Natureza e felicidade

sábado, 28 de fevereiro de 2015
"No fim das contas, tudo o que havíamos chamado de 'matéria', 'vida', assim como 'natureza', 'deus', 'história', 'homem', precipita-se na mesma queda. A 'morte de Deus' é exatamente a morte de todas as substâncias-sujeitos. Assim como a primeira, essas mortes são muito extensas, intermináveis para a nossa percepção e até mesmo para nossa imaginação. E, além disso, elas trazem em si potencialidades outrora insuspeitas sobre a morte prática e concreta dos seres vivos, dos homens - e, por que não? - do mundo."  -  Jean Luc Nancy  -  Arquivida -  Do senciente e do sentido

Hoje nossa cultura dá muito valor ao bem-estar, à alegria e, cada vez mais frequentemente, à felicidade (ou aquilo que as pessoas consideram como tal). Atendidas as necessidades básicas de alimentação e proteção para a maior parte da população – pelo menos nas nações desenvolvidas e em desenvolvimento, sob influência da cultura européia – a idéia da simples sobrevivência passa a dar lugar a viver bem; viver com qualidade. E isto, além de incluir uma barriga cheia e um teto sobre a cabeça, também abrange segurança quanto ao futuro e saúde para desfrutá-lo. A este estado comumente se chama de bem estar, com momentos de alegria e, mais raramente, felicidade.
Nossa sociedade afluente tem origem no desenvolvimento de um tipo específico de capitalismo baseado no consumo, que surgiu nos Estados Unidos no início do século XX. O país à época já era o mais fortemente industrializado e disponha de um grande numero de trabalhadores com recursos excedentes para o consumo. Assim, foram inventadas máquinas e engenhocas, que se tornaram imprescindíveis no dia a dia das pessoas e que devido ao seu relativo baixo custo, poderiam ser adquiridas por grande parte da população: geladeiras, fogões, torradeiras, máquinas de lavar, automóveis. Nos anos 1930, com a popularização do uso da eletricidade (também no Brasil), apareceram os toca-discos, rádios, barbeadores elétricos e vários outros itens de utilidades domésticas. Todos estes implementos são feitos para aumentar a sensação de conforto e bem-estar, e sua compra traz alegria para muitos – mesmo que as prestações sejam altas ou que a assistência técnica dos produtos ruim.
Por toda a história também houve pessoas que defendiam uma vida mais simples. Desde os antigos filósofos cínicos e estóicos da Grécia e de Roma, passando pelas ordens religiosas mendicantes da Idade Média, até chegar aos intelectuais e ativistas modernos. Figuras como o poeta inglês William Blake (1757-1827), o escritor e filósofo americano Henry David Thoureau (1817-1862) e o escritor alemão Hermann Hesse (1877-1962) transmitiam em suas obras uma oposição ao industrialismo e contra a ilusória busca da felicidade baseada na obtenção de bens de consumo. Influenciado por estes e outros pensadores críticos, nasceu nos Estados Unidos nos anos 1960 o movimento “hippie” (palavra derivada de “hip”, que em inglês indica pessoa bem informada), que em poucos anos se espalhou por todo o mundo. Os hippies defendiam uma vida simples, livre do excessivo consumismo da sociedade industrial e valorizavam a natureza, em seus diversos aspectos. Pensadores que influenciaram o ideário hippie foram filósofos como Alan Watts (1915-1973) e Herbert Marcuse (1898-1979), além da filosofia indiana, o pensamento anarquista e o movimento da contracultura. Muito daquilo que os ambientalistas passaram a defender no final dos anos 1960 e início de 1970 tinha suas origens no pensamento hippie. Alguns fundadores de importantes ONGs, como o Greenpeace, são oriundos de grupos da contracultura americana e inglesa.
Em um ponto todos estes movimentos e filosofias estão de acordo: a felicidade, ou pelo menos a alegria, estava muito mais em uma volta à natureza; uma vida mais simples. Não no consumo, que muitas vezes não chega nem a nos trazer conforto e bem estar, servindo apenas como passatempo dispendioso, para afugentar o tédio.  
(Imagens: fotografias de Ricardo E. Rose)

A crise hídrica na região Sudeste

sábado, 21 de fevereiro de 2015
Alguma dúvida que Deus não é magricela com dores de úlcera e sim gordo bonachão que se delicia com moela, coração e sambiquira?"  -  Dalton Trevisan  -  A trombeta do anjo vingador

