O devir e o ser

domingo, 30 de dezembro de 2012
"Nossas tentativas frenéticas - assim como o resto da vida - de sobreviver e prosperar são um modo especial, existente há quatro bilhões de anos, de o universo se organizar 'para' obedecer à segunda lei da termodinâmica."  -  Lynn Margulis & Dorion Sagan  -  O que é vida?

Quanto à questão da mutabilidade e imutabilidade do ser, básica na filosofia ocidental, a posição de Heráclito era que o ser está permanentemente em mutação; o ser é e logo depois já não é mais. É assim que ocorre na natureza: as estações, os ciclos de vida dos animais; tudo está em constante transformação. Processos físico-químicos e biológicos se sucedem e toda vida se transforma. Darwin já afirmava que não existem dois indivíduos de uma mesma espécie exatamente iguais, fato que no século XX foi confirmado pela genética. O acúmulo de diferenças vai propiciando o aparecimento de indivíduos, cada vez mais diferentes de seu ancestral original. Assim a mutabilidade proporciona a transmutação (evolução) das espécies. Esta constante mudança se aplica a toda a natureza; desde as partículas subatômicas, passando pelo homem e deste às galáxias.
A principal idéia do pensamento de Heráclito está expressa no seguinte texto que nos foi transmitido pelo filósofo Plotino (204-270): “Em rio não se pode entrar duas vezes no mesmo, segundo Heráclito, nem substância mortal tocar duas vezes na mesma condição; mas pela intensidade e rapidez da mudança dispersa e de novo reúne (ou melhor, nem mesmo de novo nem depois, mas ao mesmo tempo) compõe-se e desiste, aproxima-se e afasta-se” (citado em Os Pré-Socráticos, 1999).
Como tudo no universo heraclitiano está sempre em mutação, Hegel argumenta que a essência deste processo é o tempo, o devir.
Parmênides, por outro lado, afirma que o Ser é e não pode não ser. O argumento principal do pensador é que não é possível pensar o não-ser, porque se o pensarmos, ele é. Daí argumenta que o pensar e o ser são o mesmo. Com estas idéias, Parmênides chega às seguintes conclusões: "Admitindo que seja possível existir o não-ser, este seria a negação do ser, sua mudança, o que é impossível. Portanto, o ser é eterno e imutável."
O mundo das aparências, onde ocorrem as mudanças, é somente uma concessão que Parmênides faz. Em seu pensamento não existe o mundo das mudanças, do não-ser. Parmênides abstrai seu pensamento daquele nível que nós chamamos realidade e coloca o Ser em outra esfera, classificando-o como uno eterno e imutável.
Parmênides foi o precursor da lógica, já que de suas idéias deduziram-se raciocínios como o princípio de identidade (o Ser é, cujo equivalente é A=A) e o princípio de não-contradição (o Ser é e não pode não ser, cujo equivalente é A=A e não pode ser A diferente de A)
O pensamente de Heráclito e Parmênides representará os dois opostos que influenciarão toda a filosofia ocidental.
Bibliografia:
CHAUÍ, Marilena, Convite à Filosofia, 13ª edição, 6ª impressão, São Paulo: Editora Ática, 2006
SOUZA, José Cavalcante, Os Pré-Socráticos, 4ª ed. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996
SCHÜLER, Donaldo, Heráclito e seu (dis)curso, 1ª ed. Porto Alegre: L&PM Editora, 2000
(Imagens: fotografias de Luís Humberto)

Poder econômico e cultura na antiga Grécia

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

"Mas, de fato, nem todos os produtos e negócios adicionam valor. Muitos fazem exatamente o oposto; um resultado que Ivan Illich chama de 'desvalor'. Vender produtos que geram muitos resíduos, baratos, descartados rapidamente ou de utilidade marginal é mais comum do que deveria ser."   -    Paul Hawken     -    A ecologia do comércio


Entre os séculos VIII a VI a. C., a Grécia passa por grandes mudanças sociais e econômicas. A economia, que antes era baseada principalmente na produção das propriedades rurais pertencentes à aristocracia, agora é impulsionada pelo comércio internacional, baseado na exportação de cerâmicas e vinhos e na importação de diversos produtos originários do Egito, da Babilônia, de Cartago e das cidades gregas da Jônia (atual Turquia) e da Magna Grécia (hoje Itália). A nova classe econômica é constituída por comerciantes, armadores, artesãos, que passam a dominar o cenário econômico. “A crescente expansão da economia monetária frente à economia natural operou uma revolução no valor das propriedades dos nobres, que até então haviam sido o fundamento da ordem política. Agarrados às antigas formas de economia, os nobres estavam num plano inferior no comércio e na indústria”. (Jaeger, 2003, pg. 272).

Todavia, a transição de um tipo de economia e de uma classe dominante para outra não ocorre sem conflitos. O embate desta nova classe econômica com a antiga aristocracia agrária provoca desestabilização social. E é neste contexto, que surge a figura do tirano; alguém com poderio militar e apoio popular, com o objetivo de eliminar os conflitos sociais e econômicos. Neste processo, o tirano cria novas leis e instituições, enfraquecendo a antiga nobreza. Para fazer frente a esta ainda poderosa classe, o tirano precisa do apoio das classes ascendentes, desta nova “burguesia”. Em troca deste apoio político e econômico, o tirano concede uma série de vantagens à classe dos comerciantes e ao demo, ao povo.



Entre estas vantagens oferecidas, está o acesso à participação política e à gestão da pólis. Para justificar a nova ordem político-social, os tiranos procuram o apoio de poetas e outros intelectuais, que darão a justificação ideológica do novo ordenamento social. Desta forma, os tiranos passam a valorizar os poetas que cantam os heróis e os mitos condizentes com os novos tempos. Ao mesmo tempo, os tiranos valorizavam as artes, promovendo a divulgação da cultura. O apoio à cultura e à educação faz com que esta seja mais disseminada, deixando de ser uma exclusividade da antiga aristocracia. Comerciantes e povo, as novas classes em ascensão também passam a ter acesso às artes.

O processo se repete igualmente nas cidades jônicas, onde a classe dos comerciantes também ocupa cargos políticos e adquire um alto nível cultural. Exemplo desta nova mudança é a figura do filósofo Tales da cidade de Mileto, que pertencia a esta nova “burguesia” ascendente.

Bibliografia:
Jaeger, Werner, Paidéia – A formação do homem grego, São Paulo: Martins Fontes, 2003, 1.413 pgs.

