da série "assim se vive no Brasil"

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014
Em busca do urbanismo perdido
'O caos de São Paulo é reversível. Mas é preciso uma verdadeira vontade coletiva de sair do buraco', diz escritor
(O Estado de São Paulo, 25 de janeiro de 2014)

Enquanto São Paulo festeja seus 460 anos, o poeta Antonio Risério escreve em Salvador. Desta vez, não um verso ou uma música, mas uma crítica atilada sobre os retratos deste Brasil. "As cidades brasileiras estão vivendo dias especialmente difíceis, de uma ponta a outra do País. Estão maltratadas, sujas, agressivas", descreve o antropólogo e autor de A Cidade no Brasil e A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros (ambos publicados pela Editora 34).
Atravessamos a maior crise urbana da história brasileira, define o escritor, enquanto "nossos governantes, numa verdadeira marcha da insensatez, abrem mão da reforma urbana". Que fazer? "Para enfrentar a crise atual, precisaríamos de um verdadeiro Ministério das Cidades, de prefeitos que não se comportassem como agentes da especulação imobiliária, de uma vontade coletiva de sair do buraco."

Nesta entrevista ao Aliás, feita na quinta-feira, Antonio Risério discute as configurações urbanas brasileiras - especialmente dos pontos de vista histórico e antropológico - encravadas entre Copa e Olimpíada, MTST e MPL, passando por um rolezinho no shopping e um jogo no Paris Saint-Germain. Sua Salvador? "Uma mistura de cantora de axé, prostituta decadente e capoeirista bêbado, um vilarejo com elefantíase." Rio vitrine olímpica? "Tende a ser o paraíso do autoengano. O País não está nadando em dinheiro. A prioridade deveria ser a luta contra a favelização." São Paulo aniversariante? "Diz muito de nossa força e de nossa miséria. Mas a cidade é bem maior que seus governantes. Em termos banais, mas sinceros, acredito que essa força vá vencer a miséria física e reinstaurar a urbanidade perdida."

De volta às ruas, manifestantes do MTST protestaram por mais moradia em São Paulo. Diante da cidade atual, fragmentada em diversos problemas (violência, trânsito, moradia, mobilidade, cracolândia, etc.), o caos de São Paulo é irreversível?

É reversível, desde que não sejamos irresponsáveis. Atravessamos a maior crise urbana da história brasileira. E nossos governantes, numa verdadeira marcha da insensatez, abrem mão da reforma urbana. Ninguém ouve mais falar da grande reforma urbana nacional que a presidente Dilma Rousseff se comprometeu a fazer. As promessas não se traduziram em práticas. O programa Minha Casa, Minha Vida constrói hoje as favelas do futuro. Em São Paulo, Fernando Haddad lançou o projeto Arco do Futuro, mas logo o jogou no lixo. O Brasil é um país que, por flexibilidade ou por hipocrisia, chega muito fácil a certos consensos, mas não realiza as coisas. É por isso que podemos falar de consensos subversivos - consensos que, se levados à prática, transformariam espetacularmente a vida brasileira. Por exemplo: todo mundo concorda que todos precisamos de um lugar onde morar. Mas por que até hoje isso não aconteceu? Milhões de brasileiros, depois de 20 anos de governos social-democratas, continuam amontoados em alojamentos deprimentes. Em nenhum outro lugar a desigualdade social se expressa de forma tão clara e brutal quanto na moradia. No entanto, a carência habitacional seria superada se os donos do poder e do dinheiro conjuntamente o quisessem. Para enfrentar a crise atual, precisaríamos de um governo que levasse o assunto a sério, de um verdadeiro Ministério das Cidades, de prefeitos que não se comportassem como agentes da especulação imobiliária, de uma verdadeira vontade coletiva de sair do buraco. De uma verdadeira reforma urbana.

Estima-se que cerca de 400 mil pessoas serão afetadas pela realização da Copa de 2014 e da Olimpíada de 2016, no Rio. Ainda nessa semana, Estocolmo desistiu da disputa para sediar os Jogos Olímpicos de Inverno de 2022, argumentando que a capital sueca tem outras prioridades - e a conta para organizar os jogos seria alta demais. O argumento sueco convence?

