende-o das acusações e resume sua proposta da seguinte maneira: “(Wilson) analisa princípios sobre evolução da comunicação, altruísmo, agressão, sexo e criação de prole e os aplica aos principais grupos taxonômicos dos animais sociais como insetos, peixes e aves. O capítulo 27 faz o mesmo para o Homo Sapiens, tratando nossa espécie como mais um ramo do reino animal. Inclui um exame da literatura sobre os universais e variação de sociedades, uma discussão sobre linguagem e os seus efeitos sobre a cultura e a hipótese de que alguns universais (incluindo o senso moral) podem provir de uma natureza humana moldada pela seleção natural. Wilson manifestou a esperança de que sua idéia pudesse ligar a biologia às ciências sociais e à filosofia...” (Steven Pinker, 2004, pág.157).
A partir da década de 1990, dois acadêmicos de Harvard, John Tooby e Leda Cosmides retomaram muitos pontos defendidos pela sociobiologia e criaram a psicologia evolutiva. O zoólogo inglês Matt Ridley define esta corrente psicológica da seguinte maneira: “Foi uma tentativa de fundir o melhor do nativismo (funcionalismo) de Chomsky – a idéia de que a mente não pode aprender a não ser que tenha rudimentos de conhecimento inato – com o melhor do selecionismo da sociobiologia: a forma de compreender uma parte da mente é entender o que a seleção natural planejou que ela fizesse.” (Ridley, 2003, pág. 308).
Para se compreender a evolução da corrente psicológica do funcionalismo, desde os tempos de William James até a psicologia evolutiva, é necessário entender a evolução do darwinismo ao longo dos últimos 150 anos – já que este influenciou bastante esta psicologia. Segundo um dos maiores biólogos do século XX, Ernst Mayr, o darwinismo teve seis fases, cada uma agregando mais dados e aprofundando as bases da teoria da evolução, cobrindo o período de 1859 até por volta do ano 2000. Eliminando falsas interpretações como o lamarckismo (para o qual a evolução se dá por transmissão de características adquiridas); o saltacionismo (no qual a evolução acontece “aos saltos”, por mudanças abruptas) e a ortogênese (segundo a qual a evolução teria uma meta, seria teleológica) e incorporando a genética e a biologia molecular, a teoria da evolução é hoje tão bem comprovada quantas outras teorias no ramo da física.
Segundo escrevem Leda Cosmides e John Tooby em seu estudo Evolutionary Psychology: A Primer (Psicologia evolutiva: um guia) “o objetivo de estudo da psicologia evolutiva é descobrir e entender o projeto da mente humana. A psicologia evolutiva é uma abordagem da psicologia, na qual conhecimentos e princípios da biologia evolucionista são colocados em uso na pesquisa da estrutura da mente humana.” (Cosmides, Tooby, 2007, pág. 1 – tradução nossa). Baseada na teoria da evolução, a psicologia evolutiva encara a mente como um conjunto de “máquinas de processamento de informações”, projetadas pela seleção natural para resolver problemas de adaptação, enfrentados por nossos ancestrais caçadores-coletores. Retomando a afirmação já feita por William James, no final do século XIX, os autores dizem que tendemos a considerar o ser humano como uma espécie que transcendeu ou sublimou (para usar uma expressão cara a Sigmund Freud) seus instintos, substituindo-os em grande parte pela racionalidade. Todavia, se observarmos todas as coisas que automaticamente fazemos com nosso cérebro, como olhar, falar, gostar de alguém, devolver um favor, ter medo de doenças, apaixonar-se, iniciar um ataque, deslocar-se na paisagem, e uma gama de outras coisas, percebemos que estas ações só são possíveis porque há um vasto e heterogêneo sistema computacional, ajudando e regulando estas atividades. Este sistema trabalha tão bem que nem percebemos que existe.
Entre filósofos e cientistas, antes e depois de Darwin, sempre foi senso comum que a mente humana era uma folha em branco, uma “tabula rasa”, virtualmente sem nenhum conteúdo. Tomás de Aquino já escrevia que “não há nada no intelecto que não estivesse antes nos sentidos”, e nisso foi seguido por John Locke, o pai do empirismo inglês, que entre outros influenciou a filosofia de Rousseau (“o homem é bom por natureza, a sociedade é que o corrompe”) e todo o pensamento marxista além do behaviorismo. De acordo com esta corrente de pensamento, todo conteúdo da mente humana tem origem “externa”; a arquitetura mental consiste de mecanismos independentes, classificados sob nomes como “aprendizado”, “indução”, “inteligência”, “imitação”, “racionalidade” ou “cultura”. Tais mecanismos mentais não possuem estruturas de processamento, o que implica que tudo o que pensamos e sentimos vem do exterior e do mundo social.
A psicologia evolutiva, por outro lado, afirma que toda a mente humana tem uma estrutura de circuitos especializados, propiciando estruturas universais de sentido, que nos permitem entender as ações e as intenções dos outros. Steven Mithen em seu livro A pré-história da mente, descreve a psicologia evolutiva da seguinte maneira: “...Cosmides e Tooby tratam a mente como tratamos qualquer órgão do corpo – é um mecanismo evoluído, construído e ajustado em resposta às pressões seletivas enfrentadas por nossa espécie durante a evolução.” (...) “como conseqüência disso, Cosmides e Tooby argumentam que a mente é um canivete suíço com um grande número de lâminas altamente especializadas”. (Steven Mithen, 2002, pág. 68).
A psicologia evolutiva, segundo Cosmides e Tooby, estuda: 1) Cérebros; 2) Como cérebros processam informações; 3) Como os programas de processamento de informações do cérebro geram comportamento. Se assumirmos que a psicologia é um ramo da biologia, várias ferramentas podem ser aplicadas à psicologia. Os cinco princípios básicos, utilizados como métodos pela psicologia evolutiva, são:
1º Princípio: O cérebro é um sistema físico, que atua como um computador. Seus circuitos são projetados para gerar comportamento que seja apropriado às nossas circunstâncias ambientais. O cérebro é um sistema físico, cuja operação é governada unicamente pelas leis da química e da física. Sua função é processar informações, ou seja, é um computador feito de componentes à base de carbono. Nesta estrutura, neurônios são conectados uns os outros, de uma maneira altamente organizada e são por sua vez conectados aos circuitos neurais, que percorrem o corpo humano. Receptores sensórios são conectados a neurônios, que transmitem informação ao cérebro. Em suma, os circuitos do cérebro são projetados para gerar movimento, respondendo às informações do ambiente. A função do cérebro, este computador “molhado”, é gerar comportamento que seja apropriado às circunstâncias encontradas pelo restante do corpo no ambiente.
