Perguntando é que se aprende (XVI)

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Começa mais um período de eleições municipais no Brasil e novamente os canais de TV e as emissoras de rádio são obrigados a transmitir a propaganda eleitoral - e nós somos forçados a assistir a este show de contorcionismo moral. Mais um motivo para não ligar a TV (cuja programação continua ruim, com raríssimas exceções) e fazer outra coisa, como ler um livro ou o jornal - pelo menos para aqueles que não têm TV a cabo (se bem que de modo geral a programação da televisão paga também seja medíocre).
Mas, voltemos à campanha: um verdadeiro show de editoração de imagens e de textos de ficção. De repente, todos os candidatos - principalmente aqueles visando arrematar o cargo de prefeito - aparecem com projetos mirabolantes, na exata medida para resolver os problemas da falta de creches, atendimento médico, transporte, escolas e vários outros males com os quais a administração pública sempre aflige os cidadãos. É pouco antes das campanhas eleitorais, que os candidatos se põem a meditar profundamente sobre a situação da cidade e têm seus insights de bons projetos - que evidentemente serão submetidos a um tratamento plástico-cosmético por uma equipe de marqueteiros. 
Algumas destas propostas chegam até a parecer sérias e reais e tem-se a impressão de que talvez pudessem ser postas em prática, trazendo benefícios para a população. O estranho é que se o candidato não ganha a eleição, quase sempre sua proposta de projeto desaparece. Mas se a proposta do candidato derrotado é tão boa, por que o vencedor não coloca em prática esta ideia de seu oponente? Será que o bem da população não deveria ser o objetivo principal de qualquer candidato, não importando quem seja o autor da ideia? Ou será que as propostas dos candidatos derrotados eram mesmo falácias, sem possibilidade de execução?
As conclusões a que se chega em tal situação são: A) ou a proposta dos candidatos derrotados eram impraticáveis, empulhações para enganar o leitor durante o programa eleitoral; o que acaba fazendo com que se duvide de todas as propostas de todos os candidatos; ou B) os projetos (ou alguns deles) dos candidatos derrotados são bons, mas o ganhador é egocêntrico, não reconhece os méritos de seu oponente e não tem interesse em colocar em prática uma boa proposta.
Como corolário de A) e B) vemos que raramente um candidato eleito coloca em prática as boas propostas de seus oponentes vencidos, então: A´) quase sempre aquilo que os candidatos propõem é fantasia irrealizável (e por isso não é colocado em prática); ou B´) quase sempre os eleitos realizam somente seus próprios projetos, mesmo que existam outros de qualidade.
Como consequência de A´ e B´, não seria possível concluir que é quase certo que candidatos eleitos realizem projetos próprios (ou seja, de seus marqueteiros) e que estes muitas vezes são de baixa qualidade? Por final, cabe outra pergunta: será que são os melhores candidatos com as melhores propostas, que efetivamente ganham as eleições? E nós cidadãos, como ficamos nessa? Continuamos sendo os idiotas que são forçados a sempre financiar (com nossos impostos) esta farsa grotesca?

Mudanças climáticas e escassez de alimentos

domingo, 26 de agosto de 2012
"Que o mistério da vida se reduza à conversão de um acaso em necessidade, que a vida não seja senão um acidente no universo e o homem um simples nômade, sem eira nem beira, quantos sábios desiludidos e cínicos já não no-lo disseram?"  Constantin Noica  -  As seis doenças do espírito contemporâneo

A mídia nacional e internacional informa que o mundo poderá passar por mais uma escassez de alimentos nos próximos meses. A crise, segundo a Agência das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), ainda não tem as proporções daquela ocorrida no biênio 2007-2008, mas já começa a preocupar. Tanto assim, que a França e os Estados Unidos cogitam convocar o G-20 (as 19 maiores economias do mundo mais a União Européia) para que se pronuncie em conjunto sobre o assunto. Para muitos analistas tal providência seria importante, já que impediria que se repetissem os erros cometidos há cinco anos, quando muitas nações – inclusive grandes produtores de alimentos como a Índia – restringiram suas exportações. Outro aspecto é evitar que países importadores de commodities agrícolas se apressem em acumular grandes estoques. A falta de oferta aliada ao aumento da demanda provocaria uma escalada dos preços dos alimentos, que afetaria toda a cadeia alimentar mundial, prejudicando as nações mais pobres; exatamente aquelas que dependem de importações de alimentos para suprir sua população.
A origem do problema está nas condições climáticas adversas pelas quais grandes países produtores de alimentos, como os Estado Unidos, o Brasil e a Rússia, passaram nos últimos meses – fato que acabou comprometendo a colheita de diversos produtos agrícolas. A seca que assola os Estados Unidos deve dizimar um sexto da safra de milho e parte significativa da de soja, insumos fundamentais para a alimentação do gado. Como conseqüência, também poderá ocorrer aumento no preço da carne e dos laticínios. Na Rússia, as altas temperaturas do verão também prejudicaram a safra do trigo. No Brasil, as chuvas comprometeram parte da safra de cana-de-açúcar, fato que terá uma influência na produção de açúcar, produto do qual o Brasil é o maior exportador mundial. A colheita de arroz – principal fonte de alimento de parte considerável da população mundial – não sofreu qualquer abalo, felizmente.
Os acontecimentos, no entanto, já provocam aumento no preço dos alimentos. Segundo o jornal O Estado de São Paulo, o preço do milho já subiu 23% no mês de julho e o trigo 19%. Em média, o preço dos alimentos no mundo sofreu um incremento de 6% no mês de julho, em comparação com o mês anterior. A redução da produção de alimentos motivada por fatores climáticos será sentida, com mais ou menos rigor, pela maioria das pessoas em todos os países. Enquanto que no Brasil, grande produtor agrícola, poderá ocorrer uma alta temporária no preço de certos produtos, em outros países, como o Egito e o Paquistão, o custo se elevará tanto que a população sem recursos poderá passar fome.
Outro aspecto desta situação é que de todo alimento produzido no mundo cerca de 35% é destinado à produção de forragem para alimentação de animais e 5% é destinado à fabricação de biocombustíveis e outros produtos industriais. Assim, ocorrendo uma queda na produção agrícola, aumentam os preços em diversas cadeias produtivas da economia mundial.
Fica claro, mais uma vez, o quanto nosso sistema econômico mundial e nossa própria sobrevivência individual estão relacionados com a natureza. Fatores climáticos, em parte influenciados por nossas próprias atividades, podem exercer uma profunda influência na história humana, provocando fome, crises econômicas, guerras e mortes.   
(Imagens: fotografias de James Reeve)