Quando promoveu a Olimpíada de Barcelona, a Espanha andava rica. A China também tinha como gastar e gastou, ainda que ferindo a paisagem urbana tradicional de Pequim. Então, o argumento convence. Mas o Brasil tende a ser o paraíso do autoengano. O país não está nadando em dinheiro. Depois de Antonio Palocci, a política econômica do governo meteu os pés pelas mãos. Estamos combinando crescimento medíocre e inflação controlada artificialmente. A prioridade deveria ser a luta contra a favelização do país, por casas decentes e serviços públicos de qualidade, contra a violência e o narcotráfico, contra a podridão do sistema político e pelo direito de todos à cidade. Como foi dito nas ruas durante as manifestações de junho. Mas os governantes querem manipular as coisas. Dizem que o Brasil avançou tanto nos últimos dez anos que agora vai às ruas dizer que quer mais. Até as manifestações de junho passam a ser vistas como subproduto da excelência dos governos do PT. Mas o Brasil não foi às ruas dizer que "quer mais". O Brasil quer diferente. Quer um governo cujo compromisso maior não seja com o mercado e o consumo, mas com a melhoria das condições de vida das pessoas. Além disso, o que Fernando Henrique e o PT não querem reconhecer é que eles atiraram fora a oportunidade histórica de renovar a política no Brasil. As pessoas foram para as ruas dizer que é necessário revitalizar a democracia brasileira, hoje degradada. A sociedade quer ser ouvida, manifesta anseios de democracia direta, etc., e exige hospitais "padrão Fifa". Ok. A prioridade do Brasil tem de ser investir na população brasileira.

Estão previstos para esse sábado 36 protestos contra a Copa - marcados em todos os Estados e no DF com o slogan #nãovaitercopa. Curitiba, antes considerada exemplo de urbanismo e mobilidade, periga ficar de fora do mundial devido a atrasos nas obras. Queremos a Copa? Por quê?

Queremos a Copa porque, como a Inglaterra e a Argentina, pensamos que isso aqui é o país do futebol. Entendo que o povo brasileiro queira ver partidas espetaculares, diferentes do futebolzinho de nossos campeonatos. Confesso que acompanho mais o campeonato espanhol do que o brasileiro. Prefiro ver nossos craques no Paris Saint-Germain, no Chelsea, no Milan, etc., a perder meu tempo com os pernas de pau do Botafogo ou do Palmeiras. Dá vontade de ir ao estádio da Fonte Nova apreciar uma partida entre Portugal e Alemanha. De outra parte, é significativo que manifestações anti-Copa aconteçam no Brasil, país pentacampeão do mundo. Todos já viram a faixa "da Copa eu abro mão - queremos dinheiro para saúde, segurança e educação". Em vez de estabelecer um compromisso prévio com a iniciativa privada para viabilizar a Copa, nossos políticos e governantes preferiram o lance de marketing, faturando com o fato de trazer o grande evento para o Brasil. Mas a população vê a saúde e a educação públicas caindo aos pedaços. E paciência tem limite. Mesmo dentro dos estádios. A presidente foi vaiada na Copa das Confederações. E a cena vai se repetir na Copa do Mundo, se ela pisar no Maracanã. Ou seja: queremos a Copa, mas queremos também escolas e hospitais. O governo não pode gastar fortunas na Copa e migalhas com as pessoas que são e fazem o País.

Questão especialmente urbana, os ‘rolezinhos’ dominaram as páginas da imprensa nas últimas semanas. Em certo trecho do livro A Cidade no Brasil, o sr. discute os shoppings, citando Susan Sontag e Bauman. Diante dessas novas polêmicas, o que um shopping representa numa cidade?