2º Princípio: O sistema neurônico e neural foi projetado pela seleção natural, para resolver problemas que nossos ancestrais enfrentaram durante a história evolutiva de nossa espécie. Nossos circuitos neurais formaram-se para resolver problemas adaptativos, ou seja, como o organismo sobrevive: o que come, de quem é presa, com quem se acasala, com quem se associa, como se comunica, e assim por diante.
3º Princípio: A consciência é apenas a ponta do iceberg; a maior parte do que ocorre no cérebro permanece desconhecido. Como resultado, nossa experiência consciente pode nos iludir e fazer-nos pensar que a estrutura da mente é mais simples do que parece. A maior parte dos problemas que experimentamos como fáceis de resolver são difíceis – requerem um circuito neural bastante complexo. A complexidade do funcionamento da mente humana é muito grande. Podemos apresentar grandes generalizações, que todavia não explicam como a estrutura efetivamente funciona.
4º Princípio: Diferentes circuitos neurais são especializações para resolverem diferentes problemas de adaptabilidade. Segundo a psicologia evolutiva, temos todos estes circuitos neurais especializados, porque o mesmo mecanismo raramente é capaz de atender diferentes necessidades de adaptação, como escutar, enxergar, sentir raiva, medo, náusea, etc. Conseqüentemente, o cérebro deve ser composto de grandes grupos de circuitos, com diferentes subcircuitos, especializados para resolver diferentes desafios.
5º Princípio: Nosso moderno crânio abriga uma mente da Idade da Pedra. A seleção natural levou muito tempo para produzir suas mudanças e construir novos circuitos em nossos cérebros. Quase 99% do tempo de existência de nossa espécie despendemos como caçadores-coletores. Nossos ancestrais viviam em pequenos grupos nômades, com poucas dúzias de indivíduos, obtendo seu alimento diário – quando disponível – caçando animais e colhendo plantas. Desta forma, a chave para entender o funcionamento da mente moderna é compreender que seus circuitos não foram projetados para problemas diários de um cidadão moderno – foram desenvolvidos para problemas diários de nossos ancestrais caçadores-coletores. Isto, todavia, não quer dizer que nossa mente não tenha mecanismos de aprendizado, capazes de permitir que criemos novos ambientes e nos adaptemos a eles.
Estes são os principais aspectos da psicologia evolutiva, ramo da psicologia – ou da biologia – que vem despertando a atenção de cientistas e filósofos envolvidos com a questão do darwinismo e do estudo da mente. As implicações filosóficas desta teoria ainda não foram avaliadas completamente, mas deverão ter grande ressonância nos próximos anos, haja vista o enorme impacto provocado pela teoria da evolução e pela teoria da psicanálise na filosofia.
Para terminar esta exposição, citamos as palavras do neurobiólogo Wolf Singer que, referindo-se ao estudo da evolução do cérebro e de suas consequências, afirma: “Finalmente precisamos reconhecer que estamos enredados em sistemas cujo desenvolvimento não podemos prognosticar, nem efetivamente dirigir. Para complicar ainda mais, junte-se a isto o fato de que não conseguimos imaginar a dinâmica de sistemas não-lineares mais complexos. Já que processos não-lineares dificilmente são previsíveis ou direcionáveis, não surgiu durante o processo evolutivo necessidade de desenvolver sistemas cognitivos que pudessem “imaginar” acontecimentos complexos, não-lineares. (Wolf Singer, 2003, pág.301 – tradução nossa).
BIBLIOGRAFIA
Bastos, Cleverson Leite, Mente, Cogniçao e a Teoria da Mente Ornamental, Revista de Filosofia, Curitiba, v.18 n. 21, p.111-123, julho/dez 2005
Becker, Mehr, e outros, Gene, Meme und Gehirne (Genes, Memes e Cérebros), Suhrkamp Verlag: Frankfurt am Main, 2003
Cosmides, Leda, Tooby, John, Evolutionary Psychology: A Primer (Psicologia Evolutiva: Um manual – sem tradução), Center for Evolutionary Psychology, disponível em acesso em 06/09/2007
Enciclopédia Mirador, Vol 17, verbete Psicologia, Editora Encyclopaedia Britannica: São Paulo, 1982
Hogan, John, A mente desconhecida, Editora Schwarcz, São Paulo: 2002
James, William, Was ist Pragmatismus? (O que é pragmatismo?), Beltz Athenäum Verlag, Weinheim, 1994
Mayr, Ernst, Biologia, Ciência Única, Editora Companhia da Letras: São Paulo, 2005
Mithen, Steven, A pré-história da mente, Fundação Editora da Unesp: São Paulo, 2002
Pinker, Steven, Tábula Rasa, Editora Companhia da Letras: São Paulo, 2004
Ridley, Matt, O que nos faz humanos, Editora Record: São Paulo, 2003
Ruse, Michael, Levando Darwin a sério, Editora Itatiaia Limitada: Belo Horizonte, 1995
(imagens: Hieronimus Bosch)

Questão de racionalidade ou moralidade?

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Há poucos dias participei de um debate bastante interessante, no qual foi colocada a seguinte pergunta aos participantes: a questão da preservação do meio ambiente é assunto racional ou moral? Vou aqui evitar entrar em detalhes a respeito do debate, para não cansar o leitor. Depois de quase duas horas de discussão, com vários argumentos, alguns momentos de discussões mais acaloradas, o grupo debatedor chegou a duas conclusões principais, que tentarei desenvolver um pouco neste artigo.
A primeira conclusão – e a principal – é que a questão da preservação dos recursos naturais é primordialmente um tema moral, um assunto que se refere à conduta ética do ser humano. Preservar a biosfera para as gerações futuras não se baseia em nenhum pressuposto racional. Não há nenhum argumento baseado na racionalidade, que nos force a deixar um mundo ambientalmente conservado para nossos descendentes.