da série "Assim se vive no Brasil"

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Nem sei se posso, mas quero
(entrevista de Eduardo Giannetti a Juliana Sayuri publicada no O Estado de São Paulo de 19/08/12) 

O deslumbramento pelo consumo não pode durar para sempre. Em algum momento a sociedade brasileira precisará amadurecer, afirma filósofo
 
Sorry, brazucas... Em um breve e irônico post publicado nessa semana na revista americana Forbes, o jornalista Kenneth Rapoza endereçou críticas aos consumidores brasileiros: "Não há status em um Toyota Corolla, Honda Civic, Jeep Grand ou Dodge Durango. Definitivamente, vocês estão sendo roubados".
Estamos? Estamos. E não só nas cifras milionárias desembolsadas para adquirir carrões e outros luxuosos mimos (sem os quais viveríamos muito bem, obrigado). "Estamos vivendo uma corrida armamentista do consumo", critica o economista e filósofo Eduardo Giannetti, autor de O Valor do Amanhã: Ensaio sobre a Natureza dos Juros e do best-seller Felicidade: Diálogos sobre o Bem-estar na Civilização (ambos Companhia das Letras).
Para Giannetti, nós brasileiros estamos dispostos a pagar preços estratosféricos por carros importados (luxuosos e nem tanto), pois eles nos conferem a ilusória ideia de status. São "bens posicionais", que hierarquizam a sociedade na antiga fórmula quanto mais caro, mais exclusivo; quanto mais exclusivo, mais status. "Primeiro é um tênis de marca, depois um carro importado, um iate, um jatinho, uma viagem a Marte. A corrida sempre se renova", diz. É o carro do ano, o look exclusivo da fashion week, o restaurante badalado, a deserta ilha paradisíaca e outras extravagâncias de gente chique. Para serem almejados, os objetos devem continuar um privilégio de poucos, fora do alcance dos plebeus. Nessa lógica, o diamante só brilha se refletir nos olhos dos outros.
Na quinta-feira, Giannetti recebeu o Aliás no seu apartamento no bairro paulistano de Vila Madalena. Ph.D. pela Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e professor do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) de São Paulo, Giannetti costura economia e filosofia para discutir por que os ideais de beleza, poder e riqueza abalam a psique humana de uma maneira quase irracional. "Por que nos deixamos levar pelas promessas desses bens posicionais? Por que somos iludidos por eles?", questiona. Para responder à questão, Giannetti busca na estante O Livro das Citações: Um Breviário de Ideias Replicantes, de sua autoria, com páginas marcadas por post its coloridos, e cita o poeta satírico Petrônio: "Só me interessam os bens que despertam no populacho a inveja de mim por possuí-los".
Conversamos numa sala ampla, charmosa e emoldurada por estantes e mais estantes cheias de livros. Só na biblioteca pessoal, o economista guarda mais de 5 mil títulos. "São meus bens posicionais", diz, brincando a sério. "Todos nós temos bens posicionais. Seria uma ilusão dizer que não. Pascal tinha um pensamento interessante: 'Os seres humanos se dividem em duas classes: os santos que se creem pecadores, e os pecadores que se creem santos.' Prefiro estar entre os santos."
Na Forbes dessa semana, Kenneth Rapoza ironiza os preços exorbitantes que os brasileiros pagam por carros importados. Afinal, por que aceitamos pagar tão caro?
Por um lado, porque não há alternativa. A indústria automobilística brasileira é altamente protegida. Os importados pagam uma tarifa exorbitante para entrar no País. Os carros ficam com um preço muito acima do mercado internacional, mesmo descontando os impostos. Por outro lado, os brasileiros se submetem aos preços pois os carros são "bens posicionais". A ideia é do economista inglês Fred Hirsch. O valor do bem posicional depende justamente da "exclusividade", isto é, do fato de que os outros não têm acesso a esses bens. Quanto mais caro, mais exclusivo. Quanto mais exclusivo, mais status. E, portanto, mais poder para impressionar os outros. O filósofo francês Nicolas Malebranche dizia que o desejo mais ardente das pessoas é conquistar um lugar de honra na mente dos seus semelhantes. Essa é a ideia do bem posicional: o proprietário pensa que as pessoas passam a respeitá-lo e admirá-lo mais porque ele pode desfilar um carrão, uma grife, um luxo.
Mas todos os bens são consumidos assim?
Há uma diferença. Um copo de leite, por exemplo, é um bem normal. Se tenho prazer em beber um copo de leite todas as manhãs, isso independe do resto da sociedade. Se amanhã todo mundo beber um copo de leite igualzinho, o meu prazer não mudará uma gota. Mas suponha que eu sou um jovem ambicioso, trabalho 12 horas no mercado financeiro, ganho meu dinheiro honestamente e decido que a coroação da minha vitória será um automóvel caríssimo. Compro meu carro dos sonhos - um BMW, um Mercedes ou um dos carros mencionados pela Forbes - e, de repente, tenho um estalo: "Eu sou especial". As meninas vão ver um brilho diferente no meu olhar, os amigos vão me invejar, os outros vão me respeitar quando passar na rua. Volto para casa feliz da vida. Mas, na manhã seguinte, acontece uma coisa estranha: todos os carros da cidade se transformaram em BMWs idênticos ao meu. E aí? Será que esse carro ainda tem a importância e o valor que tinha aos meus olhos e aos olhos dos demais? Ou será que o poder que ele me conferia simplesmente desapareceu? Pois é, desapareceu. Uma das melhores definições dessa ideia é do satírico romano Petrônio: "Só me interessam os bens que despertam no populacho a inveja de mim por possuí-los". Isso foi dito na Roma antiga, há dois milênios. Uma passagem de Adam Smith, n'A Riqueza das Nações (1776), também ilustra isso: "Para a maior parte das pessoas ricas, a principal fruição da riqueza consiste em poder exibi-la, algo que aos seus olhos nunca se dá de modo tão completo como quando elas parecem possuir aqueles sinais definitivos de opulência que ninguém mais pode ter a não ser elas mesmas". Essa é uma definição irretocável do bem posicional. Quer dizer, sim, compramos um sinal de opulência e de distinção, um prestígio, um brilho - embora muitas vezes sabendo que estamos sendo roubados. Mas, afinal, por quê? Beleza, poder e riqueza mexem com o psiquismo humano de uma maneira quase pré-racional. Não percebemos quão vulneráveis somos a esses apelos. Isso certamente não é de hoje. Ao longo da história, muitos pensadores se debruçaram sobre essa questão, a partir de uma perspectiva ética. Como entender o fascínio por beleza, poder e riqueza? Por que nos deixamos levar por essas promessas? Por que somos iludidos por esses bens posicionais?
