A evolução da questão ambiental

sábado, 29 de setembro de 2018
"Nosso nível ético anda tão baixo, que qualquer conversa política acaba em denúncia."   -   Millôr Fernandes  -  A Bíblia do Caos

Como jornalista e consultor ambiental venho acompanhado o desenvolvimento do setor da sustentabilidade nos últimos vinte e seis anos. Ao longo deste período pudemos constatar vários avanços, principalmente com relação às questões ambientais urbanas. Se, praticamente até os anos 1970 o tema do meio ambiente era completamente desconhecido do cidadão comum, foi a partir das décadas de 1980 e 1990 que o setor efetivamente tomou impulso com a criação de leis e agências de controle. Outro aspecto é que nesse período também surgiram as primeiras ONGs ligadas ao meio ambiente, e o tema passou a fazer parte da política partidária e da programação das redes de TV.     
A palavra “sustentabilidade” se tornou comum no nosso vocabulário diário a partir de 1987, quando a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da ONU, chefiada pela primeira ministra da Noruega Gro Harlem Brundtland, publicou um documento intitulado Nosso Futuro Comum, também conhecido como Relatório Brundtland. Entre outras coisas, o relatório indicou as diretrizes para o crescimento da economia mundial no futuro: o desenvolvimento sustentável. Este, foi definido pelo documento como sendo “o desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades”. Ou seja, as atuais gerações não podem impor à economia mundial um ritmo de crescimento que esgote os recursos naturais – solo, água, ar, florestas, mares –, tirando o direito das futuras gerações de disporem da mesma quantidade de recursos.
Para evitar a exaustão destes bens, a ONU criou diversos acordos internacionais para reduzir o impacto das atividades humanas sobre o meio ambiente. Tratado para eliminação dos gases destruidores da camada de ozônio; acordos para proteger a biodiversidade e os mares; para a redução das emissões de gases causadores do efeito estufa, regular o transporte de cargas perigosas; proibir a caça e pesca de certos animais, são muitos. Enfim, existem diversos pactos estabelecidos entre todos os países membros da ONU, com o compromisso de reduzir a exploração excessiva dos recursos do planeta.
Pelos noticiários, no entanto, fica evidente que apesar de todos os compromissos assumidos, são diferentes os graus de empenho dos países em reduzirem seus impactos ambientais. Enquanto grandes poluidores, como a China e a Índia, começam a fazer investimentos para reduzirem emissões, há outros países que se tornaram exemplo, como a Alemanha, que até 2020 deverá fechar todas as suas usinas nucleares. O maior consumidor de recursos, os Estados Unidos, apesar dos avanços em diversas áreas, está retrocedendo no controle de suas emissões atmosféricas, por orientação da atual administração.
O Brasil ainda tem um longo caminho a percorrer. Se, por um lado o setor de energias renováveis avança rapidamente com aportes de capital do setor privado, o saneamento, que em grande parte ainda depende de recursos públicos, progride lentamente. Para a maior parte dos governos a preservação dos recursos naturais ainda não é prioridade; por uma série de razões. Cria-se, assim, uma grande expectativa em relação aos novos administradores que assumirão o país em 2019. Enquanto isso, o fenômeno climático evolui, e fica evidente de que não é mais possível separar a gestão da economia da dos recursos naturais.
(Imagens: pinturas de Larry Rivers)

Notas rápidas (homenagem a G. C. Lichtenberg)

quarta-feira, 26 de setembro de 2018




Cultura no litoral


Em 15 de setembro participamos do evento “18º Pensando entre palavras e amigos”, realizado no Instituto Histórico e Geográfico de São Vicente, SP. O evento foi coordenado pelo produtor cultural Augusto Cesar Estevam da Silva e pela empresa Recriapalhando, contando com o apoio da Academia Vicentina de Letras.

Além dos visitantes locais, compareceram ao evento representantes de diversas outras cidades do litoral Sul. A apresentação reuniu artistas das diversas artes com apresentação de performances, bailados, leitura de poemas com acompanhamento musical, palestras, lançamentos de livros e apresentações de música regional. Para completar a tarde foram sorteados diversos livros, cedidos pelos escritores locais.

Durante o sarau também houve a apresentação do curta metragem “Pescadores de Palavras”, documentário sobre a poesia marginal e seus poetas na cidade de Santos, do final dos anos 1970. Um dos destaques do evento foi o lançamento do livro “A palavra na ribalta” do escritor, ator e teatrólogo Roberto Massoni.