Shoppings são espaços de consumo seguro e socialmente segregador. Prédios com uma arquitetura hostil à rua, aos acasos da cidade, ao ar livre, diversamente do que se pode ver num terreiro de candomblé. Mas não é só. Os shoppings não apenas contribuíram para destronar os antigos centros das cidades, como se dispuseram a substituí-los, convertendo-se em neocentros urbanos. Uma "cidade" dentro da cidade, triunfo radical e caricatural do "higienismo". O shopping é ainda um espaço interpessoal e intersemiótico. Os jovens sempre foram a face mais visível de seus frequentadores, embora seu público consumidor seja tradicional e predominantemente feminino, de diversas gradações etárias. E é claro que o shopping é, também, uma espécie de clube, com sua forma de sociabilidade. Anos atrás, Witold Rybczynski, um urbanista polonês-escocês, escrevia que o shopping era um lugar "com um nível razoável de ordem, com a garantia de que o consumidor não será importunado por atos bizarros de comportamento, nem abordado ou intimidado por adolescentes mal-educados, bêbados barulhentos e mendigos agressivos". É essa estufa de flores sociais variavelmente privilegiadas que se vê ameaçada pelo rolezinho. A ralé resolveu usar o clube para fazer sua festa. Para participar da grande festa do consumo, para a qual é seduzida diariamente pela publicidade, por telenovelas e outras vitrines do mundo rico. Por isso mesmo, é bom sublinhar que o rolezinho não é filho da pobreza, mas produto da desigualdade. E é uma bobagem a ideia de que tudo se resolverá com a construção de "rolezódromos". Longe disso.

Outra questão essencial para a cidade: é possível imaginar a despoluição do Rio Tietê?

Quase toda cidade que conheço, na vastidão territorial brasileira, nasceu na beira da água. Com a expansão urbana, esses rios, riachos e lagoas foram poluídos, transformados em esgotos, aterrados. Manaus é um exemplo terrível: avenidas e ruas construídas sobre o aterro dos igarapés. São Paulo, por sua vez, nasceu debruçada sobre rios e tratou de tentar matá-los. Mas ainda é possível recuperar muitas coisas. Hoje, uma dimensão importante e sedutora do discurso ambiental, em São Paulo, diz respeito à necessidade de recuperação dos córregos e rios da cidade. São muitos os estudos sobre esses fluxos fluviais que foram condenados à imundície ou a se mover nos subterrâneos da cidade. Arquitetos e urbanistas, como Alexandre Delijaicov com seu anel hidroviário, têm projetos para recuperar e reativar as coisas, planejando fazer novamente de São Paulo um lugar de portos, circulação de barcos e até de canoas. Vemos também essa preocupação em trabalhos recentes de alunos da Escola da Cidade. Mas também no discurso de artistas, como a cineasta Tata Amaral. A mensagem disso tudo é que uma nova São Paulo pode nascer a partir da transfiguração contemporânea de sua própria origem, isto é, recuperando e reincorporando seus rios ao movimento dinâmico da vida, reestruturando suas relações com as águas.

O MP foi à Justiça contra a Prefeitura de São Paulo para obrigá-la a resolver o problema das enchentes e indenizar vítimas de alagamentos. Mas, todo verão, cidades brasileiras são castigadas por chuvas e alagamentos. Se é assim uma ‘tragédia anunciada’, que medidas devem ser tomadas para evitá-la? E por que não as tomamos?

Nossos governantes sabem o que precisa ser feito - e não é de hoje. São Paulo não está condenada a sofrer todo ano com enchentes. Foi a urbanização das várzeas que transformou as cheias naturais em enchentes crônicas. Com o tempo, e como os governos não se empenhavam com seus recursos e energia para resolver o problema, a questão foi se agravando: os rios de São Paulo, antes objeto de lazer e contemplação, viraram fonte de problemas. Tecnicamente, é possível resolver isso. Basta perguntar a qualquer bom técnico da gestão de Kassab ou de Haddad que ele explica direitinho o que tem de ser feito. O problema é que ninguém faz. Mas talvez isso mude, em consequência da expansão da consciência socioecológica na sociedade - e porque tudo indica que aquela conversa de que saneamento não dá voto vai ser cada vez mais coisa do passado. O que acho inaceitável é ouvir um Sérgio Cabral dizer, a cada enchente que devasta casas e vidas no Rio, que a situação é essa porque nunca os governos tentaram modificar as coisas. Isso é cara de pau. Quem está há dez anos no poder não tem o direito de usar essa desculpa esfarrapada.