(Imagens: fotografias de Thomaz Farkaz)

Políticas educacionais no Brasil

domingo, 23 de dezembro de 2012
"Reduzindo o homem a uma individualidade abstrata, sem vocação, sem responsabilidade, sem resistência, o individualismo burguês é precursor responsável pelo reino do dinheiro, quer dizer, como tão bem dizem as palavras, pela sociedade anonima das forças impessoais."  -  Emmanuel Mounier  -  Manifesto a serviço do personalismo

Analisando a história do Brasil e trechos das diversas Constituições que o país teve desde 1824, observamos que ao longo de todo o período imperial e grande parte do período republicano (o período colonial não é nem digno de nota) a educação não foi prioridade dos legisladores.
A começar pela Constituição de 1824, que através de um ato adicional acabou transferindo a responsabilidade do ensino primário para a responsabilidade das províncias, as quais sabidamente não dispunham de recursos. Deste modo, o povo – que dependia do ensino público gratuito, assegurado pela Magna Carta, para crescer em poder como classe – não teve acesso à instrução, ficando esta limitada às elites econômicas, que podiam custear escolas particulares.
Este processo premeditado, visando impossibilitar ao povo o acesso à educação e ao poder, estende-se por todo o período imperial até a proclamação da República em 1889 e votação de uma nova Constituição, em 1891. Esta Magna Carta já de caráter mais laico, estabelecendo claramente a separação entre Igreja e o Estado, reafirma a gratuidade do ensino em todos os níveis. O documento também transfere a responsabilidade do ensino para a alçada dos estados. Na prática, ocorreu uma série de reformas no ensino, que se estenderam de 1891 a 1934, quando foi aprovada (mais uma) nova Constituição. Neste período também foi estruturado o ensino superior no País, criaram-se as séries escolares e foi implementada a fiscalização das escolas particulares. Todavia, em termos de acesso ao ensino, este ainda permanecia quase que exclusivo às classes abastadas ou do povo que habitava os grandes centros urbanos.
A Constituição de 1934 foi seguida pela de 1946, pela de 1967, depois pela de 1969 e, finalmente, pela Constituição de 1988. Em todas estas Constituições houve menção ao ensino, foram ampliados os direitos do cidadão com relação ao ensino, todavia, mesmo assim, o avanço da educação continuava lento. Como acontecia e ainda é prática no País, partia-se do pressuposto de que apenas com a criação de leis (e seus sucedâneos: mandatos, portarias, atas, e toda esta fauna de papéis quase sempre inócuos) os problemas estariam resolvidos. Além disso, no período de 1937 a 1988, a educação também esteve sujeita a períodos de autoritarismo, permeados por outros menos democráticos.
A partir do início dos anos 1990 a educação – assim como todos os setores das sociedades capitalistas em desenvolvimento – passou a sofrer influência do neoliberalismo. Sob a ótica desta ideologia – que coloca o mercado como o grande regulador das relações sociais e econômicas, e com isso também da educação – os investimentos públicos em educação se tornaram mais seletivos, o que por outro lado aumentou a participação do setor privado, principalmente no ensino superior.
Todavia, apesar de todos os percalços, o acesso ao ensino básico dissemina-se em todo o país e recebe gradualmente mais recursos, notadamente a partir do governo do presidente Lula (2002-2005 / 2006-2009). O programa bolsa-família, que condiciona o recebimento de uma ajuda financeira do governo à freqüência dos filhos na escola, foi um fator impulsionador do aumento dos alunos no ensino básico.
É preciso que os investimentos em educação e cultura continuem aumentando no Brasil. Grande parte dos problemas econômicos pelos quais o Brasil passa no momento (e que poderão se agravar no futuro) também é devida à falta de profissionais preparados – do pedreiro e mecânico de automóveis, passando pelo técnico em computação e técnico em enfermagem, até o engenheiro, o médico e o professor.
(Imagens: fotografias de Walter Firmo)

Os viajantes e a antropologia

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012
"Não sei o que pensar! Nunca acreditei em fantasmas, só que..."  -  Mickey  -  Os sete fantasmas

No século XIX o Brasil e outros países da América do Sul foram visitados por grupos de viajantes, geralmente a serviço de países europeus ou de grupos de interesse econômico. No Brasil teve grande influência a abertura dos portos às nações amigas, promovida por D. João VI, quando se mudou com a corte portuguesa para o Rio de Janeiro. Em suas viagens estas delegações eram compostas por mineralogistas, geógrafos, botânicos, pintores e desenhistas que elaboravam diários e relatórios, desenhavam mapas e retratavam a população e a natureza. Muitas vezes estes relatos são repletos de julgamentos tendenciosos e análises superficiais de aspectos culturais e econômicos. Sob a ótica de sua própria cultura, estes viajantes analisavam as práticas sociais e culturais da sociedade brasileira à época.
Estes visitantes, em sua visão unilateral, não conseguiam conceber que poderiam existir outras formas válidas de cultura; maneiras diferentes de relacionar-se com o meio ambiente natural e de organizar o ambiente social. Os brasileiros, em muitos autores, são classificados como preguiçosos, libidinosos, carolas, vaidosos e ignorantes. Os europeus julgavam que somente seu ponto de vista era válido e, desta forma, mais evoluído – o ponto de vista da cultura européia. Auguste de Saint-Hilaire, por exemplo, famoso botânico francês viajou pelo Brasil entre 1816 e 1822. Deixou vários comentários tendenciosos sobre aspectos da religiosidade; retratou os campos mineiros como “um misto de desordem e regularidade selvagem”; e desvalorizou as obras de arte das igrejas no interior do Brasil. Outros viajantes da mesma época como os alemães Spix e Martius elogiaram a exuberância da natureza, estudaram as plantas brasileiras e os costumes dos indígenas. Alemães, franceses, ingleses e russos viajaram pelo país, comentaram seus costumes e sua exuberância natural, mas sempre sob uma perspectiva européia.
Quase cem anos depois destes fatos, o alemão que imigrou para os Estados Unidos, Franz Boas, um os precursores da antropologia cultural no inicio do século XX, escreveu: “A compreensão de uma cultura estrangeira só pode ser alcançada pela análise, e somos compelidos a apreender seus vários aspectos sucessivamente. Além disso, cada elemento contém traços claros das mudanças que sofrem no tempo. Estas podem se dever a forças internas ou à influência de culturas estrangeiras. A análise completa precisa necessariamente incluir fases que levaram à forma atual.” (Boas, 2004, pág. 59).
A visão de mundo que inspiraria as descrições destes viajantes sobre a vida no Brasil é caracteristicamente européia. Em visita ao Brasil, então colônia de Portugal, observam os costumes dos habitantes locais, que não têm a sofisticação material da vida nos países europeus de ponta da época (Inglaterra, França, Alemanha, Áustria, entre os principais). Influenciados por sua cultura e sem conhecimentos ou senso crítico suficiente capaz de relativizar seus próprios costumes, julgam a cultura dos brasileiros como primitiva, característica de um povo longe dos padrões da “civilização européia”. Em seus comentários, não conseguem ver que: “Se conseguirmos desse modo dominar o significado de culturas estrangeiras, também devemos estar aptos a ver quantas de nossas linhas de comportamento – que acreditamos estar profundamente fundadas na natureza humana – são na realidade impressões de nossa cultura e estão sujeitas a alterações produzidas por mudança cultural. Nem todas as nossas normas são categoricamente determinadas por nossa qualidade de seres humanos: várias delas mudam com as circunstâncias.” (Boas, 2004, pág. 109).
A partir do século XX o estudo de outros povos evolui com a antropologia, que chegou também a ter funções militares. A idéia básica por trás da iniciativa estava em estudar determinadas culturas, conhecer-lhes os aspectos de interesse aos fins de uma potência da época (os países já citados acima) – principalmente suas idiossincrasias – e explorá-las a favor (do país, de grupos sociais, de interesses econômicos, etc.).  Um exemplo simples disso, mas bastante significativo, está na história brasileira dos primeiros tempos. No final do século XVII, o bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, estava acuado pelos índios goitacazes no sertão de Minas Gerais. Tomou um pouco de aguardente, colocou-a em uma vasilha e pôs-lhe fogo, dizendo que faria o mesmo com os rios, caso os indígenas atacassem seu grupo. Os goitacazes, com medo, chamaram-no de Anhangüera, que quer dizer “diabo velho”. O bandeirante sabia que os índios não conheciam a bebida destilada e usou este fato em seu favor. Explorou assim um aspecto da cultura indígena em benefício próprio – ou pelo menos para salvar sua vida e a de seu grupo.   
Um dos mais famosos casos de utilização da antropologia para fins militares foi o caso da antropóloga americana Ruth Benedict. Estudante da cultura japonesa, Benedict foi convocada pelo governo americano para que estudasse a cultura japonesa com fins militares. Fez uma série de pesquisas durante a guerra e depois foi estudá-la in loco, no Japão. Cita a antropóloga “Em junho de 1944, recebi o encargo de estudar o Japão. Pediram-me que utilizasse todas as técnicas que pudesse, como antropóloga cultural, a fim de decifrar como seriam os japoneses.” (...) “Em junho de 1944, trata-se, portanto de responder a uma multidão de perguntas sobre o nosso inimigo, o Japão” (...) (Benedict, 1988, págs. 11 e 12).
Em seu livro “O crisântemo e a espada”, Benedict passa a descrever a sociedade japonesa, gerando informações que ajudaram o governo americano a cooptar o Japão depois da Guerra, integrando-o à comunidade das nações alinhadas, em oposição àquelas perfiladas à União Soviética. Desta forma, a antropologia ajudou no esforço de guerra e contribuiu para fortalecer aspectos da Guerra Fria.
Bibliografia:
Boas, Franz, Antropologia Cultural, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, 109 págs.
Benedict, Ruth, O crisântemo e a espada, São Paulo: Editora Perspectiva, 1988, 264 págs.
(Imagens: fotografias de Haruo Ohara)