Louvável iniciativa. Quanto mais academias de letras, atores, escritores, músicos, bailarinos e cineastas tiverem locais e oportunidades de se apresentarem, melhor para a sociedade. Em tempos nos quais os instrumentos culturais são tratados com descaso por seus responsáveis, é importante que se abra o maior número possível de espaços para que os artistas possam mostrar seu trabalho e suas obras.

O Brasil precisaria de um grande movimento em prol da cultura; da cultura nacional e também da cultura local; aquela que é criada numa região ou cidade. Artistas e público entusiasmado não faltam. Enquanto Estado e iniciativa privada apoiam quase que exclusivamente os “amigos do governo” ou aqueles que “vendem produtos”, a cultura criada e apresentada fora dos grandes circuitos ainda precisa de muito apoio. 

(publicado originalmente no blog "FILÓSOFOS NA PRAIA" 
- https://filosofosnapraia.blogspot.com/)

(Imagem: gravura representando G. C. Lichtenberg)



Monografia e Trabalho Científico - Análise comparativa

sábado, 22 de setembro de 2018
"Todas as tragédias que se possa imaginar reduzem-se a uma mesma e única tragédia: o transcorrer do tempo."   -   Simone Weil   -   Lições de Filosofia

(publicado originalmente no site Web Artigos)

Para começarmos nossa análise é preciso mencionar que tanto a monografia quanto o artigo científico são trabalhos monográficos, isto é, monografias; uma forma de apresentar uma pesquisa realizada cientificamente sobre um único tema específico. Inclui-se no âmbito do trabalho monográfico o TCC (trabalho de conclusão de curso) dos cursos de graduação; a monografia e o artigo técnico dos cursos de pós-graduação lato sensu; a dissertação das pós-graduações strictu sensu em mestrado; e a tese das pós-graduações strictu sensu em doutorado.    

Uma das principais diferenças apontadas entre a monografia e o trabalho científico é quanto à abrangência do tema. A principal característica do artigo científico, em comparação com a monografia, é a concisão, a forma sintética e objetiva de relatar sobre o tema escolhido. Não se trata, como muitos pensam, de uma forma mais simples ou superficial de abordar a matéria, ao contrário. O artigo científico deve explorar o assunto de uma forma clara, aprofundando os aspectos mais relevantes, proporcionando informação ampla e consistente sobre aquele limitado tema. 

O trabalho científico é focado na descrição e no estudo de um fato ou aspecto da realidade, sobre o qual faz um relato científico. Trata-se de um texto curto, que muitos autores definem como “um artigo científico”. Este trabalho geralmente não excede as 20 páginas, sendo usualmente publicado em revistas científicas. Trata-se, portanto, de um estudo elaborado de uma forma resumida, sobre algum tema científico. Costuma-se dividir os artigos científicos em três tipos:

a)    Os artigos de revisão bibliográfica, que se baseiam na análise de referências teóricas, na forma de fontes bibliográficas. Partindo de uma hipótese e fundamentando seus raciocínios em fontes bibliográficas, o artigo científico pode apontar ou elucidar novos aspectos de um determinado tema;
b)    Artigos originais, que além de se basearem em fontes teóricas (bibliografia) também se fundamentam em pesquisas práticas, realizadas pelo autor para a elaboração do artigo;
c)    Artigos de divulgação que comunicam a um determinado público algo que seja de interesse do autor do artigo.

A monografia é um trabalho de formato mais extenso do que o artigo científico, chegando a 60 páginas, consistindo em uma análise mais aprofundada sobre determinado assunto, sem, no entanto, deixar de ter um caráter científico. Quase sempre a monografia é elaborada com base em pesquisa bibliográfica; raramente em pesquisa original ou estudo experimental (pesquisa de campo). Em sua forma de apresentação, a monografia tem uma forma mais elaborada, apresentando elementos pré e pós textuais (tratados logo adiante neste texto), que não são usados na redação de um artigo científico.