A questão do transporte público ganhou força desde junho, com o MPL. A discussão sobre o transporte público é página virada?

A luta pelo transporte público bom e gratuito é fundamental. Insisto na gratuidade porque, conforme o IBGE, 37,3% dos brasileiros andam a pé por falta de dinheiro. É mais gente a pé do que de transporte coletivo (29,1%) ou de carro particular (30,4%). E acho ridículo quando dizem que a moçada que luta contra o aumento da tarifa não precisa pagar ônibus. Se é verdade, a garotada de classe média está recuperando uma noção de solidariedade que parecia ter perdido. É maravilhoso que jovens privilegiados lutem pelo direito de todos se moverem gratuitamente nos espaços urbanos. Agora, a gente sabe que não houve nenhum avanço realmente significativo na matéria, em termos nacionais. Ainda há uma grande batalha. De Juscelino Kubitschek até hoje, a opção dos governos foi pelo carro individual. Kubitschek queria industrializar rapidamente o País e apertou o acelerador. Mas, mesmo recentemente, Lula e Dilma, com sua ênfase consumista, privilegiaram o comércio de automóveis, dando uma contribuição imensa para encalacrar de vez nossas cidades. Além de não atender a maioria da população, o carro individual sai caro demais para o governo. André Lara Resende chamou a atenção para isso: a indústria automobilística é a que mais gera gasto público. Carro novo na rua obriga o governo a usar recursos para fazer ruas, pontes, viadutos, etc. É um gasto absurdo, que poderia se concentrar no transporte público e melhorar a vida das pessoas e das cidades.

No livro, o sr. diz que, apesar dos diversos problemas das cidades, é intrigante que um tema grave quase nunca seja destacado: a segregação socioespacial ou socioterritorial. Que seria essa segregação?

A segregação socioespacial acontece quando as pessoas deixam de viver misturadas e o território é repartido em função da estratificação econômica, com os mais ricos se concentrando em determinada área citadina e os mais pobres obrigados a procurar outros cantos para morar. O problema não é exclusivamente brasileiro, mas nosso processo tem sua especificidade. Na América espanhola, por exemplo, as cidades já nasceram segregadas. Eram cidades geometrizadas, com as classes e etnias distribuídas de forma compartimentada ao longo da grelha. No Brasil, não. Senhores e escravos viviam próximos uns dos outros. A segregação só se impôs com os processos de modernização urbana. O Rio, por exemplo, era uma cidade apertada, onde todos eram vizinhos. A separação começou com a expansão rica tomando a direção do subúrbio, como vemos no romance de Machado de Assis, com seus casarões em lugares então distantes como Botafogo ou Flamengo. Com Brás Cubas caçando de espingarda na Tijuca. E essa segregação se acentuou de Mauá a Pereira Passos, com a modernização do centro. Os pobres foram quase todos enxotados das áreas centrais e subiram os morros ou foram para espaços afastados. Não foi diferente o que aconteceu em São Paulo e Salvador. Mais recentemente, essa separação espacial segundo linhas de classe e cor se tornou menos geográfica do que pontual. A população não é mais necessariamente segmentada em bairros diferentes. O que segrega é o caráter de enclave que as residências dos mais ricos assumem, com cercas elétricas e sistemas de vigilância. Na antiguidade clássica, as cidades se cercavam de muros a fim de se proteger de inimigos externos. Hoje, os muros são internos, separando concidadãos. E esses muros precisam ser derrubados, tornar-se desimportantes, para que as nossas cidades, com todos seus inevitáveis conflitos, sejam socialmente saudáveis.

Agora no 460° aniversário da cidade, o que São Paulo diz sobre nós? O que Salvador diz sobre o sr.? E, por fim, o que as cidades brasileiras dizem sobre o Brasil?

