Os refugiados ambientais

sexta-feira, 26 de novembro de 2010
"O universo inteiro é monótono, mas, precisamente porque queremos nos proteger de sua monotonia assustadora e ilimitada, constituímos um lugar qualquer num "canto". É a única diferenciação na monotonia total do mundo: um trecho de muro, um pouco de obscuridade que nos dissimula sua imensidão sombria."   - Jean Paul Sartre  - Esboço para uma teoria das emoções
A população do mundo vem aumentando num ritmo cada vez mais rápido. A Terra atingiu seu primeiro bilhão de habitantes em 1802 e foi somente 126 anos mais tarde, em 1928, que o número de habitantes dobrou. Em 1961 atingimos três bilhões; em 1999 chegamos a seis bilhões e em 2010 – apenas onze anos depois – somos sete bilhões de pessoas vivendo no globo. Esta imensa população se espalha por quase todos os continentes, formando vastos aglomerados populacionais, principalmente na Ásia, que abriga mais de 60% da população mundial. Extensas regiões, desabitadas quando a pressão populacional era menor, passaram a ser ocupadas por cidades e pela atividade agrícola. Estes fatores fazem com que catástrofes naturais – inundações, tempestades, calor e frio excessivo – tenham um impacto maior, afetando zonas povoadas, provocando destruição e mortandade.

O aquecimento da Terra, causado em parte pelas atividades humanas, fará com que catástrofes naturais relacionadas ao clima sejam cada vez mais frequentes. Chuvas, tempestades e inundações no nordeste do Brasil e em várias regiões da China; incêndios nos Estados Unidos e na Rússia, provocados pelo excesso de calor; nova temporada de violentos furacões nas Antilhas e de inundações na Índia e em Bangladesh. São este os fenômenos climáticos que afetarão imensas regiões, densamente povoadas.
Dependendo da gravidade do acontecimento, milhares ou milhões de pessoas ficarão desabrigados, sem alimentos e impossibilitadas de continuarem a morar nas regiões onde nasceram e cresceram, assim como seus antepassados. Precisam então deslocar-se para fora destas áreas, para outras cidades, até em direção a diferentes países, tornando-se assim refugiados ambientais. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU) em 2010 o mundo já tem cerca de 50 milhões destes refugiados. A mesma organização estima que até 2050, quando terão aumentado bastante os fenômenos naturais provocados pelas mudanças climáticas, serão 200 a 250 milhões de pessoas deixando suas regiões de origem e procurando abrigo em outras paragens. Apenas com um aumento de 60 centímetros no nível dos oceanos – fato tido como bastante provável pelos climatologistas – cerca de 600 milhões de pessoas serão afetadas em todo o mundo. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), reunindo alguns dos mais renomados cientistas dedicados ao estudo do clima, prevê que até 2080 1,1 a 3,2 bilhões de pessoas sofrerão com problemas de escassez hídrica e 200 a 600 milhões enfrentarão a fome; fenômenos causados pelas alterações do clima.
As mudanças podem não ocorrer com a intensidade prevista pelos cientistas. No entanto, existem fortes possibilidades de que a lenta mas gradual mudança da temperatura terrestre – principalmente dos oceanos, que funcionam como o condicionador de ar do planeta – provoque secas, desertificação, inundações, violentas tempestades e grandes variações de temperatura. Estas extremas condições climáticas afetarão a agricultura, a geração de energia, e criação de animais e as demais atividades econômicas das regiões atingidas. É por isso que todos os países precisam se preparar para estas catástrofes, criando sistemas de proteção que possam ser imediatamente acionados, visando auxiliar populações vítimas destas emergências, evitando que se tornem refugiados (ou migrantes) ambientais.