No mês passado, os brasileiros marcaram níveis históricos de inadimplência (na série do Banco Central iniciada em 2000). Vale tudo para poder adquirir esse bens?
Estamos vivendo uma corrida armamentista do consumo, pois o bem posicional sempre se renova. Isto é, no momento em que se democratiza o acesso a um bem de consumo, outros novos são inventados. É como uma corrida armamentista: sempre teremos novos e diferenciados objetos de desejo. Primeiro é um tênis de marca, depois um carro importado, um iate, um jatinho, uma viagem a Marte. A corrida armamentista sempre se renova. Não dá para desmontar totalmente as armadilhas dessa corrida, mas podemos almejar uma sociedade mais madura e marcada por uma pluralidade de valores. Assim nem todos estariam competindo na raia estreita, por um carro x ou y. Deveríamos conquistar um lugar de honra na sociedade mais pelo que somos e menos pelo que possuímos.
Há diferenças entre a sociedade de consumo de outros países e a do Brasil atual?
O que complica o Brasil é a desigualdade. Isso acirra e exacerba o poder do dinheiro, da posse, da propriedade. Quem não tem superestima o que o dinheiro pode comprar, ficando muito vulnerável a fantasias e fascínios sobre o status. Na outra ponta, o rico tem o poder superdimensionado por poder comprar o trabalho dos outros a um preço aviltado, adquirindo uma preeminência desmesurada na sociedade. Mas a novidade brasileira é a mobilidade social dos últimos dez anos. Cerca de 30 milhões de brasileiros, antes praticamente excluídos, passaram a ter acesso ao mercado de consumo. Há um momento de deslumbramento diante dessas novas possibilidades, o que é natural, pois essas pessoas tiveram uma demanda reprimida durante diversas gerações. Por isso elas vão com muita sede ao pote, que lhes foi negado por muito tempo. Mas esse deslumbramento não pode durar para sempre. Em certo momento, a sociedade precisará amadurecer. E as pessoas, principalmente dessa nova classe média, vão precisar pensar no futuro.
O que quer essa nova classe média?
É o que todos queremos saber. Mas podemos dizer que essa nova classe média tem uma demanda vigorosa por credenciais educacionais. O que até seria certo, mas a ideia de educação é que está equivocada. Educação é conhecimento, cultura, formação, habilidades, informação. E não simplesmente um diploma, um papel vazio. Um dos dados mais estarrecedores dos últimos tempos foi revelado na pesquisa feita pelo Ibope. Um dado realmente alarmante: 38% dos egressos do ensino superior no Brasil são analfabetos funcionais. Há alguma coisa muito grave e muita errada em um sistema educacional em que isso acontece. Se tiver o mínimo de seriedade e até de autorrespeito, o governo deveria se debruçar sobre essa realidade, principalmente neste momento de ascensão social.
No livro O Valor do Amanhã o sr. diz que o imediatismo impera na sociedade brasileira. Como isso se traduz no consumo?
A imaginação brasileira é muito volátil: quando as coisas vão mal, as pessoas caem em desesperança radical; quando as coisas vão bem, elas caem na euforia e na exuberância. A lâmina da sobriedade precisa cortar nas duas direções. Essa preferência pelo presente, mesmo a um custo elevado no futuro, é uma das características mais marcantes da vida brasileira, com raízes históricas desde a colonização. Atualmente, dá para notar isso em muitas dimensões: a formação de capital humano, a infraestrutura, a poupança previdenciária. Os nossos juros exorbitantemente elevados são sintomáticos dessa predileção pelo presente. Eu me inspiro num conto de Machado de Assis intitulado, não por coincidência, O Empréstimo. Machado descreve um personagem com vocação para a riqueza, mas sem vocação para o trabalho. E a resultante é: dívida. Adaptei isso para a sociedade brasileira, pois o Brasil me parece um país com vocação para o crescimento, mas sem vocação para a poupança. E a resultante disso é desequilíbrio macroeconômico.
Com a ascensão dessa classe emergente, os ricos vão querer esbanjar ainda mais para manter seu status e seus bens posicionais?
Nós temos um quadro curioso de discriminação social no Brasil: as pessoas da elite financeira e econômica se sentem diferentes do resto da sociedade e não querem ter seus privilégios ameaçados. Por outro lado, o País tem uma inconsistência estrutural interessante em diversos campos: nos transportes, na moradia, na educação. A nova classe média tem uma demanda, legítima e até natural, por automóveis, um símbolo de autonomia e status. Mas temos infraestrutura para acompanhar uma agressiva expansão da frota? O avião, por exemplo. Antes restrito, o transporte aéreo agora está recebendo muita gente (e é bom que isso aconteça), mas temos infraestrutura para ordenar esse crescimento? Não, aí o caos nos aeroportos. A mesma falha na questão habitacional: há uma imensa demanda por moradia, absolutamente legítima e muito bem-vinda, por casa própria. Minha Casa, Minha Vida é a cereja do PAC. Mas temos infra urbana de saneamento básico, por exemplo, para dar real dignidade às pessoas? Em pleno século 21, 40% dos domicílios brasileiros não têm saneamento básico, o que é gravíssimo. E a telefonia? Todo mundo tem celular atualmente, mas ninguém consegue se comunicar direito por causa das panes do sistema. Nesses exemplos e em outras situações, encontramos a mesma inconsistência. Nós fazemos a parte fácil - relacionada ao consumo imediato -, mas temos muita dificuldade para dar estrutura a essas demandas de uma maneira sustentável e ordenada. Então, a vida cotidiana é conturbada. É um pesadelo vivido pela sociedade inteira, independentemente da classe social.
EDUARDO GIANNETTI É ECONOMISTA E FILÓSOFO, Ph.D. PELA UNIVERSIDADE DE CAMBRIDGE, PROFESSOR DO INSPER. É AUTOR DE O VALOR DO AMANHÃ