No entanto, podemos alegar motivos racionais se falarmos, por exemplo, em problemas imediatos, como o do lixo, do esgoto ou da poluição atmosférica. Sem dúvida, é principalmente por motivos racionais que organizamos a coleta do lixo, construímos estações de tratamento de esgoto e criamos programas de controle de emissões veiculares. Aprendemos com a experiência e podemos inferir as conseqüências, que a ausência de tais serviços traria para a saúde pública e o próprio funcionamento de nossa sociedade. Os custos médico-hospitalares e as horas paradas, causados pela epidemia de cólera, de tifo ou pelas doenças pulmonares, seriam imensos e onerariam toda a sociedade, sejam empresas ou contribuintes. Esta é uma análise racional do problema.
Todavia, quando consideramos o sofrimento que estas enfermidades causariam às pessoas, temos um problema moral. A velha máxima, encontrada nas mais diversas tradições religiosas, “faça aos outros como gostaria que te fizessem”, ainda é válida e se aplica a toda a questão ambiental. Pois, como podemos ignorar o sofrimento que uma falha na organização da sociedade causa a nosso semelhante, que tem os mesmos direitos que nós à saúde? Então não custa lembrar que exatamente neste momento estão morrendo crianças em todo o Brasil – cerca de cem vidas ao dia – por falta de saneamento. A culpa por estas mortes recai sobre toda a sociedade; mas principalmente sobre aqueles que se propuseram – e por isto foram eleitos – a resolver também estes problemas. Assim, nesta análise, tem peso o aspecto moral da questão ambiental.
A segunda conclusão a que chegamos nesta discussão é conseqüência da primeira. Ela diz respeito ao fato de que apesar da preservação do ambiente natural ser um problema moral, ela não pode prescindir da abordagem racional, baseada nos conhecimentos da ciência. Não basta nos sentirmos compelidos a proteger os recursos naturais para as gerações futuras; temos que colocar tal imperativo em prática, através do uso de conhecimentos e recursos para a resolução do problema. Caso contrário aplica-se o ditado: “de boas intenções o inferno está cheio”.
Concluímos assim que a decisão de preservar os recursos naturais é uma questão moral. A dita “vontade política” é um outro nome para uma decisão moral – pode-se tomá-la ou não. Para colocá-la em prática, no entanto, não podemos prescindir do uso da razão, ou seja, da tecnologia e dos recursos financeiros.
(imagens: Guido Reni)

Eleições, e depois?


"As multidões, bem trabalhadas por um esperto demagogo, acreditam em qualquer coisa e são capazes de tudo. "  -  H. L. Mencken

Em outubro realizam-se eleições para deputados estaduais, federais, senadores, governadores e presidente. Nas votações deste ano, mais de 130 milhões de brasileiros elegerão aqueles que serão responsáveis pela criação de leis e pela administração dos estados e do País.
Quanto à distribuição geográfica da população, o quadro do país é bem diferente daquilo que foi há cinqüenta ou trinta anos atrás. Hoje, cerca de 80% dos brasileiros vivem em cidades; a maioria delas com menos de 20.000 habitantes. No entanto, uma grande parte dos municípios brasileiros – cerca de um terço – não tem recursos suficientes para custear suas próprias despesas e manter a máquina administrativa, dependendo então do repasse de verbas dos governos estadual e federal. A criação indiscriminada de novas administrações municipais, gerando cargos políticos e administrativos (e garantindo novos currais eleitorais para deputados e senadores), agravada pela manipulação das verbas dos orçamentos municipais, é uma antiga prática politiqueira brasileira que tem custado muito aos cofres públicos.
Por conta deste tipo de prática, alguns fatos com relação à situação social dos municípios brasileiros são reveladores. A maior parte destes não dispõe de sistemas de coleta e menos ainda de tratamento de esgotos. Faltam hospitais e postos de atendimento médico devidamente equipados. Em cerca de 40% dos municípios brasileiros ainda não existe coleta de lixo doméstico e a coleta seletiva (reciclagem) só é praticada em aproximadamente 400 cidades. O ensino municipal continua de baixo nível; apenas algumas cidades com administrações efetivamente empenhadas, lograram melhorar o nível de educação em suas escolas. As oportunidades de emprego e renda, dependendo da região, continuam baixas, forçando seus habitantes a migrarem para outras partes do país.
Todavia, como veremos, acompanhando as campanhas dos candidatos, parece que quase não existem dificuldades pela frente – ainda mais em tempos de crescimento da economia. Os planos de governo dos partidos e dos candidatos, quando existem, foram preparados por marqueteiros e assessores com alguma tarimba política. Evitando se comprometer, os programas são um conjunto genérico de projetos e providências, elaborados para corresponder às expectativas do potencial eleitorado. A disponibilidade de recursos para realização destes planos não é mencionada, é apenas um pequeno detalhe. Assim, parece que as eleições funcionam como a venda de um produto. Enquanto o potencial consumidor (eleitor) ainda não comprou o produto (o candidato), é feito de tudo para “fechar” a venda (ou o voto). Depois de comprado o produto (ou dado o voto), no entanto, se houver algum problema, o prejuízo é do consumidor (ou do eleitor). Diferentemente de certos produtos, candidato eleito ruim não tem “recall”, a não ser em casos muito especiais.
A questão ambiental, como sempre, passa ao largo das campanhas eleitorais da maioria dos candidatos. Existe grande expectativa em relação à candidata Marina Silva, que deverá trazer à discussão uma série de temas ambientais e sociais, não tratados pelos outros candidatos e partidos. E assuntos para colocar no debate não faltam. A recente aprovação da Lei Nacional de Resíduos Sólidos, por exemplo, poderia dar subsídios para que nossos futuros administradores elaborassem propostas concretas com relação à gestão dos resíduos sólidos.  
O saneamento, que apesar de receber verbas do PAC (Plano de Aceleração do Crescimento) continua bastante atrasado, também merece um empenho mais efetivo dos governos federal e estaduais. Outro ponto polêmico é o posicionamento dos candidatos – principalmente deputados federais e senadores – com relação à alteração do Código Florestal.