Geração e uso da energia elétrica

domingo, 16 de dezembro de 2012
"Tudo terminou para mim sobre a terra. Não podem mais me fazer nem bem nem mal. Não me resta mais nada a esperar nem a temer neste mundo, e aqui estou tranquilo no fundo do abismo, pobre mortal desventurado, mas impassível como o próprio Deus."  - Jean Jacque Rousseau  -  Os devaneios do caminhante solitário

O sistema de geração de energia elétrica no Brasil é em grande parte baseado nas hidrelétricas (66%). As demais fontes de eletricidade são: a geração a partir de gás natural (10%); petróleo (7%); biomassa (7%); as importações de energia (6%); a geração nuclear (2%); o carvão mineral (1%); e a energia eólica (1%). O que se percebe destes números, publicados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) em março de 2012, é que o Brasil está gradualmente diversificando sua matriz energética - principalmente aquela para geração de eletricidade. Além disso, nos últimos 15 anos o consumo de energia elétrica vem aumentando em um ritmo mais forte, principalmente por causa do crescimento da economia. Somente entre 2005 e 2007 o consumo deste insumo subiu 10%.
Um aspecto problemático sob o ponto de vista ambiental é que 18% desta energia são gerados por fontes não renováveis – gás natural, petróleo, carvão mineral. Estes tipos de combustíveis são utilizados em termelétricas e geradores e são fontes de gases poluentes da atmosfera, apesar dos filtros e outros sistemas de purificação das emissões. Especialistas ressaltam que na última década a matriz energética do Brasil acabou se tornando mais suja, aumentando as emissões de gases de efeito estufa que contribuem para as mudanças climáticas.
Os setores de maior consumo de energia são: a indústria (44%); os domicílios privados (25%); o comércio (17%) e outros, incluindo setor público (14%). Com o constante aumento do consumo de eletricidade devido à dinamicidade da economia – o Brasil não pode limitar seu crescimento e o bem-estar da população apenas de olho no volume das emissões – é necessário investir cada vez mais na geração de energia. É por essa razão que o governo planeja, entre as principais providências, aumentar a construção do número de usinas hidrelétricas na região amazônica, aquela que devido à área livre e ao volume de água disponível detêm o maior potencial de geração elétrica no território nacional.
Por outro lado, não adianta somente investir no aumento da geração; é necessário introduzir medidas de economia de energia. No Plano Nacional de Energia 2030, elaborado pelo Ministério das Minas e Energia (MME) em colaboração com a Empresa de Pesquisas Energéticas (EPE), estão estabelecidas diretrizes para o planejamento da energia no país prevendo, por exemplo, medidas de poupança de 10% da energia efetivamente consumida no país até 2030.
Providências para economizar e diversificar a geração de eletricidade tornam-se cada vez mais prementes. Se, por um lado, teremos uma demanda crescente que não pode deixar de ser atendida, por outro há diversos fatores que já influenciam e interferirão cada vez mais no planejamento energético. As mudanças climáticas, entre outros aspectos, poderão alterar o sistema sazonal de chuvas, o que deverá fazer com que a água se torne mais escassa em vários reservatórios. A recente queda do nível de água das barragens hidrelétricas, quase chegando às medidas de 2001, ano do "apagão energético”, pode ser um prenúncio destes fenômenos. Da mesma forma, o sucesso do setor de geração de energia eólica deve servir como incentivo, para que o governo dê mais atenção a outras fontes energéticas, como a solar, térmica e fotovoltaica; a energia de biomassa; de biogás; entre as principais, que ainda estão fora dos planos estratégicos.
(Imagens: fotografias de Marcel Gautherot)

As espécies invasoras

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012
"Os fracassos, diferentemente dos sucessos, não podem ser postos de lado e raramente são desconhecidos. Mas são poucas vezes vistos como como sintomas de oportunidade."  -  Peter F. Drucker  -  Inovação e espírito empreendedor