A revolução verde e a oferta de alimentos

quinta-feira, 23 de agosto de 2012
"De acordo com essa teoria, a evolução das leis da natureza, concorre com a evolução do modelo duradouro, porque o estado geral do universo como no presente em parte determina a verdadeira essência das entidades cujos modos de função são expressos por essas leis. O princípio geral é que em um novo ambiente há uma evolução de todas as entidades em novas formas."  -  Alfred N. Whitehead  -  A Ciência e o mundo moderno
 
As primeiras discussões globais sobre o futuro da humanidade ocorreram no final da década de 1960, durante as reuniões do já lendário Clube de Roma. Um dos assuntos que mais preocupava a todos os participantes daqueles encontros era a prevista escassez de alimentos. Já no início do século XIX, o cientista inglês Robert Malthus havia escrito que no futuro as sociedades passariam por grandes dificuldades, já que a produção de alimentos sempre cresceria em escala aritmética enquanto a população aumentaria em escala geométrica. Depois da Segunda Guerra Mundial, com a vacinação em massa contra várias doenças e o aumento do saneamento, diminuiu vertiginosamente o índice de mortalidade entre as crianças; o que aumentou ainda mais o crescimento populacional e com isso os temores de muitos em relação à disponibilidade de alimento para todos. A taxa de natalidade à época era bastante alta, principalmente nos países pobres e em desenvolvimento e, segundo cálculos de especialistas, não haveria produção agrícola suficiente para acompanhar o aumento do número de bocas a serem alimentadas. Previa-se assim, que antes do final do século XX haveria grandes carestias, assolando a maior parte das nações da Ásia, África e América Latina e provocando revoluções, conflitos armados e guerras entre nações.  
Nem todos, no entanto, sabiam que àquela mesma época estava em andamento uma grande mudança na maneira de praticar a milenar agricultura. Novas técnicas de preparação do solo e de plantio; uso de sementes híbridas; novos produtos químicos para combate às pragas que assolavam as plantas. Tudo isto apoiado na larga mecanização da semeadura e da colheita, com a ajuda de uma grande variedade de máquinas agrícolas. Para completar o novo quadro, mais assistência aos agricultores, através de um exército de técnicos agrícolas e engenheiros agrônomos, treinados nas novas tecnologias de plantio. Estas as principais características da mudança tecnológica na agricultura, que se convencionou chamar de Revolução Verde. Inicialmente, introduzida nos Estados Unidos a partir da década de 1960, a inovação rapidamente alcançou outros países e nos anos 1980 já estava difundida em grande parte do mundo.
A Revolução Verde aumentou a oferta de comida. Segundo especialistas, temos quantidades de alimento suficientes para eliminar a fome do planeta. O problema, segundo eles, continua sendo a injusta distribuição destes recursos, causada pela especulação. Esta, fomentada pela possibilidade de grandes lucros em curto espaço de tempo e praticada por grandes grupos econômicos em todo o mundo, contribui para as oscilações dos preços dos produtos agrícolas, podendo confundir a capacidade de planejamento dos agricultores, levando-os à superprodução ou à subprodução.
Mesmo com a oferta de alimentos tecnicamente garantida, não há tempo para descanso. As empresas, os governos e as instituições precisam urgentemente – segundo a Agência das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) – investir em pesquisa agrícola, a fim de aumentar ainda mais a produção agrícola. Até 2050, segundo a agência, a população mundial deverá aumentar de 6,3 para 9 bilhões de pessoas. Para alimentar este imenso contingente, a produção agrícola precisará crescer 70% acima dos padrões atuais.  
(Imagens: fotografias de Ferran Freixa)