A questão ambiental acabou se tornando um espelho da questão econômica; os que têm mais poder, obtêm os maiores benefícios. É o caso da poluição ou degradação ambiental causada por grandes grupos econômicos em todas as áreas; da utilização dos bens públicos para o benefício privado. Assim como é preciso criar mecanismos para uma melhor distribuição dos bens econômicos, é necessário estabelecer limites para a privatização dos bens ambientais.
(imagens: Marc Chagall)

O setor ambiental brasileiro: estrutura e tecnologia

sexta-feira, 2 de julho de 2010
"E já agora está o tempo sem forças, já a terra cansada
mal cria os animais pequenos, ela que criou todas as espécies,
e produziu, gerando-os, os corpos enormes de animais bravios."
(Lucrécio, Da Natureza)
Introdução
O conceito de setor ambiental ainda encontra certas dificuldades de definição. O tema ambiental, segundo a ciência, é transversal e perpassa quase todos os setores da atividade humana. Todavia, em muitas áreas a questão ambiental ainda não alcançou importância essencial. Assim, quase tudo que se refere ao meio ambiente ainda é tratado como sendo simplesmente combate à poluição; a correção de impactos já causados. No entanto, à medida que conhecimentos científicos são incorporados às atividades econômicas – aprimorando processos tecnológicos, criando normas técnicas mais sofisticadas e uma legislação mais abrangente – a própria sociedade torna-se mais consciente de seus inúmeros impactos sobre a natureza e de como esta reage às interferências. Em outras palavras, gradualmente a nossa visão do setor ambiental está saindo de um patamar mecanicista e passando para uma abordagem sistêmica, encarando a natureza como um imenso sistema de redes de relações no qual a atividade humana também está inserida. Como exemplo, tome-se a influência do aquecimento global sobre o futuro do clima, e com isso sobre o regime de chuvas, daí sobre a agricultura e a geração de energia, vindo a causar deslocamentos de grandes multidões à procura de melhores regiões para viver. Tais implicações do aquecimento global não ocorrem em seqüência cronológica, mas concomitantemente, ampliando mais ainda o impacto do fenômeno. O físico Fritjof Capra, citando o ecologista Bernard Patten, escreve: “Ecologia é (sic) redes...Entender ecossistemas será, em última análise, entender redes.”
Em nossa abordagem do setor ambiental brasileiro nos limitaremos a analisar alguns aspectos; aqueles onde devido ao grau de desenvolvimento da economia brasileira estão ocorrendo os maiores investimentos. Isto porque, a maior parte da atividade econômica relacionada com o setor ainda está concentrada em ações corretivas, aquilo que nos Estados Unidos se convencionou chamar de “end of pipe treatment”, tratamento de final de tubo. Apesar disso, já existe um grande número de empresas e instituições que, tendo saído da fase mecanicista do tratamento corretivo, estão implementando ações preventivas como adoção de normas, introdução de sistemas de gestão ambiental, utilização de processos de produção mais limpa e eficiente, realização de análises de ciclos de vida de produtos, entre outros.
No Brasil, as disparidades entre as tecnologias empregadas ainda são muito grandes. Há um grupo relativamente reduzido de empresas, formadas pelas corporações transnacionais, as companhias brasileiras de grande porte e algumas exportadoras, que se utilizam das tecnologias mais avançadas. Entre estas se encontram empresas como a BASF, a Daimler-Benz a Vale e a Natura. O grupo intermediário é formado por companhias de médio porte, inseridas em cadeias produtivas dominadas pelas grandes empresas (automobilística, química, metalurgia), que atendem plenamente a legislação ambiental e por vezes também utilizam tecnologias preventivas. Finalmente, a maior parte das micro e pequenas empresas brasileiras – cerca de seis milhões – que ainda não dispõem de recursos e conhecimentos para utilizar tecnologias e abordagens mais avançadas, às vezes encontrando dificuldades até para atender a legislação ambiental. O crescimento da economia, a facilidade de financiamento e o aumento do nível de informação dos empresários e da sociedade, representam meios para que gradualmente estas organizações incorporem práticas e tecnologias ambientais mais efetivas.
História
No Brasil, a preocupação com a proteção aos recursos naturais remonta ao período colonial. Em 1605 foi criado o Regimento do Pau-Brasil, o qual, segundo alguns autores, representa o primeiro marco legal relacionado à proteção ambiental editado no País. A lei impunha limites de exploração e previa expressa autorização real para o corte da árvore. Ainda com relação às florestas, surgiu em 1799 o primeiro Regimento de Corte de Madeiras, estabelecendo regras para a utilização de madeira de floresta nativa. Em 1802, por sugestão de futuro patriarca da independência José Bonifácio de Andrada e Silva, foram estabelecidas iniciativas para o reflorestamento da costa brasileira, que àquela época já se encontrava devastada em algumas regiões. Posteriormente, em 1916, o Código Civil incluiu diversos artigos relacionados à proteção ambiental; mais especificamente com a proteção dos recursos hídricos.
Na década de 1930 surgem os primeiros documentos legais especificamente voltados para a preservação dos recursos naturais; o Código da Águas (Decreto nº. 24.643/34) e o Código Florestal (Decreto nº. 23.793/34). A começar neste período, ao longo das décadas seguintes, o País desenvolverá uma legislação ambiental cada vez mais elaborada. Em meados da década de 1970 já se esboça um controle ambiental mais acentuado, pela criação de leis voltadas para temas mais específicos e pelo surgimento dos órgãos de controle ambiental. Durante as décadas de 1980 e 1990 a lei ambiental brasileira seria gradualmente ampliada e detalhada, visando limitar a ação econômica predatória. Hoje, o grande problema ambiental na maior parte do País continua sendo a falta de um controle das atividades econômicas, dada a falta de recursos e capacitação da maioria dos órgãos ambientais.
As primeiras indústrias no Brasil surgiram na segunda metade do século XIX, na cidade do Rio de Janeiro, então capital do império. Tratava-se de tecelagens e metalúrgicas, que atendiam a demanda por produtos simples e baratos, enquanto que bens de consumo mais sofisticados eram importados, principalmente da Inglaterra.