(imagens: Giotto di Bondone)

A filosofia de Baruch Espinosa

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

"(...) Júpiter deliberou valer-se de novas artes para conservar esse gênero (o humano) infeliz: dois foram, principalmente, esses artifícios: um, misturar males verdadeiros em sua vidas; outro, envolvê-las em mil atividades e trabalhos a fim de entreter os homens e desviá-los quanto possível do diálogo com o próprio espírito ou, pelo menos, do desejo daquela incógnita e vã felicidade."  - Giacomo Leopardi  -  Opúsculos Morais 
Biografia
Baruch (Benedito) Espinoza (também grafado por alguns como Spinoza), nasceu em Amsterdam, na Holanda, em 1632. Descendia de uma abastada família de comerciantes originários da Espanha, cujos antepassados haviam sido expulsos de Portugal. Espinoza cresceu na comunidade judaica portuguêsa de Amsterdã e, ainda pequeno, iniciou estudos da Tora e do Talmud. Jovem, passou a freqüentar a escola de Francisco van den Enden, doutor de formação católica que se tornou livre pensador - o que à época era quase equivalente a ser ateu - despertando a ira dos agrupamentos de fanáticos. Foi na escola de van den Enden que Espinoza travou contato com outros pensadores clássicos, como Cícero, Sêneca e Aristóteles; estudou a filosofia medieval e a filosofia moderna, entre os quais Descartes, Bacon e Hobbes. Neste círculo intelectual Espinoza também teve oportunidade de se aprofundar na matemática, geometria e as ciências de sua época, principalmente na obra de Galileu.
Por volta dos 22 anos, Espinoza passou a ter problemas com a sinagoga que frequentava. Isto porque, seu pensamento não se coadunava com as orientações ortodoxas da religião judaica. Inicialmente, os doutores da sinagoga ofereceram-lhe uma pensão anual para que se calasse. A oferta não foi aceita, tendo somente contribuído para que a firmeza de propósitos do pensador ainda aumentasse mais, precipitando a situação de confronto com a instituição. Com a morte de seu pai em 1654, a posição de Espinoza na comunidade tornou-se insustentável, quando um fanático tentou esfaqueá-lo. Espinoza escapou incólume do atentado, mas logo em seguida foi excomungado e expulso da sinagoga em 1656.
Na evolução do seu pensamento, dada a diversidade de interesses e de temas estudados, Espinoza sofreu muitas influências. Uma das primeiras foi, segundo o pensador brasileiro Alcântara Nogueira, o filósofo medieval judeu Bahya ou Bhai bem Josef bar Pakuda. Aristotélico, mas também ligado ao neoplatonismo, foi autor do livro “Obrigação dos corações” (Hobot há-Lebatot, em hebraico). Bahya desenvolveu idéias místicas e tentou dividir a ciência em natural, matemática e divina. Na argumentação utilizada em sua obra Bahya escreve, segundo Alcântara Nogueira, “como se fossem três axiomas que oferecessem base à argumentação de um teorema, à semelhança de Espinoza, em forma “geométrica” e que assim esse processo teria antecedido a Ética” (Nogueira, 1974). Outro pensador estudado por Espinoza foi Levi bem Gerson, conhecido pelos cristãos medievais como Magister Leo Hebraeus. Gerson foi um estudioso das Escrituras e filósofo que defendia a eternidade do mundo, criticando a criação ex nihilo. Além desses pensadores medievais, Espinoza também sofreu forte influência de dois contemporâneos seus, Juan de Prado e Uriel da Costa; ambos da mesma comunidade judaica à qual havia pertencido. Prado era um médico emigrado da Espanha, suspeito de incredulidade, que teve graves disputas religiosas com a sua sinagoga. Uriel da Costa era português de Porto, educado no catolicismo e reconvertido ao judaísmo. Na comunidade judia de Amsterdã fez graves críticas à religião, mas posteriormente se retratou. No entanto, pouco tempo depois, voltou a criticar o judaísmo. Causando grande oposição na comunidade, foi excomungado. Mais tarde, assaltado por dúvidas e remorsos, Uriel da Costa suicidou-se – fato que muito impressionou Espinoza.
Depois de ter sido excomungado, Espinoza passa a viver em uma aldeia perto de Amsterdã, onde começa a praticar o ofício de cortador de lentes para telescópios. Isolado da comunidade judaica, leva uma vida pacata e modesta. No campo intelectual tornara-se uma referência, travando contato com representantes de correntes religiosas liberais, cientistas e outros filósofos. Em 1677 foi convidado, por influência de Leibniz, a ocupar a cátedra de filosofia da universidade de Heildelberg, na Alemanha – cargo que não aceitou para poder manter sua independência intelectual.