Espécies invasoras são aquelas que de alguma maneira passam a habitar um ambiente onde antes não existiam. Como exemplos típicos, temos o caso dos pardais, pássaros muito comuns em nossas cidades e que foram trazidos ao Brasil há séculos pelos colonizadores portugueses. Outro caso é o do eucalipto, espécie originária da Austrália, que se adaptou muito bem ao nosso clima e solo, tendo sido introduzido no país no final do século XIX, pelas companhias ferroviárias.
O problema principal gerado pelas espécies invasoras é a sua rápida adaptação ao novo ambiente e com isso a eliminação de espécies nativas, com as quais disputam alimento e território no mesmo nicho ecológico. Exemplos famosos são os coelhos e os sapos introduzidos na Austrália, que tanto se multiplicaram, que acabaram se tornando uma forma de contaminação biológica, competindo com outras espécies e dizimando-as. Caso mais grave é o da Nova Zelândia, ilha onde foram introduzidas mais de 20 mil espécies vegetais exógenas (estrangeiras), que lutam por recursos naturais com as mais de duas mil espécies nativas. Segundo especialistas no tema, já existem extinções documentadas na Austrália, provocadas por espécies invasoras. Problema semelhante acontece no Havaí, um conjunto de 132 ilhas, que sempre estiveram isoladas do resto do mundo desde seu surgimento através de atividade vulcânica, há dezenas de milhões de anos. Há dois ou três mil anos chegaram os primeiros polinésios, vindos do Pacífico Sul, que consigo trouxeram porcos, galinhas e ratos, além de outros pássaros e insetos (afora os microrganismos). Estes se adaptaram bem nas ilhas e com isso foram tomando o lugar de parte da flora e da fauna local. No século XVIII o navegador inglês James Cook aportou no Havaí, introduzindo outras espécies vegetais e animais na ilha, o que sobrecarregou ainda mais o ecossistema do arquipélago.
Além de eliminar espécies nativas – calcula-se que 40% de todas as extinções de animais são conseqüência da ação de espécies invasoras – há a possibilidade dos invasores causarem impactos na economia dos países. Basta imaginar o que uma espécie exógena de roedor, que se alimentasse da vagem de soja ainda no pé, poderia provocar nas plantações da região Centro-Oeste da Brasil. Esta é a principal razão pela qual as autoridades alfandegárias procuram controlar a entrada de espécies invasoras na forma de plantas, sementes ou animais, já que atualmente as grandes invasões são causadas pelos deslocamentos humanos. 
A destruição da biodiversidade de uma região pode provocar grandes impactos econômicos e sociais. Segundo declarou Ahmed Djonghlaf, secretário-executivo do Convênio sobre a Biodiversidade Biológica, “90% da população da África depende diretamente de recursos naturais como a biodiversidade da costa marinha e mais de 1,6 bilhões de pessoas de todo o mundo dependem diretamente das florestas para sua sobrevivência”.
A destruição provocada por espécies invasoras pode ser lenta e imperceptível, fazendo com que o impacto só seja percebido no longo prazo, quando já será tarde para salvarmos espécies que nunca chegamos a conhecer e a estudar.
(Imagens: fotografias de Orlando Azevedo)

da série "Assim se vive no Brasil"

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

A alta burocracia no olho da crise

(Entrevista com o sociólogo Bernardo Sorj, Professor aposentado da UFRJ e diretor doCentro Edelstein de Pesquisas Sociais, publicado no caderno Aliás de 9/12/2012 do jornal O Estado de São Paulo)

Para sociólogo Bernardo Sorj, do Rio de Janeiro, política não é religião secularizada e declarar-se a serviço da população não significa ter o monopólio do bem

Quase três décadas após a redemocratização, o Brasil da Operação Porto Seguro pode confiar na segurança de suas instituições? Deflagrada pela Polícia Federal, a investigação revelou um esquema de venda de pareceres técnicos, tráfico de influência e corrupção em órgãos federais e agências reguladoras envolvendo, entre outros, a chefe de gabinete da Presidência da República em São Paulo, Rosemary Noronha - personagem próxima do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. De Brasília, Dilma Rousseff afastou prontamente os envolvidos. De Berlim, Lula quebrou o silêncio apenas na última sexta-feira para dizer, sem mais explicações, que “não ficou surpreso” com o caso. No mesmo dia, Paulo Vieira, o ex-diretor da Agência Nacional de Águas (ANA), pediu exoneração do cargo e o Planalto aguarda atitude idêntica de seu irmão, Rubens Vieira, diretor da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Para piorar, por conta do envolvimento de seu adjunto, José Weber Holanda, a lama tisnou a reputação do advogado-geral da União, Luís Inácio Lucena Adams - até então pule de dez na próxima indicação da presidente para o Supremo Tribunal Federal.

Na opinião do sociólogo Bernardo Sorj, o novo castelo de cartas que desmorona no primeiro escalão do governo federal revela que o País ainda está longe de atingir a distinção republicana entre público e privado. E se destaca no rol da corrupção geral das nações por sua ocorrência “de forma quase sistemática”. Professor aposentado da UFRJ e diretor do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, no Rio - que atua na consolidação de democracias com justiça social na América Latina -, Sorj acredita que, embora o Brasil moderno e urbanizado tenha aprendido a respeitar a lei num sentido abstrato, ainda não é capaz de praticá-la com inteireza no dia a dia. “O desprezo pelo público, certamente em escala muito maior nas esferas do poder, está na prática cotidiana de praticamente todo cidadão”, afirma ele na entrevista a seguir. Uma distorção do desenvolvimento nacional que batizou de “individualismo transgressor”.
Segundo o sociólogo, para mudar “toda uma sociabilidade de desrespeito à norma, que começa lá embaixo e termina lá em cima”, decisões como a do Supremo Tribunal Federal no julgamento do mensalão são positivas. Mas o País terá que apostar na educação de seus cidadãos e se apoiar em reformas políticas e administrativas. “A tragédia brasileira é que o Estado passou a estar a serviço do sistema político, e temos que separá-los totalmente.”


O escândalo revelado pela Operação Porto Seguro é um caso clássico de confusão entre público e privado?
É um caso extremo, vergonhoso, triste. E a pergunta que deveria ser feita é: como chegamos a esse tipo de situação? Casos de condutas erradas por parte de funcionários públicos existem em qualquer parte do mundo. A diferença é que no Brasil isso ocorre de forma quase sistemática. E mostra que precisamos enfrentar a situação minimizando as possibilidades desse tipo de conduta. É um processo lento, gradual, que começa na vida familiar, passa pela escola e pelo respeito ao outro e ao espaço público, que são premissas básicas da democracia.

A incidência de casos de corrupção no Estado brasileiro aumentou ou diminuiu?
Se pensarmos em termos de longo prazo, obviamente a corrupção do Estado - e também das empresas em suas relações carnais com ele - aumentou muito. Mas aumentou na medida em que o Estado tem maior capacidade fiscal e porcentagem do PIB - há 50 anos o Estado tinha só 10% do PIB (em 2005, já passava de 36%, segundo o Ipea). Ao mesmo tempo, naquela época a corrupção estava em outro lugar. Era local, o coronel fazia o que queria em sua fazenda e a ilegalidade rondava cada pedaço de terra pelo Brasil. O cenário mudou muito com a urbanização do País. E gerou o que chamo de “individualismo transgressor”.