Durante o início do século XX o numero de indústrias no País cresceu, já que a cidade de São Paulo também iniciava seu processo de industrialização, impulsionado pelos capitais da exportação do café e pela chegada de mão-de-obra imigrante semi-especializada. O desenvolvimento industrial continuou lento, mas constante e ao final dos anos 1930 o País já possuía um parque industrial, capaz de atender as necessidades básicas do mercado consumidor interno, ainda restritas e pouco sofisticadas. A falta de um mercado consumidor foi um dos principais fatores de limitação do desenvolvimento industrial brasileiro durante muitos anos, segundo vários autores.
A industrialização brasileira (assim como a de vários países do então Terceiro Mundo) inicia-se efetivamente depois da Segunda Guerra Mundial, especificamente a partir da década de 1950, quando o País já dispunha de uma indústria de base estruturada, pronta para sustentar o crescimento de outros setores, em sua fase inicial. Com isso, a começar pela indústria automobilística e seus fornecedores, seguiu-se toda uma cadeia produtiva de metalurgia, produção de maquinas e equipamentos. Para acompanhar o crescimento da indústria, o governo incentivou a expansão da infra-estrutura (ampliação da malha logística e aumento da capacidade de geração de energia) e a construção das primeiras refinarias de petróleo, base do desenvolvimento da indústria petroquímica na década seguinte. Ainda durante este período, o governo de Juscelino Kubitschek institui o plano de metas, cujos principais objetivos eram: combate ao subdesenvolvimento via industrialização, diversificação da estrutura produtiva, reforma agrária, distribuição de renda, planejamento econômico e reforma administrativa fiscal. Às empresas estrangeiras que investiam no País, concedia-se “prazos de isenção fiscal, terrenos, infra-estrutura, crédito oficial. Muitas delas se instalam com menos de 20% de investimento efetivo de capitais. Ocorre assim forte fluxo de capitais, sobretudo dos EUA, da Alemanha, do Japão e da França. O PIB (Produto Interno Bruto) cresce em média 7% ao ano, contra 5,2% no período 1945-1955. A produção industrial aumenta 80% em 1955-61, a siderurgia 100%, a indústria mecânica 125%, a elétrica e de comunicações 300% e o recordista setor de transportes cresce 600%” (Atlas Histórico Isto É Brasil, 2003, p.156).
Enquanto o processo de industrialização avançava principalmente na região Sudeste, incentivado por uma sucessão de governos civis e militares, também ocorriam mudanças no campo. Com a ampliação da malha rodoviária, como a construção da rodovia Régis Bittencourt (ligação com o sul do País), da Belém-Brasília e da rodovia Transamazônica, ocorre o avanço da fronteira agrícola principalmente no Estado do Paraná, e nos então estados de Goiás e Mato Grosso. A abertura de novas áreas de cultivo, notadamente no Cerrado, provoca uma demanda maior por equipamentos e insumos agrícolas, iniciando o processo de mecanização do campo. A gradual automatização da agricultura, necessária para o cultivo de extensas áreas, ajuda a engrossar o êxodo rural que já vinha ocorrendo desde a década de 1950, em direção aos centros que estavam se industrializando. Este processo que se estenderá por cerca de três décadas (início dos anos 1950 até o início dos anos 1980), deslocará cerca de 30 milhões de pessoas do campo para as cidades. Com isso, a taxa de urbanização do Brasil acaba se invertendo em menos de 30 anos: no início dos anos 1950 aproximadamente 70% da população vivia no campo e 30% nas cidades. Nos anos 1980 cerca de 70% da população brasileira já morava em cidades. O impacto que estas migrações causaram às grandes metrópoles brasileiras foi imenso.
Os serviços de infra-estrutura, que não eram suficientes nem para atender à demanda já existente, quase acabaram entrando em colapso, quando as regiões metropolitanas passaram a receber imensos contingentes de migrantes. Estes, sem qualificação profissional em sua maioria, se tornaram mão de obra barata, imediatamente empregada nas indústrias e na construção civil, e necessitando de moradia, serviços básicos de água tratada e coleta de esgoto, transporte, escolas, serviços de saúde, entre outros.
O ambiente de crescimento acelerado da economia também não dava margem para preocupações ambientais. Estas ainda estavam longe de figurarem na lista de prioridades do governo e das empresas. Durante este período da história do País, a época do “milagre econômico”, a questão da degradação ambiental não era tema de discussão. O governo da época – a ditadura militar – estava mais interessado em aumentar a produção industrial e a ocupação de terras virgens (Cerrado e Amazônia), do que na proteção dos recursos naturais. Em conseqüência desta orientação, inexistia praticamente uma legislação ambiental, não havia órgãos de controle ambiental e a ação de ONGs era fortemente cerceada. A opinião pública não tinha acesso a informações e desta forma desconhecia a degradação ambiental em andamento.
Da mesma forma o setor privado – nacional e estrangeiro – também não fazia investimentos para atenuar o impacto de suas atividades industriais, já que a legislação era pouco específica e não havia qualquer orientação técnica, mesmo por parte das matrizes das empresas estrangeiras. As administrações estaduais e municipais priorizaram o fornecimento de água potável, já que tais investimentos eram imediatamente percebidos pela população, geravam receita e tinham um custo de instalação relativamente baixo. Quanto ao esgoto, havia no máximo serviços de coleta. Os volumes coletados não eram tratados em sua grande maioria e lançados em rios e no oceano. A coleta dos resíduos domésticos (lixo) estava começando a ser implantada, porém os aterros ainda não eram construídos segundo normas técnicas, tratando-se quase sempre de valas ou “lixões”, sem qualquer tipo de proteção do solo. Os resíduos industriais, caso não representassem grande perigo para a saúde humana, eram destinados aos mesmos aterros para os quais era encaminhado o lixo doméstico.