As cidades brasileiras estão vivendo hoje dias especialmente difíceis, de uma ponta a outra do País. Estão maltratadas, sujas, agressivas. Salvador parece uma mistura de cantora de axé, prostituta decadente e capoeirista bêbado, um vilarejo com elefantíase, com uma classe rica incomparavelmente grosseira e governantes que não têm ideia do que seja uma cidade. Às vezes, chego a pensar que a população atual de Salvador não está à altura da cidade que herdou, porque, se estivesse, não avacalharia tanto o lugar. Mas não penso que seja o fim do mundo. São Paulo também atravessa tempos muito conturbados, mas acho que está melhor do que Salvador. Prefiro mil vezes andar pelas ruas paulistanas do que pelas baianas. Para usar um clichê, São Paulo diz muito de nossa força e de nossa miséria. A cidade é bem maior do que seus governantes. E - ainda em termos banais, mas sinceros - acredito que, mais cedo ou mais tarde, essa força (humana, social, cultural) vá vencer a miséria física e reinstaurar a urbanidade perdida.

Impressões das férias de verão

sábado, 25 de janeiro de 2014
"Pelo que podemos dizer, toda a atividade do cérebro é impelida por outra atividade no cérebro, em uma rede amplamente complexa e interligada. Bem ou mal, isto parece não deixar espaço para nada além de atividade neural - isto é, não há espaço para um fantasma na máquina."  -  David Eagleman  -  Incógnito - As vidas secretas do cérebro

Voltam as férias de verão e novamente enchem-se as praias com turistas de todas as partes do País. A odisséia já tem início no planalto, onde os viajantes começam enfrentando longos congestionamentos em grande parte provocados pelos pedágios. Passado o pedágio começa a viagem, que às vezes pode durar mais de cinco horas para vencer em torno de 100 quilômetros, dependendo do local para onde vai o resoluto viajante. Depois do calor, sede, fome, nervosismo e, eventualmente, "arrastões", o bravo turista chega finalmente ao seu destino. E aí começa a descarregar o carro e arrumar a bagagem porque no dia seguinte, bem cedo, vai à praia. A cidade já está completamente tomada por veranistas, que também vieram aproveitar as férias. Supermercados, restaurantes, padarias, farmácias e qualquer outro local onde se venda algo para comer ou beber estão apinhados de pessoas irritadas, suadas e cansadas, querendo pegar logo o que precisam e sair o mais rápido possível dali.         
Este o quadro do turismo de verão no Brasil: congestionamentos, grandes massas humanas ocupando cidades sem a suficiente infraestrutura e segurança. Isto sem falar da falta de hospitais, postos médicos e atendimento de urgência. Basta ter o azar de precisar de atendimento clínico de emergência para si ou para algum familiar e constatar a precariedade do sistema de saúde da quase totalidade das cidades litorâneas – com raras exceções. Pergunto-me o que prefeitos de cidades praianas, que além de tudo ainda recebem verbas do pré-sal, fazem com estes significativos recursos, que muitas vezes chegam a 20% ou 30% do orçamento anual do município.
Outro aspecto é a questão da preservação dos recursos naturais. Apesar dos esforços de muitos municípios, disponibilizando lixeiras e varrendo diariamente as praias, turistas continuam a sujar a orla marítima com todo tipo de detrito: pontas de cigarros, fraldas descartáveis, embalagens, restos de comida e muito, muito mais lixo. Na beira da água, por entre banhistas e praticantes de esportes – nem todos permitidos naquele horário – circulam os caçadores de corruptos. Explico: corruptos são pequenos crustáceos que vivem na areia e são usados como isca para a pesca. (Os verdadeiros corruptos estão sãos e salvos, muito longe de qualquer ameaça). Não se sabe se estes pescadores de fim de semana têm autorização para pescar em meio aos banhistas; mesmo porque não existe qualquer fiscalização por parte das prefeituras.
Em dias de mar calmo os barcos dos pescadores locais aproveitam a falta de ondas e jogam suas redes a curta distância da praia, colocando em perigo os surfistas e outras embarcações que eventualmente circulam pela área. A fiscalização destas atividades deve ser feita pela Marinha, que provavelmente não dispõem de recursos humanos ou de equipamentos para cumprir este papel.
Assim são as férias de verão na maior parte das cidades litorâneas do Brasil: confusão, desorganização, ausência do poder público. A coisa só não é pior porque grande parte dos turistas tem muita paciência e procura agir de maneira civilizada. Mas permanece o fato de que a cada verão o veranista paga muito caro por suas curtas férias; em todos os aspectos. Como serão os verões daqui a 5 ou 10 anos, quando aumentar mais ainda a demanda por infraestrutura e serviços? Afinal, o que espera o poder público para começar a planejar e fazer algo desde já? Não temos exemplos suficientes de falta de organização e incapacidade administrativa - que o digam os turistas que virão assistir a Copa de futebol?
(Imagens: fotografias de Teóphile Auguste Stahl)