O que é ‘individualismo transgressor’?
Por um lado, nossa sociedade se modernizou. Temos indivíduos mais conscientes de seus direitos, com mais autonomia, mais acesso à informação, que participam de alguma forma da sociedade de consumo e recebem, em maior ou menor grau, benefícios de políticas públicas. Ao mesmo tempo, esse indivíduo moderno brasileiro é transgressor, pois continua mantendo uma cultura política que não respeita a separação entre o público e o privado. Ele não reconhece a universalidade das regras quando essas se aplicam a ele próprio, se utiliza das benesses do poder, do favoritismo e do nepotismo, desconhece nas ações práticas a lei e o próprio espaço público.

Então não é um problema apenas da classe política...
Exato. Vou dar um exemplo que pode parecer ingênuo. Quando eu dava aula, meus alunos ficavam falando sobre a corrupção no Estado. Aí eu dizia: “Muito bem, mas o que é a corrupção? É a apropriação indevida de recursos públicos. E a maioria de vocês nunca vem à aula. Vocês custam para o Estado R$ 15 mil, 20 mil ao ano, no mínimo. E jogam pela janela. Esse desprezo pelo público, certamente em escala muito maior nas esferas do poder, está na prática cotidiana de praticamente todo cidadão, quando não respeitamos o farol de trânsito, tentamos corromper um policial para não sermos multados, em toda uma sociabilidade de desrespeito à norma, que começa lá embaixo e termina lá em cima.

Mas é nas altas esferas do poder que essa cultura traz piores consequências, não?
Qual a tragédia brasileira? É que o Estado passou a estar a serviço do sistema político, e temos de separá-los totalmente. Porque é um ciclo que se repete: o que acontece com os partidos de oposição assim que chegam ao poder? Passam a considerar também que o Estado é um bem que lhes pertence e o utilizam em sua ação privada. A tragédia vale para todos os partidos.

É possível mudar essa cultura?
Não se muda nada por milagre. Cada passo é um passo. A decisão do Supremo Tribunal Federal de punir políticos que têm posições de poder estabelecidas foi um passo importante. Temos que criar um sistema de educação pública que introduza nas crianças valores cívicos. Passa por um sistema econômico em que não mais exista um setor informal que não paga impostos nem responde às leis trabalhistas e do comércio. Passa por separar e fazer o mais transparente possível a relação entre o Estado e as empresas, de forma que todos os anéis de corrupção sejam cortados. E por diminuir drasticamente os cargos de confiança. Todo o sistema do serviço público tem de estar, majoritariamente, nas mãos de funcionários de carreira, não de pessoas que chegam de paraquedas por indicação política.


O PT está completando uma década no poder federal, acompanhado por uma sucessão de escândalos. A que o sr. os atribui? À cultura sindical do corporativismo? A uma certa ortodoxia de esquerda que vê as instituições como moldáveis ao sabor do projeto político?
A questão não é entre esquerda ou direita. Tivemos direita corrupta no Brasil e, no momento, essa esquerda também mostra sinais amplos de corrupção. Nossa direita era elitista, mandonista, tinha desprezo pelo povo e achava que o Estado lhe pertencia. Já as esquerdas brasileira e latino-americana têm um problema de fundo. É acreditar que alguém, por ser de esquerda em termos de declarações ideológicas, está acima da lei e representa, por definição, o bem. Ou que, sendo de esquerda, representa os interesses do povo e, portanto, pode fazer o que bem lhe parece. O que implica um profundo desprezo pelas instituições democráticas. O PT carrega essa ideologia, de pensar que, pelo simples fato de ser PT e se autodeclarar representante do povo, está acima das instituições da norma democrática, pode fazer o que quiser e o Estado lhe pertence. Parte da nossa esquerda ainda não entendeu que tem que diferenciar governo e Estado. O último é um bem público que pertence aos cidadãos e não a um grupo específico, seja povo ou elite. Não temos uma situação tão grave como na Venezuela, que beira o autoritarismo. Mas o problema ocorre também no Brasil, embora haja setores dentro da esquerda que procuram lutar contra ele.

Quando o presidente do PT, Rui Falcão, afirma que a oposição no País não é feita por DEM ou PSDB, mas pela mídia e o Poder Judiciário, trata-se de um ataque às instituições?
Alguns porta-vozes do PT têm feito declarações profundamente antidemocráticas. Primeiro tentando estigmatizar a imprensa e os meios de comunicação por fazer oposição ao governo - quando o papel da imprensa é esse mesmo, seja o governo de esquerda ou de direita. Essa dificuldade de aceitar críticas vem da crença de se acharem representantes do povo e, portanto, do bem. É o que eu chamo de religião secularizada. Antigamente tudo o que a Igreja fazia era, por definição, pelo bem e pela salvação da alma. Em nome disso, fez até a Inquisição, torturou e matou. A esquerda se considera a salvação do povo e, em nome disso, está acima da lei, o que é uma profunda incompreensão da democracia. Sobre o Judiciário, acho interessante: o PT poderia ter festejado o fato de que foi um relator negro, de origem pobre, que teve a coragem de enfrentar políticos que inclusive o indicaram. O partido poderia ter transformado a conduta do ministro Barbosa em um elemento de autocelebração. Mas, em lugar disso, demonizam o relator e um Supremo majoritariamente indicado por Lula e Dilma.

E a atuação de Dilma diante dos escândalos, tem sido satisfatória?
Primeiro, não podemos mistificar o poder da presidente Dilma: ela depende de uma maioria para governar e, num país como o Brasil, onde no Congresso prevalecem interesses pequenos e pessoais dos políticos, é preciso fazer acordos que nem sempre agradam. Apesar disso, embora ainda seja cedo para avaliar seu governo, creio que a presidente tem procurado enfrentar os problemas de corrupção e utilização privada da máquina pública dentro dos limites que lhe dá sua base de poder. O que ela ainda não enfrentou são as reformas necessárias para a gente realmente modificar o quadro estrutural.

Quais seriam essas reformas?
Uma reforma política, a diminuição radical do número de cargos de confiança e a utilização de técnicos de alta qualidade para dirigir as empresas públicas e agências de regulação. Precisamos separar a máquina de Estado dos interesses políticos. No caso da reforma política, o elemento central é fortalecer o poder dos partidos em contraposição ao poder dos políticos que exercem mandatos. O mandato tem de estar mais associado ao partido, sua bancada e seu programa. Um segundo ponto é que pelo menos parte dos mandatos sejam distritais, de forma que as pessoas possam acompanhar mais de perto a atuação desses políticos. Em terceiro lugar, como já disse, precisamos de mais leis que punam ações ilegais de qualquer funcionário público - e aqui seria preciso também fazer uma mudança nos chamados fundos eleitorais, que hoje são uma caixa-preta em nome da qual praticamente tudo é permitido.

O que se pode fazer em relação ao financiamento eleitoral?
É preciso mais rigor na punição. Só para dar um exemplo, na Alemanha o ex-chanceler Helmut Kohl, pego num escândalo de uso indevido de fundos eleitorais, teve de renunciar e sair da vida pública. E lembre que Kohl foi possivelmente um dos grandes estadistas alemães do século, dirigiu a reunificação do país. A questão não é entre financiamento público ou privado, mas de transparência no uso dos recursos.