A "Crítica da Razão Pura" de Kant e o desenvolvimento da Ciência

domingo, 19 de agosto de 2012
"O Nirvana está aqui e agora, no meio do Samsara, e não há problema de ele ser um estado de unidade distinto de um estado de multiplicidade: tudo depende da nossa própria compreensão interior." - Alan Watts - O Espírito Zen

A ciência teve um grande desenvolvimento a partir do Renascimento, com a introdução da matemática e da experimentação ao processo de pesquisa científica. Efetivamente, tais práticas não existiam – pelo menos como método regular – na Idade Média, já que neste período se tinha uma idéia formada do funcionamento do mundo baseada na filosofia de Aristóteles. O filósofo grego influenciou o pensamento oficial da Igreja Católica a partir do século XIII, tornando-se o inspirador da filosofia tomista. Para esta escola filosófica a natureza estava explicada; o que não se conseguia explicar com os conhecimentos disponíveis era objeto de fé.
No período do Renascimento os artistas-cientistas, como Leonardo da Vinci e os cientistas-filósofos, como Francis Bacon, passam a valorizar o uso da matemática (da Vinci) e do experimento (Bacon) nas ciências. Além disso, Copérnico e Kepler, ambos fazendo uso de cálculos matemáticos, provocam uma revolução na visão de mundo da época, quando demonstram (mais tarde comprovado com o uso de telescópios) de que a Terra não era o centro do universo (conhecido) e sim o Sol.
Entre os séculos XVII e XVIII surge Isaac Newton, cientista e matemático, que irá influenciar profundamente a filosofia de Kant. Newton desenvolve a teoria da gravitação universal, que explicará grande parte do funcionamento do universo em sua época, com a ajuda da matemática. Por outro lado, também na Inglaterra, surge no mesmo século o pensador David Hume, que com seu ceticismo colocará em dúvida a ciência da época e, principalmente, todo o conhecimento. Hume critica o princípio de causalidade, como um simples hábito mental, baseado na experiência freqüente de certos acontecimentos. Entre a lei de gravitação de Newton e a negação do princípio de causalidade por Hume, Kant tem um choque e acordo de seu “sono dogmático”.
A crítica de Hume não é somente contra a metafísica e a estrutura da ciência, mas contra a razão em si. Kant decide, depois de longo período de meditação, escrever uma obra que descrevesse o método pelo qual podemos obter um verdadeiro conhecimento do mundo, baseado em critérios racionais. Tal obra é a “Crítica da Razão Pura”.
Inicialmente, Kant estabelece uma distinção entre o conhecimento “a priori”, que independe de qualquer sensação, e o conhecimento “a posteriori”, que depende de uma sensação. Em seguida, Kant propõe a distinção entre juízos analíticos, “aqueles em que a conexão do predicado e do sujeito for pensada por identidade” (Kant, p.10) e juízos sintéticos, “aqueles em que esta conexão for pensada sem identidade” (Kant p.10). Daí Kant conclui que os juízos da experiência são todos sintéticos, mas que “a física contém, como princípios, juízos sintéticos a priori. Como exemplo, citarei duas proposições: nas alterações do mundo corpóreo a quantidade de matéria continua sempre a mesma, ou, nas comunicações de movimento, ação e reação precisam ser sempre iguais” (Kant p.13).  
Na Introdução da Crítica da Razão Pura, Kant pergunta: “Como a matemática pura é possível?” e “Como a ciência pura da natureza é possível?” Através de sua obra o pensador estabelece as condições nas quais a matemática (a priori sintético) e a ciência são possíveis, na pessoa do Sujeito Transcendental; princípios admitidos por Kant que possibilitam o conhecimento.
Com isso, a principal influência de Kant sobre o desenvolvimento da ciência foi estabelecer novas teorias epistemológicas, que (pelo menos por um certo período na história do pensamento ocidental) fixaram as condições nas quais poderíamos dizer que nossa interação com o mundo tem base real, de modo a validar nossos raciocínios, inclusive a interpretação científica da realidade.
O pensamento kantiano, posteriormente, foi criticado por diversos autores, sob diversos aspectos, não sendo mais universalmente aceito como critério de validação da ciência. Mas isto já é outro capítulo do pensamento filosófico ocidental.
Bibliografia
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo. Ícone Editora: 2007, 541 p.
(Imagens: fotografias de Michel Rajkovic)

Pesquisas médicas e a biodiversidade amazônica

quinta-feira, 16 de agosto de 2012
"Toda a nossa vida é, na verdade, uma fábula; nosso conhecimento, uma asneira; nossas certezas, uma ilusão; resumindo, todo este mundo é apenas uma farsa, uma perpétua comédia."  -  La Mothe Le Vayer, citado por Georges Minois em História do Riso e do Escárnio