O impulso econômico do “milagre brasileiro” termina no final da década de 1970, quando a situação econômica mundial sofre uma grande mudança. Os capitais de investimento que ainda eram bastante fartos no mercado mundial antes da segunda crise do petróleo (1979), tornaram-se escassos. Os países que anos antes emprestavam recursos são forçados a redirecionar seus investimentos, enquanto ocorre uma retração geral dos mercados. Acompanhando a tendência mundial, a economia brasileira deixa de crescer nos níveis médios de 5% ao ano, registrados durante os 15 anos anteriores (1964-1979). No quadro político interno tem início o processo de redemocratização, que culmina com as eleições presidenciais diretas, em 1989.
Com relação à proteção ambiental, a partir de meados da década de 1970 já se esboça um maior controle, através da criação de leis mais específicas e do surgimento dos órgãos de controle ambiental. Esta preocupação com o meio ambiente, mesmo que ainda incipiente, culmina na Constituinte em 1988, quando é votada a nova Constituição do Brasil, contendo diversos artigos versando especificamente sobre a proteção ao meio ambiente.
Durante a década de 1980 é criada a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81) que institui o Sistema Nacional de Meio Ambiente, marco legal que permite proteger o meio ambiente de maneira abrangente. Esta lei também institui o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e estabelece um regime de responsabilização civil objetiva para o dano ambiental. Outro marco legal importante, criado no final da década de 1990, foi a Lei de Crimes Ambientais (Lei 9605/98), que estabelece a responsabilidade pelo crime ambiental e possibilita uma rápida punição do infrator.
A abertura da economia brasileira no início da década de 1990 também trouxe benefícios ambientais. As empresas brasileiras tiveram que melhorar sua produtividade para poder enfrentar a concorrência dos produtos importados. No entanto, para melhorar a produtividade, entre outras providências, é preciso introduzir medidas para a otimização do consumo de energias e insumos, reduzindo, desta forma, os resíduos perdidos na produção. As normas de qualidade da série ISO também se constituíram em uma grande ferramenta para preparar as empresas para uma melhor atuação ambiental. Exportadoras, como as indústrias de papel, por exemplo, também foram pressionadas por seus compradores estrangeiros a introduzirem sistemas de produção mais limpos, já que os consumidores dos países ricos davam preferência a produtos fabricados por processos menos poluentes.
Outro aspecto que contribuiu para melhora do quesito ambiental nas empresas foi a possibilidade que agora tinham os consumidores de poder comparar produtos nacionais com importados, em seus aspectos de preço, qualidade, design e impacto ambiental. O “dumping ambiental” praticado por muitas empresas, ou seja, a fabricação de produtos similares, todavia sem nenhuma preocupação ambiental, estava agora com seus dias contados. Quanto mais os consumidores se tornassem conscientes de que processos produtivos conduzidos com irresponsabilidade poderiam destruir o meio ambiente, tanto menos produtos ambientalmente incorretos seriam vendidos. Assim, surgem os primeiros movimentos do “consumo responsável” no Brasil. Aos poucos, os conceitos de “desenvolvimento sustentável” e “tecnologias limpas”– lançados durante o Encontro Internacional sobre Meio Ambiente realizado no Rio de Janeiro em 1992 (ECO 92) – passaram a ser gradualmente incorporados às estratégias de parte das grandes empresas brasileiras e estrangeiras e às políticas de muitos setores do governo federal.
As ONGs, que no período ditatorial foram perseguidas, aumentam rapidamente, atuando em diversos segmentos; desde programas sociais que envolvem iniciativas de reciclagem de materiais, ações populares exigindo o tratamento do esgoto doméstico, até movimentos por moradias e reforma agrária.
O mercado
O setor mundial de tecnologias ambientais movimentou cerca de um trilhão de Euros em 2007, segundo a consultoria alemã Roland Berger. O mesmo relatório informa que até 2020 este setor deverá alcançar um volume de dois trilhões de Euros. O Brasil é o país com os maiores volumes de investimento no setor ambiental em toda a América Latina, seguido do México, da Argentina e do Chile.
Não existem dados oficiais sobre o volume de investimentos em tecnologias ambientais no Brasil. O Departamento de Meio Ambiente e Sustentabilidade da Câmara Brasil-Alemanha estima que em 2007 este setor movimentou cerca de U$ 5,2 bilhões, referentes à prestação de serviços e venda de equipamentos, incluindo os setores público e privado. Estes valores, no entanto, só se referem a projetos novos e não incluem as obras de manutenção, difíceis de serem estimadas, já que para estas também não existem estatísticas unificadas. Aproximadamente 20% deste valor (US$ 1,08 bilhão) são devidos às tecnologias importadas, das quais cerca de 25% são originárias da França (US$ 270 milhões); 20% (US$ 216 milhões) dos Estados Unidos; 18% (US$ 194 milhões) da Alemanha e 12% (US$ 129 milhões) do Canadá. Os demais 25% são de origem diversa, como Inglaterra, Itália, Espanha, Japão e Coréia. Especialistas entrevistados para a pesquisa realizada pela Câmara Brasil-Alemanha estimam que o setor de meio ambiente deverá crescer de 5% a 7% ao ano, durante os próximos cinco anos.
A indústria ambiental brasileira surgiu durante os anos de 1950, como resposta à demanda que se iniciava no setor publico (prefeituras) e privado, principalmente na área de tratamento de água e efluentes. Os poucos fabricantes de equipamentos que existiam no mercado ainda não estavam especializados e forneciam equipamentos tanto para processos industriais, quanto como para o tratamento de água e efluentes. A demanda existente no mercado ainda era muito reduzida e deste modo não existia a especialização. Equipamentos não disponíveis ainda localmente eram importados ou fabricados por empresas já atuando no setor, dependendo do volume da demanda. O desenvolvimento desta indústria ocorreu em grande parte por necessidades específicas cada vez mais crescentes da indústria, apesar de o setor publico sempre ter sido o maior comprador de equipamentos neste segmento. O setor da indústria de saneamento tomou impulso a partir da década de 1970, quando o governo federal instituiu o PLANASA (Plano Nacional de Saneamento), criando as companhias estaduais de saneamento, a exemplo da SABESP (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) e da CEDAE (Companhia Estadual de Águas e Esgotos), com um faturamento anual de US$ 2,5 bilhões e US$ 1,0 bilhão em 2007, respectivamente. Estas companhias receberam as concessões das prefeituras, para assumirem os serviços de tratamento de água e de esgoto das cidades de seus Estados, durante um prazo de 25 anos. Deste modo, as companhias estaduais de saneamento acabaram por centralizar estes serviços, tornando-se importantes interlocutores para as empresas privadas, fabricantes de equipamentos e consultorias fornecedoras de serviços especializados. Atualmente existem 27 companhias estaduais de saneamento, atendendo cerca de 3.800 municípios, de um total de 5.700 municipalidades em todo o País. Os 1.700 municípios restantes possuem serviços de tratamento de água e esgotos autônomos ou privatizados (cerca de 60 municípios transferiram os serviços de tratamento de água ou esgoto para consórcios privados).