As obras de Espinoza forma escritas ao longo de menos de duas décadas. Seu primeiro trabalho, redigido em torno de 1660 foi o Breve Tratado sobre Deus, o homem e a felicidade. O escrito permaneceu inédito, tendo sido descoberto e publicado no século XIX. O Tratado da Reforma do Entendimento é datado de 1661 e sempre foi considerado uma introdução à obra de do filósofo. A obra-prima do pensador foi a Ética Demonstrada à maneira dos geômetras, ou simplesmente Ética. Esta foi iniciada em torno de 1661, tendo sido publicada postumamente em 1667, juntamente com o Tratado Político e suas Cartas. O Tratado Político-Teológico, uma das primeiras obras de exegese bíblica utilizando métodos racionais de crítica histórico-filosófica, foi publicada anonimamente em 1670.
Deus e o mundo
Logo no início de sua carreira filosófica, Espinoza escreve no Tratado da Reforma do Entendimento que a busca do prazer e das honras trazia mais males do que bem e que todos os males da humanidade derivavam da busca destes bens. Espinoza passou então a inquirir se o verdadeiro bem, “uma vez encontrado e adquirido, proporcionasse a fruição eterna da suprema e contínua alegria.” (Espinoza, 1987). Este era a base intelectual sobre qual o pensador pautaria toda a sua vida prática e intelectual. Em sua obra máxima, Ética, Espinoza nos dá uma visão do conceito de Deus, único em toda a filosofia ocidental. Diferentemente de Descartes e outros autores, Espinoza não se propõe a provar a existência de Deus.
A sua Ética já inicia a parte I com a seguinte definição: “Entendo por causa de si aquilo cuja essência implica a existência; ou, em outras palavras, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão como existente.” (Espinoza, 2002). Isto, cuja existência é evidente, é a substância. Enquanto Descartes defendia a existência de diversas substâncias, para Espinoza só existia uma substância, cuja existência é evidente aos sentidos: “Entendo por substância o que é em si e se concebe por si: isto é, aquilo cujo conceito não tem necessidade de outra coisa, do qual deve ser formado.” (ibidem). O argumento seguinte é que esta substância é Deus, como Espinoza especifica na VI definição da parte I da Ética: “Entendo por Deus um ser absolutamente infinito, isto é, uma substância constituída por uma infinidade de atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita.” (ibidem).
Em suma, Espinoza pressupõe que a substância é necessariamente existente, e, por isso, infinita. A partir deste raciocínio, Espinoza afirma que Deus é necessidade absoluta e dele procedem os infinitos atributos (o que se afirma ou se nega do sujeito) e infinitos modos (formas de ser) de que é formado. A seguir, Espinoza define que entre os modos da substância estão todas as coisas, já que estes (os modos) são infinitos. Portanto, cada ente individualmente é um modo da substância e parte dela. O mundo é a “conseqüência” necessária de Deus, como Reale e Antiseri comentam, referindo a este ponto do pensamento do filósofo (Reali e Antiseri, 1990). Existem, pois, duas maneiras de ser: a da substância e a de seus atributos, e a das manifestações da substância. Às manifestações da substância Espinoza dá o nome de modos da substância. “Deus, demonstra Espinosa, não é causa existente transitiva de todas as coisas ou de todos os seus modos, isto é, não é uma causa que se separa dos efeitos após havê-los produzido, mas é causa eficiente imanente de seus modos, não se separa deles, e sim se exprime neles e eles O exprimem.” (Chauí, 1995).
Em última instância, este pensamento significa que nós somos formas de Deus e que todo o universo é forma de Deus. Isto, por outro lado, não quer dizer que Deus se limite ao universo “material” que conhecemos, já que Espinoza fala em infinitos modos. Desta forma, podem existir modos que nós desconhecemos, já que o res extensa e o res cogitans, através dos quais percebemos o mundo, são apenas dois dos infinitos atributos da substância, segundo o pensador. Cabe aqui lembrar a influência de Giordano Bruno sobre o pensamento de Espinoza, no conceito de mundos infinitos (influência esta ressaltada pelo pensador alemão do século XIX e XX Wilhelm Dilthey, mas negada por outros pensadores).Por identificar Deus (ou a substância) à matéria, Espinoza foi classificado como filósofo ateu; no mínimo monista. Em seus textos, principalmente na Ética, caso se substitua a palavra “Deus” ou “substância” pela palavra “matéria” as argumentações do filósofo ficam bem mais claras.