Macro fatores
A região Sudeste passa por uma seca muito forte; a maior nos últimos 80 anos pelo menos. As origens desta crise ainda não estão estabelecidas, mas alguns fatores chamam a atenção:
- Especialistas aprofundam uma teoria bastante aceita, de que grande parte da água que cai na forma de chuva sobre o Sudeste, Sul e Centro-Oeste origina-se na Amazônia – teoria conhecida popularmente como “rios voadores”, devido à grande quantidade de água nas nuvens. O processo é mais ou menos o seguinte: nuvens vindas do oceano Atlântico se precipitam sobre a floresta. Através do processo de evapotranspiração a água volta a evaporar e novamente se transforma em nuvens. A barreira da cordilheira dos Andes impede que estas nuvens formadas sobre a Amazônia continuem avançando, o que faz com que elas se desloquem para o Sul do continente, precipitando-se sobre São Paulo, Minas Gerais, etc. Uma das consequências que os especialistas tiram desta teoria científica é que quanto mais se desmata na Amazônia, menos nuvens e, consequentemente chuva, vão para o Sul. Apesar de ter diminuído nos últimos dez anos, o desmatamento na Amazônia ainda continua forte e cresceu novamente ao final do primeiro mandato de Dilma Rousseff.
- O fenômeno do “El Ninõ” (aquecimento sazonal das águas do oceano Pacífico, com influências sobre o clima global) também tem forte efeito sobre o volume das chuvas, principalmente do Norte e do Nordeste, e das temperaturas do Sudeste.
- O aquecimento global, causado pelas emissões de gases poluentes nas atividades econômicas – geração de energia, transporte, agricultura, indústria – também provoca mudanças no clima, como secas e chuvas intensas e extremos de temperatura. Além disso, o que é mais grave, o aquecimento global também está aumentando a temperatura média do grande sistema de controle do clima da Terra: os oceanos.


Fatores locais e políticos
A estes macro-fatores que têm influência no clima da Terra e nas regiões brasileiras, podemos ainda associar aspectos climáticos locais (diminuição de chuvas, aumento da temperatura), provocados pela atividade antrópica. Isto porque, ao longo dos últimos 100-150 anos, quando as atividades econômicas na região Sudeste começaram a aumentar através da agricultura e posterior industrialização, o impacto das atividades econômicas sobre o meio ambiente só aumentou. Destruíram as florestas (a Mata Atlântica), esgotaram-se os recursos hídricos; as cidades se expandiram.
Em todo este processo, os cuidados na conservação e recuperação dos estoques hídricos foram quase inexistentes – notadamente ao longo dos últimos vinte e cinco anos, quando o consumo de água aumentou exponencialmente. Pouco foi feito para recuperar a qualidade da água dos grandes reservatórios no entorno da região metropolitana (Guarapiranga, Billings) e quase nada foi investido para ampliar a zona de mata ciliar no entorno dos reservatórios do sistema Cantareira (Jaguarí, Jacareí, Cachoeira, Atibainha e Paiva Castro, entre os principais). Além disso, em muitas regiões do estado e da capital continuaram as invasões em áreas de mananciais, como acontece na região da Cantareira e na zona Sul de São Paulo.
Isto sem falar da falta de saneamento e da perda de água já tratada. Cerca de 60% dos efluentes domésticos de todo o país ainda são descarregados na natureza sem tratamento, poluindo os rios que abastecem as cidades. Quando chove pouco e o volume dos rios diminui, aumenta a concentração de esgotos na água, dificultando o tratamento para posterior distribuição à população. A perda de água provocada pelo mau estado das tubulações e por ligações clandestinas é de 35% em média; comparados aos 18% na Inglaterra e 8% na Alemanha e Japão.  
Para a crise hídrica há, portanto, causas climáticas e causas políticas. As primeiras são praticamente inevitáveis (pelo menos em curto prazo, quando se fala em redução de gases de efeito estufa), mas poderiam ter seu efeito diminuído. As causas políticas, porém, seriam evitadas ou diminuídas, se as administrações federal, estadual e municipal tivessem levado em conta o que cientistas, ONGs e outras instituições já estavam dizendo há tempos. Projetos de Lei relacionados à captação e reuso de água por residências, por exemplo, tramitam sem aprovação na Câmara dos Vereadores de São Paulo pelo menos desde 2003. Já em 1992 a SABESP havia encomendado um estudo de viabilidade para utilização das águas do rio Juquiá, afluente do Ribeira de Iguape. Desde lá, nada foi feito.
Do mesmo modo, também não se aprovaram leis que pudessem criar condições para que os recursos hídricos fossem mais bem utilizados. Por exemplo: incentivos para agricultores que produzem água através da conservação da floresta; para indústrias e plantações que utilizam menos água; para edifícios que coletam a água da chuva e reutilizam a água “cinza”; e muitos outros exemplos. 