Já faz alguns anos que ouvimos especialistas dizendo que a cada hectare de floresta amazônica derrubada, são diminuídas as nossas chances de encontrarmos remédios para nossas doenças ainda incuráveis. Não há exagero algum nesta declaração. É fato que cerca de metade dos medicamentos mais importantes para a medicina foram sintetizados a partir de moléculas da natureza. A tendência, segundo especialistas, é que o desenvolvimento de novos remédios continue desta maneira. Assim, as curas dos nossos males podem estar na seiva de uma planta, no veneno de uma aranha, na pele de um sapo, mas enzimas de uma bactéria ou em um fungo. O desconhecimento da ciência nesta área ainda é muito grande, mas as pesquisas avançam a cada dia.
Do ponto de vista ecológico todos os seres vivos estão ligados por uma teia de relacionamentos; todo o ser vivo tem sua importância nesta estrutura. Com o desaparecimento de diversas espécies, a teia torna-se mais fraca, até que em determinado momento ela se rompe. A mesma coisa é dita em outras palavras pelo físico e pensador da ecologia Fritjof Capra, quando escreve em seu “A teia da vida”: “Em última análise – como a física quântica mostrou de maneira tão dramática – não há partes em absoluto. Aquilo que denominamos parte é apenas um padrão numa teia inseparável de relações.” (Capra, 2004, pg. 47).
Um exemplo prático desta visão são os produtos agrícolas que consumimos diariamente. Cada vegetal é resultado da ação de milhares de organismos que vivem na terra, como os fungos fixadores de hidrogênio, que não são vistos, mas tem papel importantíssimo para a fertilidade do solo. O uso excessivo de agrotóxicos pode acabar eliminando grande parte destes fungos, reduzindo a produtividade agrícola.
Especialistas informam que muitas substâncias terapêuticas são encontradas nas plantas. O vegetal conhecido como “pervinca de Madagascar”, por exemplo, é origem de duas drogas importantes, usadas na cura do câncer infantil. Outro exemplo é o da árvore originária do oeste dos Estados Unidos, fonte de uma droga eficiente na cura de câncer de ovário. Antes da descoberta das propriedades curativas na planta, esta era queimada e considerada sem valor.
Outro fato apontado pelos bioquímicos é que a ciência médica continua a depender de produtos naturais, apesar do desenvolvimento das drogas inteligentes, destinadas a atingir alvos específicos. A vantagem do remédio natural é já estar com seu princípio ativo pronto. Enquanto isso, a droga inteligente demanda anos de pesquisa e grandes investimentos – fato que encarece o produto quando colocado no mercado, anos depois. Enquanto a ciência descobre, a cada, dia mais motivos para estudar a biodiversidade amazônica – e com isso justificar cada vez mais sua preservação e exploração racional – os governos envolvidos com a questão, em todos os níveis, continuam a tratar o assunto como secundário. Todavia, uma coisa está patente: se não convocarmos especialistas e não programarmos ações de médio e longo prazo efetivamente eficientes, a Amazônia perderá grande parte da floresta nos próximos 50 a 100 anos.
Cabe perguntar quem efetivamente está ganhando com a situação atual da Amazônia e por isso tem interesse em manter tudo como está – sem planejamento ou controle.
(Imagens: fotografias de Elio Ciol) 

Diminuir o sofrimento dos animais

domingo, 12 de agosto de 2012
"A filosofia triunfa sem dificuldades sobre os males passados e futuros: mas os males presentes levam a melhor sobre a filosofia."  -  La  Rochefoucauld  -  Máximas e Reflexões

Na Antiguidade já se acreditava que de alguma maneira os animais tinham uma ligação profunda conosco. Pitágoras, célebre filósofo e matemático grego do século VI antes de nossa era, falava que os animais não deveriam ser maltratados, pois podiam ser abrigar a alma de algum parente falecido. No entanto, a civilização ocidental acabou seguindo a Aristóteles, o filósofo grego que mais influenciou nossa cultura e que argumentava que os animais estavam longe do homem na grande cadeia que ia da pedra, passando pelas plantas, até os humanos. A própria tradição judaico-cristã nunca teve consideração especial pelos animais, tratando-os como criaturas que Deus havia colocado para uso e serviço do homem. Não é de estranhar então que nossa civilização, ao longo da história, tivesse pouca consideração pelos animais. Por isso, é interessante o fato de que foi Jeremy Bentham, filósofo inglês criador do utilitarismo (“o que é útil é bom”), o primeiro pensador a se preocupar seriamente com os direitos dos animais, afirmando que a dor do animal é tão real quanto a humana.
Ainda estamos longe de enxergarmos o animal como semelhante nosso. Mas a maioria dos países já tem leis protegendo os animais de sofrimentos desnecessários enquanto que a UNESCO (Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura) lançou em 1978 a Declaração Universal dos Direitos dos Animais, cujos principais pontos são:
- Todos os animais têm o mesmo direito à vida;
- Todos os animais têm direito ao respeito e à proteção do homem;
- Nenhum animal deve ser maltratado;
- Todos os animais selvagens têm o direito de viverem livres em seu habitat;
- O animal que o homem escolheu para seu companheiro não deve nunca ser abandonado;
- Nenhum animal deve ser usado em experiências que lhe causem dor;
- Todo ato que põe em risco a vida de um animal é um crime contra a vida;
- A poluição e a destruição do meio ambiente são consideradas crimes contra os animais;
- Os direitos dos animais devem ser defendidos por lei;
- O homem deve ser educado desde a infância para observar, respeitar e compreender os animais.   
Será difícil que o mundo inteiro venha a viver sem se alimentar da carne dos animais e o vegetarianismo é costume alimentar que não agrada a todos. Todavia, é possível que sejam introduzidos métodos mais humanos – e mais civilizados – de criação e de abate de animais. Em 2009 o Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA) assinou um Termo de Cooperação com a Sociedade Mundial de Proteção Animal (WSPA) introduzindo no Brasil o Programa de Abate Humanitário - STEPS, que tem como objetivo capacitar os produtores brasileiros a criar, transportar e abater os animais, levando em consideração seu bem-estar, de acordo com as normas da Organização Mundial de Saúde Animal (OIE). A WSPA também defende a produção animal com métodos humanitários, reproduzindo condições próximas daquelas encontradas em ambiente natural.
A tendência mundial é que os consumidores evitem se alimentar de carnes de animais que tenham sido submetidos ao sofrimento durante a vida e no abate. O Brasil como grande produtor e exportador de carnes precisa adotar estas técnicas humanitárias de criação e abate.
(Imagens: fotografias de Mitch Epstein)