2014: começa o "show de calouros da política"

sábado, 18 de janeiro de 2014



"Quando morto estiver meu corpo

evitem os inúteis disfarces,
os disfarces com que os vivos,
só por piedade consigo,
procuram apagar no Morto
o grande castigo da Morte"
Pedro Nava  -  O defunto


2014 é ano eleitoral. O Brasil terá eleições no Legislativo, para senadores, deputados federais e estaduais; e no Executivo, para governadores e presidente. Por isso, seremos bombardeados pela propaganda eleitoral obrigatória, que nos é impingida pela legislação criada pelos próprios políticos. Teremos que aturar candidatos tentando nos convencer de qualidades que geralmente não têm. Um verdadeiro “show de calouros da política”: meias verdades, empulhações, mentiras deslavadas... No entanto, é melhor conviver temporariamente com este espetáculo, às vezes até engraçado, do que não ter liberdade política, como no período da ditadura militar. Outro aspecto positivo nesta história é que somente uma parte dos candidatos será eleita; por sorte ainda não existem tantos cargos para tanta gente, toda ela sustentada por nossos impostos.
A atração menos enfadonha do período eleitoral são os debates transmitidos ao vivo pela TV, geralmente para cargos executivos; governadores e presidente. Vez ou outra ocorre que um dos debatedores levanta questões mais importantes e decisivas, forçando a outra parte a dar respostas claras e objetivas. Tal situação, todavia, é rara ocorrer, já que a maneira como os debates são organizados pelas emissoras de TV, de comum acordo com os partidos e as assessorias dos candidatos, cria condições para que os participantes passem incólumes pelas discussões. Rara a situação em que o candidato seja colocado em uma situação, na qual efetivamente tenha que se pronunciar sobre algo importante, ou assumir uma posição definida em relação a algum tema crítico. Assessores e canais de TV cuidam para que isso não aconteça.  
Mas o que se espera é que nesta campanha eleitoral os candidatos sejam colocados sob mais pressão. Enquanto ficar o dito pelo não dito, os políticos, depois de eleitos, terão sempre condições de fazer exatamente o contrário daquilo que declararam ou prometeram durante a campanha eleitoral. “Não foi bem isso que eu disse”, “Na prática as condições são diferentes”, são desculpas que já conhecemos há tempo.

Para controlar melhor os candidatos aos cargos eletivos, é necessário aplicar-lhes o “princípio da entrevista para emprego”. Atualmente, principalmente nas empresas de grande porte, o candidato – além de ter que apresentar diplomas e credenciais de experiência anterior – é submetido a uma série de exames (inclusive de sanidade mental), sem contar as entrevistas com o departamento da empresa que dispõe da vaga pretendida pelo candidato. Assim, a fase de campanha eleitoral poderia ser algo parecido à disputa de uma vaga de emprego para o político. De certo modo, é exatamente o que ele pretende: amealhar uma vaga para um emprego bem pago, com diversos benefícios (salário mensal, 14º e 15º salários, ajuda de custo, auxílio-moradia, reembolso de despesas médicas, verba de gabinete, carro oficial, verbas para impressão, etc.,) afora outras eventuais vantagens.
Trata-se, sem dúvida, de um “empregão”, caso contrário não haveria tantos candidatos. E o melhor deste cargo é que a aposentadoria é muito boa e o “funcionário” não pode ser facilmente demitido, como o são os empregados do setor privado. Portanto, nestas eleições façamos diferente: examinemos o currículo do candidato como o fazem as empresas, analisemos suas aptidões e até sua sanidade mental (em alguns casos bastante afetada). Porque, para todos nós que somos contribuintes, cargo político é coisa séria, e não “show de calouros”.  
(Imagens: fotografias de Brett Weston)