Conclusão
A crise hídrica deverá estender-se por alguns anos, já que a recuperação do volume de água no lençol freático e nos reservatórios só ocorrerá com volumes constantes de chuva ao longo de anos. Nesse ínterim, o governo e a sociedade civil precisarão implantar rapidamente novas maneiras – mais eficientes – de utilizar os recursos hídricos. Este será o grande teste para o poder público e a sociedade: todos precisarão trabalhar juntos, de maneira coordenada, caso contrário o prejuízo ainda será maior para todos.
Por outro lado, existe também o questionamento que muitos cientistas estão se fazendo a respeito da mudança do clima, principalmente na região Sudeste do país. Será a atual falta de chuvas e o aumento médio das temperaturas uma tendência que se manterá no futuro? Estarão as condições climáticas se alterando de tal maneira, que nos próximos 50 a 150 anos a vida das populações da região Sudeste estará completamente alterada em seus aspectos econômicos e sociais? Haverá deslocamentos de atividades econômicas e de populações, para onde? O Estado saberá como acomodar estas mudanças?  
(Imagens: fotografias de John Gutmann)

Mais controle na atividade pesqueira

sábado, 14 de fevereiro de 2015
"[...] mas também a certeza de que nunca conseguiremos sobrepor ao universo as leis que supomos eternas e infalíveis. A nossa ciência não é nem mesmo uma aproximação; é uma representação do Universo peculiar a nós e que, talvez, não sirva para as formigas e os gafanhotos."  -  Lima Barreto  -  Crônicas escolhidas

Dois fatos relacionados ao meio ambiente marinho chamam a atenção no início do ano: os protestos contra a proibição da pesca de peixes em extinção e a descoberta de novas espécies marinhas no litoral de São Paulo. Por um lado, a pesca excessiva faz com que peixes como o cação-bico-doce, o mero, o badejo-tigre, o cação-anjo e a raia-viola estejam em desaparecimento. Por outro, cientistas descobrem novas espécies de briozoários (invertebrados que vivem incrustados em rochas e algas, conhecidos como “musgos do mar”) entre Ilha Bela e São Sebastião; região portuária e de grande atividade turística.
A descoberta demonstra que além das 1.500 espécies marinhas atualmente conhecidas na costa brasileira, ainda devem existir centenas de outras ainda por descobrir – mesmo em localidades com forte atividade econômica. No entanto, dado o ritmo de exploração das regiões costeiras – através da sobrepesca, aterramento de mangues, descarga de efluentes e descarte de lixo –, muitos animais até hoje desconhecidos podem desaparecer sem que tomemos conhecimento de sua existência. Este é um dos dilemas das ciências que estudam a vida: quantas espécies novas ainda poderão ser pesquisadas em seus ecossistemas, antes que este e seus moradores desapareçam?
Para tentar evitar a diminuição e posterior desaparecimento de espécies de peixe como a sardinha, o namorado a garoupa e crustáceos como o camarão-rosa, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) publicou em dezembro de 2014 a Portaria 445, que proíbe a pesca de diversos tipos de espécies marinhas. A medida gerou protestos em muitas partes do país, notadamente em Itajaí, em Santa Catarina, onde pescadores, sentindo-se prejudicados em suas atividades pela portaria, bloquearam a saída do porto de um transatlântico de turismo. Depois do incidente, o governo decidiu criar um grupo de trabalho, formado por membros do MMA e do Ministério da Aquicultura e da Pesca, que deverá fazer uma revisão na lista das espécies e no período estabelecido para o defeso (em que é proibido pescar a espécie).
No Brasil existem mais de um milhão de pessoas que dependem economicamente da atividade pesqueira, que a cada ano captura volumes maiores de pescado para abastecer o crescente mercado consumidor. O excesso de pesca, aliado à utilização de redes de trama fina que não deixam passar os indivíduos pequenos, fazem com os barcos atuem como verdadeiras dragas, carregando tudo que se encontra no fundo do mar.
Peixes pequenos ou espécies sem valor comercial são posteriormente descartados, quando estão mortos. Outro aspecto é que a pesca de fêmeas em período de reprodução (quando ocorre o defeso), reduz a possibilidade de procriação da espécie. Todos estes fatores, além dos já citados, poderão contribuir para a diminuição gradual do volume de pescado e eventual desaparecimento das espécies. Segundo o Instituto Chico Mendes (ICMBio) o Brasil tem oficialmente 19 espécies de peixes marinhos ameaçados de extinção. 
Somente através das atividades econômicas, utilizando os recursos naturais, é possível gerar riquezas. Todavia, a apropriação do recurso natural deve ser feita de tal maneira que possa ser realizada sempre, de uma maneira sustentável. Exaurir os recursos naturais fará com os utilizemos apenas por um curto período, à custa das gerações futuras e das espécies ainda desconhecidas.
(Imagens: fotografias de Friedrich Seidenstuecker)