Meio ambiente e doenças

quinta-feira, 9 de agosto de 2012
"Como diz Whitehead, a natureza é uma coisa triste, sem cores, sons nem fragâncias: todos seus atributos são puramente humanos. Radical e inevitavelmente (mas, por que evitá-lo?), nossa visão do mundo é subjetiva, e cada um de nós cria cores e músicas, grosseiras ou delicadas, complexas ou simples, conforme nossa sensibilidade, nossa imaginação e nosso talento."  -  Ernesto Sabato  -  O escritor e seus fantasmas

Os efeitos das atividades humanas sobre o meio ambiente, a natureza, ainda tem aspectos imprevisíveis. Se nas regiões urbanas e as áreas agrícolas, ocupadas há muito tempo pelas atividades humanas, quase não restam vestígios dos ecossistemas naturais, mesmo assim o mundo natural continua influenciando as modernas sociedades. Há alguns anos cientistas já vinham alertando sobre novos tipos de vírus que o homem poderia encontrar ao avançar sobre as últimas áreas inóspitas do planeta, como as florestas situadas em áreas tropicais.
Segundo matéria publicada recentemente no jornal The New York Times, grande parte das doenças que afetam os seres humanos têm causas ambientais; 60% são de origem zoonótica, ou seja, transmitidas por animais. Destas, mais de dois terços por animais selvagens. Exemplo disso são as síndromes provocadas pelo vírus Ebola, pelo Oeste do Nilo, a Síndrome Respiratória Grave (SARS), a gripe aviária H5N1, a influenza H1N1, entre outros. São inúmeras as doenças viróticas que em têm origem nas espécies selvagens e que sofrendo mutações passam de uma espécie a outra até chegar ao homem.
O assunto é tão sério, que veterinários, biólogos e outros especialistas juntaram-se a médicos e epidemiologistas para tentar descobrir como a interação do ambiente natural com o humano pode resultar em novas doenças epidêmicas. O estudo faz parte de um projeto batizado de "Predict" (“prever” em inglês), financiado pela Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional. Neste estudo, os especialistas tentam descobrir como através da alteração do ambiente – seja pela derrubada da floresta para uma nova área agrícola ou construção de uma barragem –, colocando pessoas em contato com novos tipos de vírus, pode-se desenvolver-se uma doença desconhecida. O passo seguinte é localizar a moléstia quando surge, antes que se espalhe. Em seu trabalho os pesquisadores estão reunindo sangue, saliva e outras amostras de animais selvagens, a fim de criar um banco de espécies de vírus. Assim, quando uma destas cepas de microorganismos infectarem seres humanos, podem rapidamente ser identificados e combatidos. Além disso, os cientistas estão desenvolvendo técnicas de gestão de florestas, animais selvagens e gado, de modo a prevenir que doenças deixem a área florestal e se transformem na próxima pandemia. 
Os cientistas já identificaram vários casos de transmissão de doenças de espécies selvagens para domesticadas, chegando aos humanos.
Na Ásia, por exemplo, um vírus que tem como hospedeiro um tipo de morcego frutífero foi transmitido a uma criação de porcos – os morcegos deixaram cair frutos infectados pelo vírus e estes foram comidos pelos suínos. Posteriormente, a carne de porco foi consumida e o vírus terminou por infectar seres humanos. O fato, ocorrido na Malásia em 1999, teve como resultado a infecção de 276 pessoas, das quais 106 morreram de complicações no sistema neurológico, causadas pelo vírus. Desde então apareceram doze casos parecidos no sul da Ásia e outros na Austrália. "Qualquer nova doença nos últimos 30 ou 40 anos surgiu como resultado da ocupação de áreas selvagens e mudanças na demografia", afirma Peter Daszak um ecologista dedicado ao estudo de doenças. Eventos como estes também podem ocorrer nas vastas áreas ainda inexploradas do Brasil, onde vivem inúmeros microorganismos ainda desconhecidos.
(Imagens: fotografias de Eliott Erwitt)

Corais, clima e combustível

domingo, 5 de agosto de 2012
"Em muitas coisas importantes, coisas que tiveram ali sua primeira expressão, os florentinos constituem um modelo não só para os italianos como também para os europeus modernos de modo geral; o mesmo pode-se dizer de seus aspectos mais sombrios."  -  Jacob Burckhardt  -  A cultura do Renascimento na Itália