2013: "passa a régua e fecha a conta!"

sábado, 11 de janeiro de 2014
"O equilíbrio ecológico não se quebra sem que haja repercussão profunda na esfera da cultura. Com o rompimento desse equilíbrio pode alterar-se e descaracterizar-se toda uma área da cultura. Assim a introdução do bisão numa das áreas de cultura americana foi causa de alterações profundas de ordem cultural."  -  Gilberto Freyre  -  Problemas brasileiros de antropologia

O ano de 2013 não teve acontecimentos importantes na área ambiental. Na newsletter de novembro-dezembro do meu site (www.ricardorose.com.br) escrevi o seguinte:
O ano de 2013 termina sem grandes novidades na área ambiental – o que também pode significar que nada de importante aconteceu. No setor de saneamento continuam as obras do PAC, em um ritmo aquém do necessário para um país com a extensão territorial e a população do Brasil. Segundo dados da Câmara Brasil-Alemanha e do Departamento de Comércio dos Estados Unidos, os investimentos nesta área – tratamento de água e efluentes domésticos – deverão ficar em torno de R$ 12,3 bilhões; valor abaixo dos R$ 15 bilhões necessários para equacionar o problema de saneamento até 2030. Continuaremos a ser um dos países com os mais baixos índices de tratamento de esgotos em toda a América Latina.
A gestão de resíduos deve receber investimentos privados e públicos em torno de R$ 8 bilhões em 2013, segundo estudos realizados por entidades estrangeiras. Será impossível que todos os municípios brasileiros estejam preparados para atender a Lei de Resíduos Sólidos até agosto de 2014. Se por um lado faltam recursos – e aí deparamos com problemas de gestão no Ministério das Cidades, em governos estaduais e prefeituras – por outro não dispomos de técnicos suficientes para introduzir as mudanças. A falta de mão-de-obra especializada no setor ambiental continua a ser um problema. A procura por profissionais especializados só não é maior, porque o controle do cumprimento da legislação continua fraco e a pressão da opinião pública ainda é quase inexistente.
Alguns acontecimentos podem apontar novas tendências no setor da sustentabilidade em geral. A invasão do Laboratório Royal em São Roque, SP, por ativistas de associações de proteção aos animais – neste caso para resgatar cães da raça beagle usados para experiências científicas –, deve despertar um novo tipo de conscientização. Paralelamente surgirão discussões sobre o abate humanitário de animais, já que o Brasil é o maior exportador mundial de carne. O tema já é defendido há muito tempo pela ONG WSPA e precisa ser cada vez mais divulgado (http://www.wspabrasil.org/wspaswork/factoryfarming/Abate-humanitario.aspx). 
Depois do leilão da reserva de petróleo de Libra, na área do pré-sal, o governo veio a publico para dizer que as multas sobre vazamentos de petróleo poderão alcançar valores mais altos. Ao invés de apresentar as providências que teria tomado para evitar e combater prováveis vazamentos, o ministério do Meio Ambiente só fala em eventuais punições. Pelo menos 1.000 quilômetros da costa brasileira, entre Espírito Santo e São Paulo, podem ser afetados por vazamentos de petróleo – coincidentemente a região onde se concentra o maior número de turistas durante os meses de verão. Prevemos que a questão dos vazamentos de petróleo se tornará tema importante na área ambiental.
Em São Paulo aconteceram duas novas feiras internacionais de grande importância para o setor de sustentabilidade. A realização destas duas feiras – uma na área das energias renováveis e a outra na de gestão de resíduos – demonstra o interesse de empresas estrangeiras no potencial do mercado brasileiro. Assim, apesar da pouca ação do governo, o setor vai avançando e se desenvolvendo, aos trancos e barrancos. 
(Imagens: fotografias de Ute Mahler)   