A PF e o Ministério Público são instituições que têm se fortalecido, em sua opinião?
No caso do MP, acho vergonhosos os intentos de diminuir seu poder. O MP é um dos grandes avanços da Constituição de 1988 e se alguma coisa tem de ser feita é no sentido de seu fortalecimento. Ele é o único instrumento que a cidadania tem para enfrentar o poder estabelecido, pois a gente não tem, como em outros países, a opção de “ligar para o meu representante no Congresso para que tome providências”. Em relação à Polícia Federal, muitas das últimas operações têm sido exemplares. Mas a verdade é que a PF ainda é muito fraca em termos de recursos humanos e materiais, levando-se em conta a enormidade de suas atribuições, desde a fiscalização de fronteiras até o combate ao crime organizado e à corrupção.

E atores da sociedade civil, como as ONGs, podem suprir deficiências do Estado?
Uma das avaliações erradas que fizemos em determinado momento foi pensar que as ONGs poderiam substituir parte das funções do sistema político. Elas não conseguem. Por duas razões: a primeira é que o mandato delas é fundamentalmente de denúncia e de disseminação de valores. Elas não entram nas questões estritamente de governo. A segunda razão é que parte dessas ONGs foram cooptadas pelo sistema político. Um tempo atrás, nas eleições anteriores na Câmara Municipal do Rio, um quarto dos políticos eleitos tinha suas próprias ONGs. Ou seja, a ONG muitas vezes é utilizada para desviar recursos públicos ou é cooptada com recursos públicos para defender o governo. O sistema político não pode ser substituído, ele tem que ser melhorado e fortalecido.

O sr. escreveu certa vez que hoje o mundo da política ‘se bifurca entre um Estado que administra sem utopias, e utopias que se afastam dos problemas de administração do Estado’. Podemos sair dessa encruzilhada?
É uma encruzilhada universal. O fim das grandes utopias revolucionárias teve um elemento positivo: acabou com a ideia de que um grupo representa o bem de uma sociedade e pode impor à maioria a sua vontade. Na medida em que elas acabaram, no entanto, isso também afetou a conduta das pessoas associadas ao sistema político. Se antes havia muitas pessoas generosas, ao menos nas intenções, que entravam na política em nome de ideias, hoje as ideias ocupam um papel cada vez menos relevante. Passou-se a atrair para a política pessoas, no melhor dos casos, ambiciosas - para as quais os ideais de sociedade são menores. Já as que tinham grandes ideais para a sociedade saíram dos partidos políticos para se localizarem em movimentos sociais, ONGs de direitos humanos, ONGs que se dedicam ao meio ambiente, e assim por diante. O resultado é que a maioria das pessoas que tem ideais e procura defender uma visão mais moral da vida política não está no sistema político - visto como um ambiente que perdeu suas motivações mais altas. Aí está a bifurcação: as pessoas que querem mudar sentem que não há lugar para elas no sistema político, no qual predominam a negociação e os interesses. Já na sociedade civil elas podem manter a pureza de suas crenças, mas com influência quase nula na vida política. Essa separação entre uma militância de sociedade civil com ideais, mas sem poder político, e um poder político que está perdendo seus ideais termina se expressando em fenômenos como temos visto no PT hoje.

A importância dos "empregos verdes"

domingo, 9 de dezembro de 2012
"Irmãos que depois de nós viveis,
Não tenhais duro contra nós o coração,
Porquanto se de nós, pobres, vos condoeis,
Deus vos concederá mais cedo o seu perdão.
Aqui nos vedes pendurados: cinco, seis:
Quanto à carne, por nós demais alimentada,
Temo-la há muito apodrecida e devorada.
E nós, os ossos, cinza e pó vamos virar.
De nossa desventura ninguém dê risada:
Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!
François Villon  -  Balada dos enforcados e outros poemas

Há alguns anos, quando o presidente dos Estados Unidos Barak Obama assumiu seu primeiro mandato, falou-se muito dos "empregos verdes"; profissões que direta ou indiretamente contribuem para a melhoria do meio ambiente. Aqui no Brasil, na mesma época, revistas e sites ambientais começaram a contabilizar as "carreiras verdes" existentes e aquelas que cresceriam no Brasil. À época, me chamou a atenção a comparação entre as pesquisas brasileiras e as americanas; os tipos de atividade que cada país valorizava. Nos EUA, previa-se a criação de empregos em áreas mais técnicas, tais como: instaladores de painéis solares, jardineiros para hortas comunitárias, especialistas em gestão de depósitos de reciclagem, técnicos de operação de unidades de energia eólica, entre outros. Em relação ao mercado brasileiro, falava-se da criação de cargos de engenheiros de meio ambiente, gestores de ONGs, engenheiros florestais, auditores ambientais, advogados ambientais e vários outros.
Interessante ver a diferença de enfoque das culturas dos dois países. Não que nos EUA (e na Europa) os cargos que demandem mais estudo (graduação, especialização, etc.) não sejam valorizados, ao contrário. Mas não são estes os principais postos de trabalho cuja criação é almejada por uma política de "empregos verdes". Tal iniciativa deve gerar um grande numero de ocupações; principalmente para aqueles com ensino de nível técnico, ou seja, profissionais em maior numero e que devido à remuneração mais baixa não conseguem poupar recursos para épocas de crise (leia-se desemprego). Foi exatamente nestas profissões que a administração Obama, na medida do possível, procurou investir. A necessidade de profissionais de nível técnico no setor de meio ambiente e energia é fato já conhecido há quase duas décadas, também na Alemanha. Os setores de produção e serviços de tecnologia de energia e ambiental não podem sobreviver só com pesquisadores, engenheiros, gestores e consultores, sem que exista uma base de técnicos capacitados, exatamente aqueles que vão operar o sistema todo: os aterros, as estações de tratamento de esgoto, as usinas de compostagem e reciclagem, as instalações de painéis solares, etc.
No Brasil, comparado aos países com mercados mais desenvolvidos, em grande parte a mentalidade ainda é diferente. Talvez porque, como dizem alguns, ainda sejamos um país de bacharéis. Valorizamos demais os títulos e os cargos - mesmo que estes não impliquem em conhecimento ou capacidade de trabalho - e depreciamos a atividade técnica, prática, a "mão na massa". Esquecemos, por exemplo, que um dos maiores filósofos do século XX, o austríaco Ludwig Wittgenstein, trabalhou parte de sua vida como jardineiro. Que os grandes inventores de implementos, equipamentos e ferramentas do início da Revolução Industrial inglesa, no final do século XVIII, eram em sua maioria artesãos; técnicos que adquiriram conhecimentos através do contato com a prática.
Não se trata aqui de desvalorizar os profissionais de maior formação, aqueles que são essenciais na condução dos sistemas e processos do mercado ambiental e de energia. O que pretendo ressaltar, é a importância da capacitação e da valorização dos técnicos; necessários em muito maior número do que os graduados e cuja formação e quantidade ainda não são suficientes para atender à demanda do mercado de "empregos verdes" no Brasil.
(Imagens: fotografias de Cristiano Mascaro)