Um simpósio internacional sobre recifes de corais, contando com a participação de mais de dois mil cientistas, chegou a algumas conclusões preocupantes sobre o futuro deste ecossistema. Reunidos em Queensland, na Austrália, especialistas concluíram que a continuar o ritmo de poluição das águas marinhas, estas imensas colônias de microorganismos poderão desaparecer no espaço de uma geração.
Os recifes de coral têm uma grande importância para a manutenção da vida nos oceanos. Povoados por diversas espécies de organismos; desde os unicelulares, até peixes de todos os tipos, tartarugas e cetáceos, os recifes de coral são considerados ilhas de abundância na paisagem relativamente monótona dos mares. Em suas encostas as espécies vivas se estabelecem para viver, se alimentar e procriar, deslocando-se muitas vezes por centenas de quilômetros para alcançar o recife.
A atividade humana gera substâncias que carregadas para o mar alteram as condições químicas do oceano. Efluentes domésticos, industriais e adubos agrícolas estão aumentando o volume de nutrientes nas águas marinhas, dificultando a sobrevivência dos corais. Outro aspecto é que os corais só conseguem sobreviver dentro de uma faixa muito estreita de temperatura (23 a 25 graus); acima ou abaixo destes parâmetros começam a apresentar problemas de crescimento e em casos extremos morrem.
O principal fator de risco para os bancos de corais, no entanto, é causado pelo aumento da acidificação das águas do mar. O processo se dá da seguinte maneira: com nossas atividades econômicas emitimos quantidades cada vez maiores de gás carbônico (CO²) para a atmosfera. Este gás misturando-se à água do mar aumenta sua acidez, o que dificulta a formação de carapaças e estruturas à base de carbonato de cálcio, caso dos esqueletos de corais e moluscos.
Este acontecimento já tem e terá consequências para toda a biodiversidade dos oceanos e atividades econômicas ligadas aos mares. Cientistas preveem que atividades de pesca ligadas aos bancos de corais terão uma queda significativa, afetando milhões de pessoas. Da mesma forma a indústria turística que depende dos recifes nos Estados Unidos, Austrália e Japão, será seriamente afetada.
Fica cada vez mais evidente que o eventual desaparecimento deste rico ecossistema pode ser causado pelas atividades humanas - as emissões atmosféricas geradoras do aquecimento global. É de estranhar, portanto, que em tempos mais recentes tenha aumentado o número de vozes negando a existência das mudanças climáticas, baseando-se em interpretações tendenciosas de fatos científicos.
Isto dá o que pensar, ainda mais quando um pesquisador de Harvard anunciou recentemente que a era do petróleo não terminou e de que aumentarão as descobertas de novas reservas do combustível. A mensagem que aparentemente se quer transmitir é: a) a humanidade não pode absolutamente influir no clima da Terra; b) a queima de combustíveis não contribui para as mudanças climáticas; e c) como consequência, podemos manter nossa economia baseada na queima dos derivados de petróleo.
A quem será que interessa tal mensagem? Talvez o próximo passo será dizer que o excesso de produção e consumo também não têm significativo impacto ambiental.
(Imagem: fotografia de Marc Riboud)

Transporte no Brasil

quinta-feira, 2 de agosto de 2012
"A abordagem econômica convencional perde totalmente de vista o caráter de transformação física que decorre da criação de riqueza. Ao importar matéria do ambiente e organizá-la de modo que possa ser utilizada, a produção é uma oposição local e temporária à lei da entropia."  -  Andrei Cechin  -  A natureza como limite da economia

Mais da metade, 55%, de todas as cargas movimentadas no Brasil são transportadas via rodoviária. É um índice alto, comparado ao de outros países, que por uma questão de economia e praticidade também usam o transporte por hidrovias, ferrovias e navios de cabotagem. Na Europa, por exemplo, é possível transportar uma carga do Mar do Norte até o Mar Negro, atravessando todo o continente por meio de hidrovias, atravessando rios e canais, construídos ao longo dos últimos 200 anos. É um meio de transporte mais barato, menos poluente e mais seguro.
No Brasil, a opção pelo transporte rodoviário deu-se a partir da industrialização do País, durante o governo Kubitschek, na década de 1950. Para criar uma demanda por automóveis, caminhões e ônibus – justificando desta forma os investimentos que as montadoras planejavam fazer no Brasil – o governo deu início a um plano de ampliação da infraestrutura de transporte, com foco principal nas rodovias. O trem e o barco foram deixados de lado, em detrimento do caminhão. Nas cidades, o metrô e o trem de superfície até recentemente foram tratados como temas secundários, já que se priorizava o ônibus e o automóvel.
Este tipo de opção político econômica pode influenciar a evolução de um país ao longo de sua história. No caso do Brasil, temos uma rede rodoviária nacional de 1, 3 milhões de quilômetros, a maior parte da qual em mal estado de conservação, comprometendo a vida útil da frota e aumentando o preço dos fretes, ou seja, dos produtos que consumimos. Além disso, nossa frota rodoviária é relativamente antiga, queima um óleo diesel muito poluente (em comparação ao diesel dos Estados Unidos e da Europa) e está sujeita à falta de segurança em nossas estradas. O pior, é que não temos ainda alternativa para o transporte de grandes volumes de carga. As hidrovias, com exceção da hidrovia Tietê-Paraná, ainda estão em fase de desenvolvimento e ainda aguardam investimentos do Estado. As ferrovias, privatizadas na década de 1990, estão com diversos ramais desativados e só funcionam em seus troncos principais. O transporte de cabotagem ainda sofre com a oferta inconstante de carga, o que inviabiliza o estabelecimento de mais linhas regulares de navegação. A opção pelo transporte rodoviário também é causa da perda de parte considerável das colheitas, por falta de condições de escoamento e de exportação. As estradas se tornam intransitáveis e os portos têm sua logística interna baseada quase exclusivamente no caminhão, que tem capacidade muito menor do que o trem de carga.
Não é possível continuarmos com uma estrutura ferroviária, hidroviária e de cabotagem tão incipiente. As grandes cidades, por sua vez, necessitam de uma rede de metrô ou de trem de superfície mais ampla, para tirar o maior número possível de veículos das ruas. Por outro lado, é necessário planejar e ordenar o crescimento da estrutura de transportes das cidades menores e – com a utilização do ônibus – propiciar um serviço eficiente, a exemplo daquilo que a cidade de Curitiba implantou há mais de trinta anos.
O País precisa encontrar outras soluções para seus problemas de transporte. O indutor destas mudanças terá que ser o Estado, que com leis e incentivos atrairá a iniciativa privada.
(Imagens: fotografias de Carl Mydans)