O conhecimento
Espinoza distingue três formas de conhecimento:
a) O empírico, ligado às percepções sensoriais;
b) O conhecimento segundo a ratio (razão), representado pelas ciências;
c) O conhecimento da ciência intuitiva, que é a visão das coisas na visão do próprio Deus.
As coisas, diz Espinoza, não são como no-las apresenta a imaginação, baseada no conhecimento empírico; mas como são apresentadas pela razão. Desta maneira, analisando o mundo com a razão, sabemos que este é manifestação da substância eterna e infinita (conforme definição VI da parte I da Ética) e, portanto, necessário. Considerar o mundo necessário (não podendo não existir), significa considera-lo “sub specie aeternitatis”, sob certa espécie de eternidade. Da mesma forma, se o mundo e tudo que existe é necessário, não há lugar para uma vontade livre, uma vontade não condicionada. Qualquer vontade é determinada por fatores conhecidos ou desconhecidos, que por sua vez, são determinados por outros fatores, até que em determinado ponto da seqüência a vontade (ou a mente) não tenha mais controle sobre estes fatores. Desta forma, a vontade é determinada em última instância por fatores que desconhecemos e sobre os quais não temos controle. Portanto, para Espinoza a vontade não é livre. Esta idéia será posteriormente retomada por grandes pensadores como Schopenhauer e Nietzsche, que também negarão a existência do livre-arbítrio.
Como conseqüência deste raciocínio, Espinoza deduz que agimos necessariamente pela vontade de Deus (ou pela vontade/impulsos da matéria). A partir deste pressuposto (ou corolário, como escreve o filósofo) Espinoza infere toda uma ética baseada na vontade, na compreensão dos obstáculos da vida; separando aquilo que podemos mudar daquilo que não podemos. Toda esta ética é baseada na constatação de que tudo que ocorre, acontece de maneira predeterminada.
As paixões
As paixões, diz Espinoza, não são o resultado da fraqueza humana, da fraqueza da vontade (mesmo porque esta não é livre), mas resultado da potência da natureza. Por isso, diz o filósofo, as paixões não devem ser condenadas, mas explicadas e compreendidas. É bastante significativa a semelhança destas idéias e análises com as que quase 300 anos depois foram feitas por Sigmund Freud. Referindo-se aos conceitos de Freud sobre a agressividade, escreve a psicanalista Betty Fuks: “Na realidade, se ele próprio advogava o fato de que no homem, amor e ódio intensos convivem conflitantes (ambivalência de sentimentos), e que as pulsões são aquilo que são – nem boas nem más, dependendo do destino que seguem na história do sujeito e da civilização – tinha de reconhecer que o mal, a destruição e a desumanização dos laços sociais não são apenas momentos efêmeros, fadados à superação no futuro.” (Fuks, 2003). Estas conclusões se assemelham bastante às conclusões de Espinoza sobre as paixões.
As paixões, diz o filósofo, são uma tendência a permanecer no próprio ser, como se fosse um instinto de conservação, chamado por Espinoza como conatus. Quando se referem à mente chama-se vontade, quando ao corpo, chama-se apetite. Aquilo que favorece positivamente o conatus, Espinoza chama de alegria. O que atua negativamente em relação ao conatus, o filósofo chama de dor. Comparando as paixões às forças da natureza, Espinoza constata que não temos controle sobre elas e uma (paixão) leva à outra. Isto cria, segundo ele, a ilusão da liberdade porque os homens são “conscientes de suas ações e ignorantes pelas quais elas são determinadas”. Gilles Deleuze chama este engano de a ilusão psicológica da liberdade. “(...) retendo apenas efeitos cujas causas ignora essencialmente, a consciência pode julgar-se livre, e confere então ao espírito um poder imaginário sobre o corpo, quando na verdade não sabe sequer o que “pode” o corpo em função das causas que o fazem realmente agir.” (Deleuze, 2002).