Para Severino (2002, p. 129):


O termo monografia designa um tipo especial de trabalho científico. Considera-se monografia aquele trabalho que reduz sua abordagem a um único assunto, a um único problema, com um tratamento especificado.
Por isso, o uso deste termo para designar uma série de trabalhos escolares, ainda que resultantes de investigação científica testemunha a incorreta generalização do conceito.
Os trabalhos científicos são monográficos na medida em que satisfazerem à exigência da especificação, ou seja, na razão direta de um tratamento estruturado de um único tema, devidamente especificado e limitado.


Definição conceitual dos elementos da estrutura

Tanto a monografia quanto o trabalho científico – assim como todo texto argumentativo que se propõe a demonstrar algo – têm uma estrutura semelhante: introdução, desenvolvimento e conclusão. Esta estrutura racional de argumentação (cujas origens estão na lógica aristotélica e na geometria euclidiana, atualizadas pelo pensamento científico no século XVI-XVII) é basicamente o modus operandi da pesquisa científica. A partir do Renascimento muitas obras de filosofia, como, por exemplo, a Ética de Spinoza, também adotaram este formato.

A estrutura do trabalho monográfico segue de maneira semelhante o próprio desenrolar da pesquisa científica:
a) Em uma primeira fase, algum assunto chama a atenção do pesquisador (estudante ou cientista). Em seguida, o pesquisador começa a coletar dados (bibliografia) sobre o tema, para formar sua hipótese (esta, em um trabalho monográfico toma a forma da introdução ou justificativa);
b) Os dados coletados podem estar disponíveis em teorias científicas já provadas, em livros ou autores consagrados, que podem servir de base para elaborar novas hipóteses. Colhido o material (fontes bibliográficas, fatos pesquisados, etc.) este é usado para se tentar provar determinada hipótese (o desenvolvimento da monografia ou artigo científico);
c) A fase final é confrontar a hipótese com os dados empíricos ou outros dados bibliográficos, para então se formar uma teoria (conclusão) sobre o tema pesquisado.

Portanto, guardadas as proporções, uma monografia ou artigo técnico são “singelas tentativas” de se provar cientificamente – usando uma metodologia científica – algo sobre um assunto que interessa ao autor. Ou nesse tema chamar a atenção para aspectos, correlações ou possibilidades novas ou ainda pouco conhecidas.

O trabalho de expor estas “singelas tentativas” para o público tem que ser realizado de uma forma sistemática, seguindo uma metodologia clara e, também aqui, dentro de um raciocínio lógico. Ao longo dos anos, atendendo também a critérios de praticidade, criaram-se regras para expor estes trabalhos na forma de trabalhos monográficos, que devem ser elaborados com base em regras estabelecidas (no caso do Brasil) pela Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT).

No caso elementos pré-textuais, fala-se basicamente na forma gráfica de apresentação de uma monografia – no que se refere à parte que antecede o texto em si – de modo a facilitar sua avaliação, identificar o autor e o objetivo do trabalho e apresentar um resumo deste.

Já a introdução, a justificativa e os objetivos fazem parte do cerne do trabalho (os elementos textuais), com os quais se pretende: a) situar a proposta do texto, o “contexto do texto” (introdução); b) fundamentar a importância do tema escolhido (justificativa); e c) estabelecer aquilo que se quer demonstrar ou apontar com a pesquisa.

A revisão da literatura é a escolha do material bibliográfico para elaborar a argumentação da pesquisa. Tratam-se das informações bibliográficas disponíveis, sobre as quais se fundamentará o desenvolvimento do texto. Quanto mais ampla e específica, tanto melhor poderá ser a argumentação.

O cronograma de uma monografia ou artigo técnico refere-se ao prazo estabelecido para: a) Elaborar a hipótese e fazer uma primeira avaliação da bibliografia disponível;
b) Aprofundar a pesquisa bibliográfica (revisão da literatura);
c) Elaborar o texto;
d) Revisar o texto;
e) Preparar a redação final do trabalho, de acordo com as normas ABNT.

Quanto às referências, estas são inicialmente poucas. Em uma primeira fase de preparação de um trabalho científico, o autor tem apenas “uma ideia na cabeça e alguns poucos livros na mão”. No desenrolar da pesquisa (revisão da literatura) a lista de referências necessariamente vai crescendo. Ao longo da fase de elaboração do trabalho, principalmente na fase do desenvolvimento, a lista aumenta mais ainda. É elaborando a conclusão que o autor – às vezes vendo necessidade de fundamentar melhor um objetivo a ser provado – ainda incorpora outras fontes bibliográficas, fechando assim a lista de referências.  
 