O setor de serviços e equipamentos para tratamento de água e efluentes domésticos e industriais foi estimado pelo Departamento de Meio Ambiente e Sustentabilidade da Câmara Brasil-Alemanha em US$ 2,3 bilhões em 2007, dos quais cerca de US$ 230 milhões (aproximadamente 10%) foram importados. A previsão de crescimento deste segmento é de cerca de 5% a 7% ao ano, durante os próximos cinco anos.
O desenvolvimento deste setor depende em grande parte de recursos públicos, já que iniciativas dos governos federais, estaduais e municipais são responsáveis por quase 70% do volume de investimentos deste mercado.
Outro fator que deverá impulsionar o crescimento deste setor é o PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento, instituído pelo governo de Luís Inácio Lula da Silva no início do seu segundo mandato. O programa prevê investimentos de R$ 40 bilhões, provenientes de recursos da União, dos investimentos privados e das contrapartidas de estados, municípios e prestadores de serviços em geral. Além do PAC a nova Lei do Saneamento, a lei federal 11.455/07, sancionada em 2007, estabelecendo um marco regulatório para o setor de saneamento, é vista por alguns técnicos como a solução dos problemas do setor, já que propicia mais segurança a todos os agentes.
A demanda do setor de saneamento é suprida por fabricantes estabelecidos no Brasil; empresas de capital nacional ou multinacional que já atuam neste setor há muitos anos. Como o setor de equipamentos de saneamento estava fechado às importações até 1990, desenvolveu-se internamente uma forte base industrial, capaz de suprir a maior parte das demandas de equipamentos e serviços do setor. Existem nichos de mercado, como instrumentação de controle e monitoramento, análise e automatização, que ainda não são supridos pela indústria nacional em sua totalidade. Estas demandas tecnológicas são atendidas por importações, realizadas através de representantes brasileiros de fabricantes estrangeiros. As exportações de equipamentos ainda são muito limitadas. No entanto, segundo especialistas, os produtos brasileiros para o setor de saneamento tem qualidade e nível tecnológico suficiente para poderem competir em mercados latino-americanos, africanos e asiáticos.
O mercado para as tecnologias para gerenciamento de resíduos desenvolveu-se em época posterior ao do das tecnologias de tratamento de água e de efluentes. A maior parte da legislação relacionada com o transporte, manuseio, recuperação e destinação final de resíduos só foi desenvolvida durante a década de 1980. O transporte e a disposição das cerca de 110.000 toneladas diárias de resíduos domésticos gerados no País (calcula-se cerca de 0,60 kg de resíduo por habitante por dia), são de responsabilidade das prefeituras; a maioria em situação deficitária, impossibilitada de realizar novos investimentos. O governo federal e os governos estaduais instituíram nos últimos anos linhas de crédito para ajudar as prefeituras menores a construírem aterros sanitários tecnicamente seguros, evitando problemas de contaminação. Todavia, ainda cerca de 30% dos municípios brasileiros não tem qualquer tipo de coleta de lixo e a reciclagem ainda é limitada. De acordo com dados publicados pelo CEMPRE – Compromisso Empresarial para a Reciclagem, somente 405 municípios, representando cerca de 7% das cidades do país, tem programas de coleta seletiva. Mesmo assim, o país destaca-se na reciclagem de alguns tipos de embalagem, como latas de aço (índice de reciclagem de 47%); plásticos (20%); papelão ondulado (77%); pneus (73%); PET (51%); e latas de alumínio (94%). Grande parte desta reciclagem, todavia, não é motivada pela educação e conscientização, sendo devida ao valor das matérias-primas e ao alto índice de desemprego e pobreza no País. Em relação a isso, cabe lembrar a frase do economista romeno Georgescu-Roegen, precursor em muitos temas que hoje ocupam os economistas que estudam a questão ambiental: “Parece que se acredita que é suficiente fazer as coisas de maneira diferente, para eliminar a poluição. A verdade é que a eliminação da poluição, como a reciclagem, não é gratuita em termos energéticos”. (Georgescu-Roegen, 1979, p. 73 – tradução nossa).
Não existem dados oficiais sobre a quantidade de resíduos industriais gerados anualmente no Brasil. Segundo números da Associação Brasileira de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), entidade que congrega parte das empresas que atuam na coleta de resíduos sólidos, em 2005 foram gerados 69 milhões de toneladas de resíduos industriais (RSI). Desse total, 2,7 milhões são classificados como Classe I, ou seja, perigosos, com risco à saúde pública pelas suas características de inflamabilidade, corrosividade, reatividade, toxicidade e patogenicidade. Dados de outra associação do setor, a Associação Brasileira de Empresas de Tratamento, Recuperação e Disposição de Resíduos Especiais (ABETRE) informam que o país gera cerca de 2,9 milhões de toneladas de resíduos industriais perigosos, dos quais somente cerca de 600 mil toneladas – cerca de 22% - recebem tratamento adequado. Deste volume de resíduos perigosos, 16% vão para aterros Classe I; 5% são processados e 1% é incinerado. Os restantes 78%, segundo a entidade, são depositados em lixões, sem qualquer tipo de tratamento.