Virtude sem finalismo
Para Espinoza o mundo não tem finalidade alguma (pelo menos que nós saibamos). A maneira de analisarmos os acontecimentos, a história, a natureza, sempre de acordo com alguma finalidade, é próprio dos homens, quando estes enxergam tudo sob a forma empírica do conhecimento. Sob a perspectiva sub specie aeternitats não há teleologia alguma por trás das coisas; elas apenas são. Conseqüentemente também não existe o perfeito e o imperfeito, o bem e o mal. Tais conceitos são apenas comparações que o homem faz entre o objeto que produz e outros na natureza (quando na verdade é tudo parte da natureza). Da mesma forma, bem e mal não são coisas em si, mas modos de pensar; o bem sendo o que é útil e o mal o que não é.
O homem que entende todas as coisas, acontecimentos e situações como procedentes de Deus (como seus modos e atributos), sabe que elas são Deus e ele mesmo é Deus (ou está em Deus). Retomando então suas raízes socráticas e estóicas, Espinoza afirma que a verdadeira bem-aventurança não é o prêmio da virtude, mas a virtude em si.
Política e Estado
Os homens, sujeitos às paixões e iras, são inimigos uns dos outros por sua própria natureza. Todavia, a exemplo daquilo que já havia sido afirmado por Hobbes, Espinoza diz que através de um pacto os homens constroem um Estado. Desta forma, os homens podem viver mais facilmente ao abrigo das intempéries e em relativa paz uns com os outros. Nesta forma de organização, o regime ideal é a democracia, onde todos têm o mesmo direito e nenhum poderá oprimir o outro, já que a organização política tem como fim assegurar a liberdade de todos os membros. Joseph Moreau escreve que “o Estado, assegurando a paz pública, não somente permite os homens cooperar tendo em vista o bem-estar material e as comodidades da vida, senão que é ainda e unicamente na cidade que o homem pode alcançar a perfeição de sua natureza, realizar o ideal da vida racional.” (Moreau, 1982).
Conclusão
O pensamento de Espinoza introduziu muitas idéias novas na filosofia. Reduzindo a realidade à substância e admitindo que esta seja infinita e eterna, chamando-a de Deus, Espinoza transformou-se no mais célebre dos monistas ateus. Todavia, toda a sua metafísica tem uma falha: Espinoza parte do pressuposto de que à realidade do mundo correspondem as nossas percepções. Mais tarde, Kant provará que o mundo é sempre uma intermediação entre o que existe e nossa percepção; não existindo uma realidade absoluta. Mesmo assim, Espinoza acabou influenciando outros pensadores como Hegel, Marx e Nietzsche, continuando a influenciar outros pensadores modernos.
Bibliografia
BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor: 1997, 437 pgs.
DELBOS, Victor. O Espinosismo. São Paulo. Discurso Editorial: 2002, 274 pgs.
BÜCHNER, Luiz. Força e Matéria. Lisboa. Livraria Chardron, de Lello & Irmão Ltda.: 1926, 386 pgs.
CHAUÍ, Marilena. Espinosa uma filosofia da liberdade. São Paulo. Editora Moderna: 1995, 112 pgs.
DELEUZE, Gilles. Espinosa filosofia prática. São Paulo. Editora Escuta: 2002, 135 pgs.
ESPINOZA, Baruch de. Ética demonstrada à maneira dos geômetras. São Paulo. Editora Marin Claret: 2002, 423 pgs.
ESPINOZA, Bento de. Tratado da reforma do entendimento. Lisboa. Edições 70: 1987, 109 pgs.
FUKS, Betty B. Freud & Cultura. Rio de Janeiro. Zahar Editor: 2003, 72 pgs.
MOREAU, Joseph. Espinosa e Espinosismo. Lisboa. Edições 70: 1982, 106 pgs.
NOGUEIRA, Alcântara. O método racionalista – história em Spinoza. São Paulo. Editora Mestre Jou: 1976, 205 pgs.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia, Vol II. São Paulo. Paulus Editora: 1990, 956 pgs.
SCRUTON, Roger. Espinoza. São Paulo. Edições Loyola: 2001, 135 p.