Fontes consultadas:

DOS SANTOS, LUIS Fernando Amaral. Apostila Metodologia da Pesquisa Científica II. Faculdade Metodista de Itapeva, 2006. Disponível em <www.metodista.br/.../apostila_metologia_ii.doc>. Acesso em 18/03/2013.  
METRING, Roberte. Artigo ou monografia: qual a diferença? Site Roberte Metring. Disponível em: <http://blog.psicologoroberte.com.br/2009/07/artigo-ou-monografia-qual-diferenca.html>. Acesso em 18/03/2013. 
MORAIS, Vanessa. Artigo Científico. Site Recanto das Letras. Disponível em: <http://www.recantodasletras.com.br/artigos/2077786>. Acesso em 18/03/2013.
SEVERINO, Antonio Joaquim. Metodologia do Trabalho Científico. 22 ed. São Paulo: Cortez Editora, 2002.
WIKIPEDIA. Monografia. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Monografia>. Acesso em 18/03/2013.
(Imagens: pinturas de Mikhail Anikeev) 

Notas rápidas (homenagem a G. C. LIchtenberg)

quarta-feira, 19 de setembro de 2018


Substrato étnico e cultural 



Os americanos, por exemplo, guardam algumas características peculiares. À medida que o país crescia, tornando-se a “terra das oportunidades” onde qualquer um poderia prosperar, formou-se o mito da nação empreendedora, que não recua perante os desafios. A participação americana nas duas Grandes Guerras, aliada ao seu pujante capitalismo e à imagem construída pelos filmes de Hollywood, ajudou a consolidar perante o mundo esta representação do modo de ser estadunidense. Objetividade e uma certa agressividade, são comuns na linguagem diária e nos filmes americanos.

Outros povos, como os ingleses, já guardam outras singularidades. O domínio de grande parte do mundo através da administração de um vasto império, contribuiu para a formação de uma mentalidade prática, voltada a situações objetivas, pouco preocupada com abstrações de qualquer tipo – seja na cultura ou política. Uma das razões de a Inglaterra ser o berço de filosofias como o empirismo e o utilitarismo e lugar de início do capitalismo industrial. Até por isso, a linguagem britânica pode fazer uso de expressões bastante irônicas, seja em seu sentido denotativo ou conotativo.

Assim outras culturas têm as suas próprias idiossincrasias. Franceses, alemães, japoneses... Todas as sociedades têm suas maneiras de se inserirem no mundo e se organizarem de modo a poderem sobreviver, guardando certas particularidades. Estas alteram-se ao longo da história de cada povo, mas conservam certos atributos que permanecem como traços característicos de determinada cultura ou nacionalidade.

A sociedade brasileira, como outra qualquer, também guarda as suas peculiaridades. Mesmo sendo uma cultura relativamente jovem, em cuja base de formação estão influências culturais heterogêneas, como a cultura portuguesa – que por si só já é uma amálgama de culturas que se sucederam na história da península ibérica. Além disso, temos influências das diversas culturas indígenas (falava-se cerca de 500 línguas diferentes quando o Brasil foi descoberto) e os diversos povos africanos que para cá foram trazidos. 

Basta lembrar que a África congrega diversas etnias e culturas, tão diferentes em costumes, línguas e tradições históricas como os países da Europa, por exemplo. A isto acrescente-se a contribuições dos imigrantes – alemães, russos, sírio-libaneses, árabes, japoneses, coreanos, chineses, poloneses, entre outros, que para cá vieram entre o século XIX e século XX.

Será possível que a miscigenação destas culturas e etnias, religiões e visões de mundo, possa, ao longo da história, formar uma ou várias novas culturas? Este é o argumento de vários sociólogos e antropólogos, como Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Darcy Ribeiro. No entanto, é preciso considerar o quanto de cada cultura original, daquilo que cada povo trouxe como contribuição ao se estabelecer aqui no Brasil, foi perdido no processo de aculturação. 

Além disso é preciso levar em conta os aspectos de desestruturação de grupos sociais através de processos de extermínio, migração interna, separação dos indivíduos de seus grupos sociais, etc. Considerar o quanto a sobreposição de culturas – por exemplo a conversão a uma nova religião – pode fazer com que práticas culturais sejam esquecidas.
Quais são, ao final, os fatores que fazem com que certos traços culturais sejam mantidos em cada cultura ou etnia, enquanto que outros desaparecem, junto com os mais velhos ou com as organizações comunitárias iniciais?