Ainda a questão do saneamento

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012
"A seca não o apavora (o sertanejo). É um complemento à sua vida tormentosa, emoldurando-a em cenários tremendos. Enfrenta-a estoico."  Euclides da Cunha  -  Os Sertões

A infraestrutura brasileira continua não atendendo às necessidades do País. Portos, aeroportos, estradas e tudo mais - até os apagões estão novamente se tornando frequentes. O saneamento, apesar dos investimentos do PAC, também só avança lentamente. Ainda é significativo o numero de residências não ligadas à rede de coleta de esgoto. Segundo o diretor do Departamento de Água e Esgotos do Ministério das Cidades, Johnny Ferreira dos Santos, existem cerca de 50 milhões de pessoas, vivendo em 17,5 milhões de domicílios, que não têm acesso à rede coletora. A maior parte desta população vive nas regiões Norte e Nordeste. O pior é que do volume total de esgoto gerado no Brasil, menos de 60% é efetivamente tratado. O restante - vale a pena repetir toda vez - vai diretamente para os rios, lagos e oceano. A formação de "zonas mortas" no litoral brasileiro, áreas no oceano onde quase não existem peixes e abundam algas e outros organismos mais simples, é resultado da descarga de grandes volumes de efluentes domésticos.
Apesar da dificuldade em resolver o problema, colocando-nos no rol dos países latinoamericanos que menos tratam seus efluentes, representantes do governo parecem ser otimistas. O já citado diretor do Departamento de Águas e Esgotos do Ministério das Cidades, afirma que a universalização dos serviços de saneamento poderá ser alcançada até 2030, com um aporte de 430 bilhões de reais. Os recursos, segundo o especialista, estão garantidos no PAC 1 (Plano de Aceleração do Crescimento) e no PAC 2. "No PAC 1, tivemos R$ 40 bilhões para o setor e o PAC 2 ampliou de R$ 45 bilhões para R$ 55 bilhões o montante previsto para investimentos até 2015", completa.
O projeto de despoluição do Rio Tietê é um exemplo de como se encontra a questão do saneamento. O projeto foi iniciado em 1992, com aportes financeiros do Estado de São Paulo e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Ao longo do tempo, as obras sofreram descontinuidade, tanto por falta de recursos quanto problemas de gestão, demonstrando a importância secundária que o tratamento do esgoto ainda tem nas administrações públicas. Estava previsto que até 2015 deveria estar terminada a 3ª fase do projeto; o que elevaria a taxa de coleta de esgoto na Grande São Paulo de 85% para 87% e o tratamento de 72% para 84%. No entanto, a companhia estadual de saneamento, a SABESP, coordenadora do projeto, parece ter dificuldades em manter este cronograma, segundo a agência ambiental do estado, a CETESB. A questão já foi tão longe, que o Ministério Público entrou com uma ação contra a SABESP, a Prefeitura de São Paulo e o BID, pedindo uma reparação de danos ambientais no valor de R$ 11,5 bilhões. Enquanto a polêmica se estende, aproxima-se o prazo final previsto de conclusão da obra, em 2020.
Neste caso trata-se de uma das mais desenvolvidas e prósperas regiões do país. O que dizer, no entanto, sobre outros municípios, onde faltam recursos financeiros e humanos, além de inexistir uma imprensa crítica, capaz de alertar e mobilizar a opinião pública? Nunca custa repetir que a qualidade da infraestrutura, principalmente os serviços de saneamento, reflete o grau de desenvolvimento de um país e a preocupação do governo com o bem-estar de sua população. Por que, por exemplo, não destinar parte dos royalties do petróleo para financiar obras de saneamento?
(Imagens: fotografias de Chico Albuquerque) 

da série "Assim se vive no Brasil"

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

De marqueteiro a ideólogo

(Artigo de Maria Sylvia Carvalho Franco, publicado no caderno Aliás do jornal O Estado de São Paulo em 2/12/2012)


Ao projetar seu pragmatismo radical na política e na ética, João Santana orienta a prática partidária do PT

A mácula da escravidão persiste, prenhe de racismo: João Paulo Cunha, condenado pelo STF, alega que Joaquim Barbosa foi indicado "porque era compromisso nosso, do PT e do Lula, de reparar a injustiça histórica com os negros"; isto é, foi nomeado pela cor e não por mérito. A escolha do ministro soa como favor não retribuído, esquecendo-se Cunha de que "não se pode ser grato com a toga" (Ayres Britto). Para compreender a ofensa ao juiz, cabe lembrar o sentido moderno da escravidão, o modo como se entranhou na sociedade brasileira. Há tempos, desenvolvi a tese de que a escravidão moderna fora constitutiva do sistema capitalista, inerente à correlata ordem sociopolítica. Articulada ao capital nos mercados europeus, a produção nas colônias expandiu-se em termos absolutos: a grande propriedade abriu vastos recursos fundiários e a escravidão alimentou, veloz, a fonte inexaurível do trabalhador cuja expropriação deu-se de chofre, ao passo que esse processo corria, lento, nos mercados europeus. Esse nexo essencial entre escravidão e capital desdobrou-se de ponta a ponta na cultura brasileira.

Nesse caldo, o grupo dominante não teve limites ao poder, aliado a célere enriquecimento. Para cronistas do século 19, "ganhar dinheiro é seu único motto, sua única palavra de ordem", compreendendo "importação de mercadorias adulteradas, tráfico de moeda falsa e contrabando de escravos", fortunas feitas por "meios desonestos, por assassínios, furtos e estelionatos". Joaquim Nabuco sustenta: "Em nossos dias tudo parece sujeito a transações. A alma humana é posta em leilão".

O nó entre ética do vale-tudo e escravidão atingiu os homens livres e pobres. Alijados da produção mercantil e da posse fundiária, carentes de firmes vínculos coletivos, tornaram-se andarilhos solitários em violento universo de penúria. Os nexos entre ricos (fazendeiros, políticos, mercadores, governantes) e remediados (sitiantes, clientes, agregados, capangas) teceram, como favor, a dominação pessoal: suas contraprestações entrelaçam dádivas de amizade e parentesco, apoio econômico e amparo social, retribuídos por adesão política. Daí resultam lealdades e compromissos que estiolam a consciência do mundo social, concebível apenas mediante a encarnação do poder transfigurado em benefício para o subalterno. Firma-se a brutal alienação assim produzida: as figuras do favor não provêm do patrimonialismo obsoleto, como se aventa, mas da prepotência moderna.

O compadrio move essa engrenagem no Estado: o que de melhor fazer, a um afilhado, "senão provê-lo de um emprego público?" Fácil é manter influências "criando novos cargos e novos funcionários", notam cronistas do século 19. Monta-se a máquina administrativa, motriz da corrupção, induzida por nosso ilusório pacto federativo. No Império, a técnica de concentrar fundos locais no Executivo central exauriu os municípios a ponto de seus vereadores empregarem recursos próprios em obras públicas. Esse empenho de valores privados na esfera estatal tinha retorno coerente: "Se uso meus bens para encargos oficiais, por que não usar os do governo para meus fins?". Hoje, aprimorando esse vezo, os edis "negociam" recursos, mas nada colocam de seu e pilham, não raro, algo do butim.