(imagens: esculturas da Suméria)

O novo governo e a questão ambiental

sábado, 13 de novembro de 2010
"Nunca, desde que me dei por gente, já disse "Senhor!" para alguém. E como é fácil dizer "Senhor!", quão grande é a tentação. De centenas de deuses me aproximei, e a cada um deles olhei no rosto e com ódio pela morte de seres humanos" -  Elias Canetti - Sobre a morte

Passaram-se as eleições e o País volta à sua rotina normal. A candidata eleita e seu partido começam a escolher sua equipe de governo e dão algumas indicações de como – e com quem – pretendem governar a nação. Esta é a hora em que os ganhadores analisam e discutem os pedidos de todos aqueles que ofereceram apoio político durante a campanha. Fato perfeitamente normal, que acontece em qualquer democracia. O problema é quando ministérios, autarquias e estatais são loteados e transformados em cabide de emprego para políticos e protegidos; gente que muitas vezes não tem preparo profissional ou moral para ocupar estes postos na administração pública. O mandato começa em 1º de janeiro de 2011, mas o novo governo já precisa ser montado e estabelecer suas prioridades, algumas brevemente mencionadas por Dilma em seu discurso de vitória.
Durante a campanha presidencial tanto  Serra quanto Dilma pouco falaram da questão ambiental. Se o assunto foi mencionado, isto aconteceu somente como tema de fundo de algum pronunciamento. Faltaram – de ambos os candidatos finalistas – colocações claras sobre seu posicionamento em relação às mudanças pretendidas no Código Florestal, tema que conta com cada vez menos apoio. Pouco se falou concretamente da questão do saneamento, apenas mencionado no contexto do PAC. Faltou discutir a necessidade de desenvolvimento de um plano nacional de uso dos recursos hídricos, iniciativa de máxima importância em um país que tanto depende da agricultura e de hidrelétricas. Também não falaram os candidatos sobre o que pensam em relação ao desenvolvimento da matriz energética brasileira, nem mencionaram como pretendem associar o desenvolvimento da região amazônica com a preservação de seus recursos naturais. A implementação da Lei Nacional de Resíduos Sólidos não foi sequer mencionada em qualquer discussão.
Por coincidência, realizou-se exatamente durante o período eleitoral brasileiro a décima Conferência sobre Biodiversidade, em Nagóia, no Japão. No relatório final do encontro, divulgado alguns dias depois, fica evidente que a situação ambiental em todo o mundo é preocupante. Já é consenso entre os especialistas, que a quantidade de recursos naturais necessários para manter a população mundial é maior do que sua disponibilidade – precisamos de 25% mais.
Os estoques mundiais de água, pescados, florestas e solos cultiváveis estão diminuindo rapidamente.
Por outro lado, com o aumento crescente da população, a procura destes recursos só tenderá a aumentar. A falta de áreas de expansão para a agricultura e a escassez de água provocarão aceleração da pobreza mundial, que já está crescendo devido à crise econômica pela qual passam muitos países. Uma das mensagens da Conferência – direcionada principalmente a nações em ritmo de rápido crescimento, como a China, a Índia e o Brasil – é que é preciso pensar no desenvolvimento sustentável, “crescer sem comprometer as condições de crescimento das próximas gerações”.
Este é o desfio do próximo governo na área ambiental: aliar o crescimento econômico com a preservação dos recursos naturais. Não se trata da preservação pela preservação. Trata-se da conservação de riquezas que serão muito importantes para a sociedade brasileira no futuro. O crescimento a todo custo tendo como referência somente o PIB, o produto interno bruto, deve ser substituído por um desenvolvimento baseado no IDH, o índice de desenvolvimento humano.