A atualidade do pensamento de Josué de Castro

sábado, 4 de janeiro de 2014
"It´s really that simple. No one is above you, telling you what to do. All of the 'purpose' is within you and nowhere else. You´ve been born into a world where previous generations have left you a toolbox that they used to build their lives, and the next generation will simply use whatever you leave them, if anything, and they will find their own purposes, with no sense of obligation to yours. It´s beautiful. It´s open. No purpose is the best kind of purpose there is."  -  P Z Myers  -  The happy atheist

O espectro da fome sempre assustou a humanidade. Em algumas casas no interior do Brasil ainda encontramos antigos quadros que retratam Nossa Senhora, encimada pelos dizeres: “Nossa Senhora livrai-nos da guerra, da peste e da fome.” Memória de antigos tempos, principalmente na Europa, quando parte da população rural vivia sob a ameaça destas três pragas da humanidade. No Brasil também houve crises de fome em diversas épocas, principalmente no interior do Nordeste, o que provocou mortes, desagregação social e o consequente deslocamento de grandes contingentes populacionais para as capitais situadas no litoral.
Um dos maiores estudiosos do problema da fome no Brasil foi o médico, professor, sociólogo e escritor Josué de Castro. Se ainda fosse vivo, completaria 105 anos em 2013. O grande mérito deste intelectual foi estudar o problema da fome e de suas causas. Não somente sob o aspecto histórico, mas utilizando-se dos mais avançados conceitos da bioquímica e da fisiologia de sua época. Com suas análises, Josué de Castro abriu novos campos de estudo na sociologia, geografia, antropologia e economia. Já na década de 1930, o grande cientista identificaria claramente as razões da formação dos mocambos (habitações pobres) nos mangues de Recife. “Por exemplo, não pode haver dúvida”, escreve Josué de Castro, “de que uma das causas diretas da miséria urbana de Recife é o estado de miséria rural condicionado pelo latifundismo da cana-de-açúcar. Na grande área do Estado, de monocultura açucareira, vive a população trabalhadora num estado de grande pauperismo, resultados dos ínfimos salários pagos nesta zona”. (Josué de Castro, 1965). 
O estudioso descreve assim, uma das causas da desestruturação urbana de Recife e de suas conseqüências; cujas origens estavam nos problemas fundiários localizados no interior do estado. Ainda hoje, o Brasil se ressente de um ordenamento dos problemas urbanos – falta de transportes, segurança, saneamento, saúde e educação – em parte originados pelo deslocamento de grandes massas populacionais do campo, à procura de melhores condições de vida na cidade. Para agravar a situação o estado, em seus três níveis administrativos, não alocou recursos suficientes para fazer frente a estes problemas, colocando os grandes centros urbanos na situação em que se encontram atualmente.
Autor de várias obras tratando do problema da fome e da pobreza no Nordeste, Josué de Castro lançou seu principal livro em 1951, intitulado Geografia da Fome. Seu conhecimento do problema era tão profundo, que em 1952 foi eleito presidente da FAO (organização das Nações Unidas dedicada à agricultura e aos alimentos). Terminada sua gestão na FAO, Josué de Castro voltou ao Brasil, onde ingressou na política e desenvolveu um Plano Nacional de Alimentação. Eleito embaixador em Genebra em 1962, tem seus direitos caçados pela Revolução de 1964. Depois disso, impedido de voltar à sua pátria, torna-se professor universitário em Paris, onde vive até a sua morte em 1973.
A obra de Josué de Castro ainda inspira estudos especializados no Brasil e no exterior, como um dos maiores pesquisadores do problema da fome – ainda mais agora quando este problema volta a ameaçar muitas regiões do globo. Um dos pioneiros também na questão ambiental relacionada com o desenvolvimento e a geopolítica, os livros de Josué de Castro merecem ser conhecidos por todos aqueles que se preocupam com a situação social no Brasil e a questão alimentar no mundo.         
(Imagens: fotografias de Arnold Genthe)