Essa sinopse das práticas autoritárias ilumina a trama de favores e dinheiros, multiplicada a partir de um núcleo forte, em redes de parceria e cumplicidade. Hoje, pretensos benefícios atraem multidões fiéis ao benfeitor imaginário que, de fato, as aprisiona. A propaganda amplia o confisco da autonomia, suscitando a adesão mecânica ao herói protetor. Personagem mítico, é produzido por marqueteiros, como João Santana, que se esmera em transformar Dilma em Dama de Ferro e Haddad em Jovem Turco. Essa retórica opera na aparência: exemplo disso é o fantasma da "nova classe média", endividada na compra fácil de produtos industrializados, mas carente de moradia, face às condições leoninas do Minha Casa, Minha Vida - o candidato ouve, do agente bancário, o conselho de procurar uma "empreiteira acostumada a trabalhar com a Caixa". Empresários, não o povo, são beneficiários desses programas. Essa sofística chega a pautar a imprensa, que tragou a falaciosa invenção do "novo" apenso a Haddad, cria de Lula, formidável sobrevivente e chefe autoritário à moda antiga, mantido pela oligarquia sindical e outras mais rançosas. Nada de inédito nesses vultos e em outros delfins herdeiros de vetustas linhagens.

Entretanto, o devaneio de João Santana, em recente entrevista - conjugar Dilma presidente, Lula governador, Haddad prefeito -, não conta com o real e perigoso desenlace da onipotência - a morte do rei, ou do pai - com os anseios da progênie minando a hegemonia do protetor. Lula sitiado pela corrupção de seus ministros e auxiliares dá asas aos afilhados cobiçosos e justifica romper seus votos de lealdade. Doutro lado, o patrono escuda-se e desampara os que perderam serventia. No traiçoeiro utilitarismo que manipula sentimento e razão, frágil é a generosidade de quem dá, tíbia a gratidão de quem recebe. Ao projetar os espectros do pragmatismo radical na política e na ética, valendo-se do imaginário vulgar e dos vícios da oligarquia brasileira, Santana orienta a prática partidária e passa de marqueteiro a ideólogo do PT. Seu sectarismo lhe permite reduzir as sessões do STF a "reality shows", atribuindo-lhes, assim, a falta de escrúpulos dessa mórbida exploração da curiosidade. Mais grave, esse espetáculo fere preceitos constitucionais, como o direito à privacidade, à intimidade e à honra. Essa violência arbitrária conjugada a alvos financeiros espezinha a dignidade humana. A analogia de Santana, portanto, atribui a violação das garantias inalienáveis da pessoa àqueles que receberam o mister de zelar pela Constituição. Essa arrogância o conduz ao "dever" de alertar os ministros contra o tóxico "excesso midiático", veneno do qual ele próprio abusa.

MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO É PROFESSORA TITULAR DO DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA DA USP E DA UNICAMP

Qual o impacto ambiental das atividades econômicas?

domingo, 2 de dezembro de 2012
"Platão apresentou Sócrates como uma pessoa viva, um homem real. Porém, conforme as idéias de Platão tomavam forma e exigiam sua pregação, o pobre Sócrates, cuja morte real Platão tanto lamentava, era morto pela segunda vez, tornando-se um mero homem sem expressão, um boneco de ventríloco a expressar não a própria filosofia, mas a platônica."  -  Paul Johnson  -  Sócrates - Um homem do nosso tempo

As empresas privadas e públicas brasileiras estão atuando de maneira mais correta em relação ao meio ambiente do que há 15 ou 20 anos? Podemos dizer que de uma maneira geral produzimos, distribuímos e consumimos de uma forma a desgastar menos os recursos naturais; oceano, rios, solos e a biodiversidade? Não sabemos com certeza, não dispomos de informações suficientes. O que podemos afirmar é que das cerca de sete milhões de empresas – 95% das quais de pequeno porte –, a maior parte é oficialmente existente, recolhendo impostos, tem funcionários registrados e segue algo da legislação ambiental, pelo menos em seus principais aspectos. Estas informações sobre as empresas e suas atividades podem ser obtidas de diversas formas; através das prefeituras, bancos, receitas federais, órgãos fiscalizadores, associações industriais e comerciais e outras fontes de informação.
Especificamente em relação à atuação ambiental de um empreendimento ainda estamos limitados, em termos de fontes de dados. Os órgãos ambientais e as prefeituras aos quais as empresas – pelo menos em regiões administrativamente melhor organizadas – têm por obrigação fornecer determinadas informações, ainda têm uma atuação limitada. Somente nos grandes centros e nas regiões economicamente mais avançadas é que a ação fiscalizadora se faz mais presente. No restante do país o descumprimento das leis ambientais somente é descoberto através de denúncias de cidadãos, da imprensa, de ONGs ou do Ministério Público. Não é preciso ir longe para constatar esta situação: a algumas dezenas de quilômetros das regiões metropolitanas brasileiras empresas cometem diversos atos ilícitos, prejudiciais ao meio ambiente, e somente são autuadas pelo órgão ambiental através de denúncias.
Assim, grande parte das atividades econômicas das empresas acontece sem que os aspectos ambientais sejam contemplados. Nem o atendimento do básico da lei ambiental – o quesito mínimo para atenuar o dano ambiental – é regra geral; em muitas regiões brasileiras é exceção. A extensão territorial, a falta de comunicação, a inexistência de um órgão de controle ou o desaparelhamento deste, caso exista, faz com que a lei ambiental não seja cumprida.
É um engano dizer que o relativo aumento da conscientização ambiental necessariamente trouxe consigo uma efetiva melhora na preservação dos recursos naturais. O que efetivamente deve ter ocorrido – não existem dados ou estudos conclusivos sobre o fato – é que o crescimento da economia nos últimos dez anos tenha aumento a pressão sobre os ecossistemas. Mais produção, aumento da exploração dos recursos, maior geração de resíduos, ocupação de novas áreas pelas cidades e pela agricultura; tudo isto sem um devido acompanhamento dos órgãos de controle ambiental.
Na pratica não dispomos de suficientes informações sobre a maneira como as empresas estão se conduzindo em relação ao meio ambiente – e isso não se limita apenas às pequenas e médias empresas. Mesmo grandes corporações têm incorrido em práticas ilegais, denunciadas por ONGs, sindicatos ou pela imprensa independente. É necessário aprimorar o sistema de informação sobre todos os setores da economia – mineração, agropecuária, indústria e serviços – para gerenciar e reduzir o impacto das atividades econômicas ao meio ambiente. O Brasil precisa avançar também na proteção dos recursos naturais e não somente em seu uso.    
(Imagens: fotografias de Carlos Moreira)