(imagens: pinturas maia e azteca)

A economia e sua relação com a ciência e a tecnologia: pressupostos teóricos

sexta-feira, 5 de novembro de 2010
 
"Aqui posso reinar, exercer livremente o império. E, desde que reinar quis e posso, minha ambição se concretiza ainda que seja no Inferno. Mais vale reinar no Inferno que obedecer no Céu." (Palavras de Lúcifer)     John Milton  -  O paraíso perdido 


Nossa atividade econômica está em grande parte baseada em certos princípios científicos e desenvolvimentos tecnológicos que tiveram sua origem no Renascimento. A efervescência social deste período, aliada às Grandes Navegações e uma série de outros eventos culturais e políticos (e.g. a Reforma protestante, o despertar do pensamento científico, o aparecimento dos Estados absolutistas) deram um impulso econômico e técnico à Europa como nunca houvera acontecido antes. O desenvolvimento do comércio, aliado às novas rotas abertas pelos navegadores portugueses e espanhóis – oferecendo acesso a novos mercados fornecedores –, revolucionou a economia européia, criando demanda para novas técnicas no comércio, na agricultura, na navegação e no artesanato industrial. Sobre este período, escreve o historiador Fernand Braudel:
Em suma, bem ou mal, uma certa economia liga entre si os diferentes mercados do mundo, uma economia que não só traz em sua esteira algumas mercadorias excepcionais, mas também os metais preciosos, viajantes privilegiados que já dão a volta ao mundo. Os dobrões espanhóis, cunhados com o metal branco da América, atravessam o Mediterrâneo, atravessam o império turco e a Pérsia, atingem a Índia e a China. A partir de 1572, via Manila, o metal branco americano atravessa também o Pacífico e, em fim de viagem, chega uma vez mais à China, agora por essa nova rota (Braudel, 1987, p.30).
A classe social que representa esta nova fase da história, a burguesia comercial, tem forte influência no desenvolvimento da política, economia e ciências deste período. Sobre a relação desta nova elite com o desenvolvimento científico da época, comenta Escobar:
Na leitura que “espontaneamente” se faz da revolução no pensamento provocado pela Física, se situam, sobretudo os temas colonialistas do poder do “homem sobre os meios”, mas de um poder decididamente do “homem burguês”, que então sentia-se o “homem universal” e contrastava com o homem medieval contemplativo. A Física é aqui compreendida como ciência ativa (física de Galileu, de Descartes, de Hobbes), como um testemunho do homo faber, como a estratégia e a prática desta dominação da natureza (Escobar, 1975, p. 91).
No desenvolvimento do capitalismo, desde sua fase mercantilista entre 1400 e 1700 (BURNS, 1971), passando pelo início da industrialização no final do século XVIII até os dias atuais, sempre houve estreita interação das atividades econômicas com a ciência e tecnologia. No campo das idéias, a ciência desenvolveu teorias explicativas da realidade, que posteriormente seriam aplicadas à prática, através da tecnologia, atendendo demandas econômicas concretas. Exemplo desta relação é o desenvolvimento da balança hidrostática. Em 1586 o filósofo e cientista Galileu Galilei (1564-1642) construiu um mecanismo experimental, destinado ao estudo da força de impulsão exercida pelos líquidos sobre os corpos nele mergulhados. Este invento, conhecido como balança hidrostática, contribuiu para a posterior criação do relógio de pêndulo e desenvolvimento de uma bomba destinada à irrigação (GOMES, s/d). A física de Isaac Newton (1642–1727) é outro exemplo deste processo. Elaborada com base nos princípios da física de Kepler e Galileu e utilizando-se de conhecimentos matemáticos de Euclides, sua Lei da Gravitação Universal transformou-se no fundamento da mecânica clássica. De sua teoria, resultariam entre o século XVIII e XIX a física clássica, a mecânica, a descrição da eletricidade, o magnetismo, a ótica e a termodinâmica (FEULNER, 2010). Formulações teóricas somadas a experiências práticas resultariam em conhecimentos, que posteriormente possibilitariam o aparecimento de vários inventos, como a máquina a vapor. No entanto, segundo Granger (1994) “(...) podemos afirmar que as teorias científicas só tiveram realmente relações estreitas e orgânicas com a técnica a partir da Grande Revolução Industrial européia do século XVIII”.
Ainda com relação à interação das atividades econômicas com a ciência e a tecnologia, é preciso considerar que este processo sempre foi largamente influenciado pela realidade material da sociedade onde se desenvolveu. Comentando a relação da economia com as atividades intelectuais (nas quais se incluem a elaboração de teorias científicas e o desenvolvimento de novas tecnologias), escreve Marx:
(...) na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência (Marx, 1974, p. 135-136).