(Imagem: gravura representando G. C. Lichtenberg) 




Percepção, metáfora e alegoria

sábado, 15 de setembro de 2018
"Sempre chamo razão essa aparência de discurso que cada um forja em si."   -   Michel de Montaigne   -   Os Ensaios


(Texto publicado originalmente no livro "Trocando em palavras", antologia de textos da Academia Peruibense de Letras, Volume VIII, 2017)


Há algumas décadas a ciência vem aprofundando o conhecimento sobre nossa relação com o mundo, ou seja, a maneira como percebemos a realidade exterior ao nosso corpo. Não nos alongando em especificidades científicas - mesmo porque não temos tal conhecimento - basta mencionar que aquilo que vemos é em grande parte uma elaboração do nosso cérebro. A partir de um número limitado de informações coletadas pelos sentidos, nosso encéfalo compõe aquilo que temos a impressão de estarmos vendo. O que nos parece estarmos ouvindo também é a interpretação que nosso cérebro faz das vibrações no ar, que vindas do mundo exterior atingem nossos tímpanos.
   
Cheiros e gostos, já ensinavam os antigos filósofos céticos da Grécia, variam de pessoa para pessoa e até de acordo com seu estado de saúde; o mesmo vale para as sensações de tato. Assim, algumas pessoas são mais resistentes ao frio e ao calor que outras. A história de Roma eternizou a figura de Caio Múcio Cévola, cidadão da nascente república, a qual estava em guerra com o povo etrusco. Sem manifestar qualquer reação à dor, o herói romano manteve sua mão sobre um braseiro, enquanto era interrogado pelo rei inimigo Porsena. Consta Cévola ter dito: "Veja, veja que coisa irrelevante é o corpo para os que não aspiram mais do que a glória!"

O que dizer da relatividade da nossa percepção do tempo? Santo Agostinho, filósofo cristão do século IV, dizia em relação ao tempo que "Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei." É nessa dimensão temporal que vivemos, que a muitos parece ser preocupação apenas de especialistas, como historiadores, geólogos ou físicos. Como avaliar a rocha, recentemente descoberta na Austrália, em cuja superfície se pôde constatar a ação de microrganismos ocorrida há dois bilhões de anos? E como imaginar o femtosegundo, medida de tempo criada pelos físicos de partículas, cuja duração é de uma quaquilionésima (1x10-15) parte de um segundo? Cabem tantos femtosegundos em um segundo, quanto segundos em 100 milhões de anos.

Nosso cérebro é, como escreveu o neurocientista David Eagleman, "Encerrado em absoluta escuridão na caverna do crânio. Ele não vê nada. Só sabe destes pequenos sinais e nada mais. E, no entanto, você percebe o mundo em todos os tons de luminosidade e cor." De acordo com a moderna neurologia e psicologia, nosso cérebro reconstitui as sensações que recebemos através dos sentidos, formando impressões, às quais reagimos de maneira consciente e inconsciente. Grande parte da atividade cerebral, aliás, não ocorre no nível da consciência e por isso Freud disse que "o eu não é senhor em sua própria casa".
Com diversas gradações e algumas diferenças, é desta maneira que, com maior ou menor grau de complexidade, todos os seres vivos interagem (e interagiram) com seu ambiente. Considerando a multiplicidade de espécies atualmente existentes na Terra - cerca de nove milhões -, é possível afirmar que apesar de dispor de um sistema sensitivo (aparentemente) limitado, a vida tem sido bem sucedida em sobreviver sobre o planeta. E isto ocorreu, entre outras razões, porque a percepção do ambiente, da bactéria ao Homo sapiens, é movida pela intencionalidade, consciente ou não.

Munido de um cérebro volumoso e de conexões neuronais em crescente aumento, nossa espécie pôde, há aproximadamente 38 mil anos, dar início a uma nova forma de sobreviver e viver no mundo; através da cultura. Apesar de não termos sido a única espécie Homo a desenvolver atividade mental superior - conhecemos o caso dos Neanderthais -, somos, todavia, a única que sobreviveu para contar a história.