Turismo predatório não muda

sábado, 7 de fevereiro de 2015
"Que lindo se figurássemos na assembléia mundial como povo capaz de uma ideia sua, uma arte sua, costumes e usanças que não recendam a figurinos importados."  -  Monteiro Lobato  -  Ideias de Jeca Tatu

Mais de 800 mil veículos desceram de São Paulo para o litoral neste final de 2014. Isto significa que aproximadamente 2,5 milhões de pessoas deixaram a capital, rumo às praias do litoral norte e sul do estado. Repetem-se as mesmas cenas que já conhecemos há décadas: congestionamentos nas estradas, cidades lotadas, pressão excessiva na infraestrutura urbana. Em média, a população da região litorânea chega a triplicar no período entre o Natal e o Ano Novo. As cidades, que em sua maioria já não têm uma boa estrutura de serviços públicos – segurança, saúde, coleta de lixo e limpeza urbana – sofrem ainda mais com o excesso de habitantes.
O problema é antigo e tem diversas causas. Uma delas é a falta de opções de lazer para a maior parte da população, associada à baixa renda. Sem possibilidades de aproveitar os momentos de folga durante o ano, já que a cidade apresenta poucas opções, o paulistano planeja seu descanso para o período de Ano Novo. Férias coletivas, recesso escolar, dinheiro do 13º salário, a glamourização da festa do Réveillon (antes era apenas o Ano Novo), o calor do verão; são fatores que mobilizam ainda mais os turistas de final de ano.
O fenômeno acontece em todo o litoral brasileiro, mas o maior volume de deslocamentos registra-se no estado de São Paulo. O efeito sobre as cidades, no entanto, é em todo país o mesmo: impacto nos ambientes urbano e natural. A orla marítima, os rios e as matas do entorno das cidades – localizadas em região de Mata Atlântica – são “explorados” pelos turistas: lixo de todo tipo na praia, retirada de espécimes da mata, pesca e poluição dos rios. Nas cidades, apesar de proibido por legislações municipais, trafegam carros com som alto, soltam-se fogos durante todo o dia e lixo é jogado por todas as ruas. Uma verdadeira catarse histérica, movida a álcool e agitação, toma conta de parte dos turistas. Parece que todos os dias de privação de lazer durante o ano precisam ser compensados freneticamente em alguns poucos dias.
No retorno do feriado as estradas voltam a ficar cheias; congestionamentos retêm os motoristas por horas – tudo apenas para percorrer um pouco mais de cem quilômetros. Para trás ficaram – além dos cheques sem fundos – os montes de lixo na cidade e nas praias, a depredação de bens públicos e os estoques vazios de supermercados, armazéns e padarias. Os comerciantes, em sua maioria, acham que foi um bom começo de período de férias. Alguns já planejam trocar o carro ou investir na ampliação do negócio. 



A cidade, no entanto, vai demorar alguns meses para se recuperar. A ausência de recursos aliada à falta de pessoal qualificado na administração, além de prefeitos incapazes para gerir suas cidades (para dizer o mínimo), fazem com que o turismo se torne predatório. No final lucra o comércio, que precisa se capitalizar para enfrentar um ano inteiro com movimento baixo – só interrompido por um ou outro feriado prolongado. Esta é, resumidamente, a situação do turismo em grande parte do país. A falta de poder aquisitivo da maior parte da população, a fraca infraestrutura e o alto preço dos serviços e produtos, fazem com que esta realidade se mantenha ao longo dos decênios. Muito provavelmente vai continuar assim nos próximos anos, dadas as poucas possibilidades de crescimento da economia, melhoria real do padrão de vida e ampliação da infraestrutura.
(Imagens: fotografias de Timothy O´Sullivan)