Como exemplo desta influência da realidade material sobre a vida social, tome-se o uso do vapor para a geração de energia e mecanização de processos industriais. Esta tecnologia foi desenvolvida por James Watt na Inglaterra do final do século XVIII e aplicada inicialmente ao setor de tecelagem e mineração, disseminando-se depois para vários outros usos industriais, a partir do início do século XIX (BURNS, 1971) e (DOBB, 1974). Graças a estas inovações tecnológicas, barateando e aumentando a produção, a Inglaterra atingiu uma posição de hegemonia na produção e venda mundial de vários produtos industrializados. Assim, os industriais ingleses tornaram-se a nova classe dominante da sociedade inglesa, desbancando a antiga elite dos donos de terra. Sobre a relação da economia com a tecnologia, atendendo a interesses de classe, escreve Andrew Feenberg:
Escolhas sociais intervêm na seleção da definição do problema, bem como de sua solução. A tecnologia é socialmente relativa e o resultado das escolhas técnicas é um mundo que sustenta a maneira de vida de um ou outro influente grupo social. Nesses termos as tendências tecnocráticas das sociedades modernas poderiam ser interpretadas como efeito de limitar os grupos que podem interferir no design junto a peritos técnicos e às elites corporativas e políticas a que servem (Feenberg, s/d, p. 8).
A crise ambiental que atravessamos é representada pela crescente exaustão dos recursos naturais, como resultado da atividade econômica, aliada aos avanços tecnológicos da ciência. Todavia, a condução da economia, em seus aspectos práticos, atende aos interesses das “elites corporativas e políticas” (Feenberg); os “proprietários dos meios de produção”, na expressão de Marx. A ciência e a tecnologia se desenvolvem influenciadas pelas demandas práticas e teóricas levantadas pela economia. Assim, condicionada pela agenda de interesses dos grupos dominantes, a atividade científica acaba projetando sobre a natureza esta influência recebida. Sob este ponto de vista, ciência e a tecnologia funcionam como uma metafísica (no sentido aristotélico de uma ciência que fornece o fundamento a todas as outras); uma interpretação ou leitura da natureza feita por grupos sociais que partem de premissas supostamente validadas (através de sua visão de mundo) e têm o poder de impor esta visão aos demais grupos. Heidegger, em A questão da técnica, escreve a respeito desta relação do homem com a ciência e a tecnologia:
O comportamento de “investidor” vindo do homem, de uma forma correspondente, revela-se em primeiro lugar na aparição da ciência moderna, exacta da natureza. O modo de representação próprio desta ciência persegue a natureza considerada como um complexo calculável de forças. A física moderna não é uma física experimental por aplicar à natureza aparelhos que a interroguem, mas inversamente; é porque a física – já como pura teoria – a coloca na situação (stellt), de se mostrar complexo calculável e previsível de forças que a experimentação é (bestellt) encarregada de interrogar a fim de que se saiba se e como a natureza assim intimada (stellt) responde ao apelo (Heidegger apud Macedo 1985, p. 119).
Nesta linha de análise fica evidente que a crise ambiental tem origem nas atividades econômicas, influenciadas pelas idéias e expectativas das classes ou grupos política e economicamente dominantes em todo o mundo. A crise ambiental é, portanto, essencialmente uma crise de visão do mundo, da natureza e do papel do ser humano neste contexto. Para que possamos ultrapassar esta situação crítica, seria necessário no plano das idéias: a) renunciar a uma visão metafísica da natureza, fruto de uma visão elaborada pelos grupos dominantes, que se manifesta também no funcionamento da economia e sua relação com a natureza; e, consequentemente b) reavaliar os paradigmas que devem nortear os objetivos e a condução da economia, visando gradualmente reduzir seu impacto sobre a biosfera e sobre os recursos não renováveis e proporcionar bem estar a um numero maior de pessoas.
Bibliografia
BRAUDEL, Fernand. A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro. Editora Rocco: 1987, 76 p.
BURNS, Edward M. História da civilização ocidental – Vol. 1 e Vol. 2. Porto Alegre. Editora Globo: 1971, 581 p.
DOBB, Maurice. A evolução do capitalismo – 4ª edição. Rio de Janeiro. Zahar Editores: 1974, 482 p.
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(Imagens: arte indígena brasileira)