Segundo estimativas do Departamento de Meio Ambiente e Sustentabilidade da Câmara Brasil-Alemanha, os investimentos no setor de resíduos totalizaram aproximadamente US$ 2,5 bilhões em 2007, incluindo o setor público e o setor privado. Especialistas do segmento estimam um crescimento de 5% ao ano, durante os próximos cinco anos. A exemplo do mercado de saneamento, o setor de gerenciamento de resíduos é dominado por empresas brasileiras, tanto na prestação de serviços, quanto no fornecimento de equipamentos. Existem algumas empresas de consultoria atuando em associação com empresas estrangeiras, mas sua quantidade ainda é muito diminuta em relação ao potencial do mercado. Nesta área, grandes empresas brasileiras de engenharia já estão realizando projetos no exterior, principalmente na América Central e na África.
Transferência de Tecnologia
“Assim, não é de fato próprio falar-se genericamente em transferência de tecnologia. Trata-se muito mais de uma operação de compra e venda, um comércio explícito ou implícito”. (José Israel Vargas em “Mecanismos de Transferência de Tecnologia para Países do Terceiro Mundo”). A frase do pesquisador e ex-ministro de Ciência e Tecnologia durante a presidência de Itamar Franco, resume bem a situação da transferência de tecnologia no setor ambiental brasileiro, assim como em outros setores.
Desde seu início, a industrialização brasileira foi feita com tecnologias e, muitas vezes, capitais importados. É fato corriqueiro que a internacionalização de capitais geralmente traz tecnologia associada. O crescimento da industrialização na década de 1950 aumentou a instalação de escritórios estrangeiros de consultoria no País, já que as empresas locais não tinham conhecimento na elaboração e condução de projetos. Os fornecedores estrangeiros de equipamentos, por sua vez, mandavam frequentemente suas subsidiárias no Brasil executarem os projetos encomendados pelo governo.
A falta de profissionais capacitados no Brasil fez com que o governo investisse em cursos de pós-graduação; inicialmente na área de engenharia e depois nas demais áreas do conhecimento. É significativo, portanto, o fato de que a pós-graduação foi implantada no Brasil na década de 1960, época dos grandes projetos nacionais.
O vínculo entre a inovação tecnológica e o desenvolvimento ambiental já foi identificado há mais de trinta anos. Foi durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, sediada em Estocolmo, que pela primeira vez a comunidade internacional se reuniu para discutir o meio ambiente em seus aspectos globais e suas interações com as necessidades de desenvolvimento das nações. A conferência em seu décimo oitavo princípio, recomendava que a ciência e a tecnologia devessem, como parte de sua contribuição ao desenvolvimento econômico e social, ser aplicadas para evitar, identificar e controlar os riscos que ameaçam o meio ambiente e para solucionar os problemas ambientais, em benefício do bem comum da humanidade. Tal compromisso foi reafirmado no Rio de Janeiro (ECO 92) e em Joanesburgo (Rio + 10). Da mesma forma, no documento da Câmara de Comércio Internacional (ICC – International Chamber of Commerce) intitulado “Os 13 princípios para alcançar a gestão ambiental”, o 13º item – Transferência de Tecnologia – afirma “que as empresas associadas devem contribuir para transferir moderna tecnologia ambiental e sistemas de gerenciamento, através do setor industrial e público”. (Willums e Guluke, 1992, p.219).
Apesar de não existirem estatísticas oficiais, diversas fontes informam que os contratos de transferência de tecnologia ainda são bastante limitados no setor ambiental, restringindo-se a alguns projetos de exploração energética de biogás e instalações de incineração de resíduos. Indiretamente relacionado com o setor ambiental, na área de biocombustíveis – produção de biodiesel – algumas empresas brasileiras assinaram acordos de transferência de tecnologia com empresas estrangeiras. Outra área com demanda por tecnologias ambientais no Brasil encontra-se entre as empresas multinacionais, as empresas exportadoras e as empresas com algum tipo de certificação (ISO 9000 e 14000, NBR 16000 e OHSAS 18001), já que precisam constantemente melhorar sua atuação ambiental. São compradores de tecnologia também as empresas do setor químico, signatárias do “Responsible Care”, que realizaram inovações em seus processos de produção (redução de emissões, redução de uso da água, etc.) com a incorporação de novas tecnologias e métodos. Outros setores, como o da indústria eletroeletrônica e sucroalcooleira já estão se ocupando com temas como a análise do ciclo de vida de produto (LCA – product life cicle analysis), para determinar os impactos de seus produtos sobre o meio ambiente e preparam-se para novas leis sobre gestão de resíduos sólidos.
Uma parte representativa da transferência de tecnologia entre empresas nacionais e internacionais é realizada pelas câmaras de comércio e consulados, que constantemente trazem missões comerciais e técnicas para o Brasil e conduzem empresários brasileiros em missões no exterior. Além disso, existem os programas de cooperação tecnológica ambiental entre países desenvolvidos e em desenvolvimento como os do MITI (Ministério do Comércio Internacional e Indústria do Japão) GTZ (Agência Alemã de Cooperação) ou do Technology Partnership Initiative, da Inglaterra.
Outro exemplo de cooperação na área de transferência de tecnologia é entre organizações locais e organismos internacionais como a ONU – Organização das Nações Unidas. Exemplo disso é o CNTL – Centro Nacional de Tecnologias Limpas, inaugurado em 1995, em Porto Alegre. O projeto é uma parceria entre o SENAI (Serviço Nacional de aprendizagem Industrial) e a UNIDO / UNEP (Organização para o Desenvolvimento Industrial e Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente).
Na área de pesquisa em tecnologia ambiental o Brasil ainda encontra-se em fase de desenvolvimento. Todavia, em uma das mais famosas publicações sobre o uso eficiente de recursos “Factor Four – Doubling Wealth, Halving Resource Use”, um projeto brasileiro é mencionado com bastante destaque. Trata-se do sistema de transporte público urbano em Curitiba (Curitiba Surface´s Underground), implantado em 1971, pelo então prefeito Jaime Lerner. O projeto é exemplo mundial de planejamento do transporte urbano, reduzindo consumo de combustível e emissão de poluentes.
Para terminar, lembremos que a tecnologia não está nas máquinas, nos processos, nas patentes ou nos manuais. A tecnologia está nas cabeças dos profissionais. Por isso, é importante que o Brasil invista cada vez mais na educação do povo e na capacitação de seus especialistas. Foi assim que países tecnologicamente mais avançados chegaram onde estão: pela educação.
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(imagens: Piet Mondrian)