Ao longo dos últimos dez mil anos a cultura humana se ampliou através de invenções como a da agricultura, da cerâmica, da fundição dos metais, das cidades, do comércio, da tecnologia, da indústria, e das grandes infraestruturas.
Junto e em função do saber material, nossa espécie também desenvolveu um conhecimento espiritual, formado pelos sistema de ideias de interpretação e explicação do mundo; sejam filosóficos, políticos, religiosos ou científicos, todos intrinsecamente ligados às invenções materiais.

Nos últimos cem anos, a acumulação de conhecimento científico e filosófico, fez com que fossem colocadas em cheque as explicações científicas e os discursos religiosos sobre a realidade e seu funcionamento. Foi forçoso concluir, que mesmo as mais comprovadas teorias, não representavam mais a explicação incontestável sobre o universo externo e interno ao ser humano. Novas hipóteses sobre o macro e microuniverso; revolucionárias descobertas acerca da mente do homem, da sociedade e dos componentes básicos da vida, derrubam toda as certezas, principalmente no campo das ideologias.

Todas estas novas ideias não conduzem a um niilismo sem perspectivas, em absoluto. Mas no moderno pensamento é cada vez mais corrente a ideia de que os nossos discursos sobre a vida e o mundo - ideologias políticas, religiões, culturas - podem ser interpretados como alegorias sobre uma realidade complexa e que não abarcamos em sua totalidade. A própria linguagem, segundo o filósofo Nietzsche, pode ser considerada uma metáfora da realidade.
A teoria científica também é uma explicação precária de um fenômeno natural, um paradigma científico, que será substituído por outro mais adequado, como escreve o filósofo da ciência Thomas Kuhn.

Alguns assim dizem que a vida humana pode ser comparada a uma alegoria, passando pela sátira, pelo apólogo ou até a fábula. Sobre esta comparação, encerramos nosso texto com a afirmação do filósofo francês, La Mothe Le Vayer: "Toda a nossa vida é, na verdade, uma fábula; nosso conhecimento uma asneira; nossas certezas, uma ilusão; resumindo, todo este mundo é apenas uma farsa, uma perpétua comédia."

(Imagens: pinturas de James Rosenquist)

Notas rápidas (homenagem a G. C. Lichtenberg)

quarta-feira, 12 de setembro de 2018



Incontável


Cada onda no mar é diferente da outra. À primeira vista muitas podem parecer iguais, dependendo da direção e velocidade do vento, da corrente marinha, das condições climáticas... Mas nenhuma onda é igual à outra em toda a sua extensão. É certo que – se levarmos em conta o exato formato de uma onda em todos os seus detalhes – desde o surgimento da Terra e dos oceanos até hoje, não houve nenhuma onda igual à outra, em todo o planeta.

As moléculas dos gases estão em constante movimento e aumentam ou diminuem seu movimento cinético com o crescimento ou a redução da temperatura desse gás. A imensa quantidade de moléculas que existem na atmosfera terrestre, nos permite afirmar que nunca (considerando a duração da Terra) estas moléculas assumirão a mesma disposição de um instante passado ou futuro. Ou seja, no decurso de um tempo finito, o quadro geral da posição de cada molécula em relação às outras nunca se repetirá.

O cérebro humano possui cerca de 100 bilhões de células. Cada uma dessas células pode fazer 10 mil conexões. Sendo assim, o número de conexões possíveis ao cérebro humano é de cerca de 1.000 trilhões, ou seja, 1 quatrilhão (1.000.000.000.000.000) de ligações. (Existem mais conexões possíveis em nossos cérebros do que a soma do número de todas as folhas de todas as árvores da Amazônia). Com essa imensa quantidade de contatos possíveis entre as células do cérebro, é quase impossível que qualquer ser humano – e todas as outras espécies que possuem cérebro ou somente alguns neurônios – sejam exatamente iguais ao longo do tempo de sua existência. Ou seja, é pouco provável que hoje eu seja o que fui na semana passada, e que no mês que vem permaneça igual ao que fui (ou serei) no domingo que vem.

(Imagem: gravura representando G. C. Lichtenberg)

Mínimas memórias

sábado, 8 de setembro de 2018
"Entre os desejos e as realizações destes transcorre toda a vida humana."   -   Arthur Schopenhauer   -   O mundo como vontade e representação


(Texto publicado originalmente no livro "Vozes Impressas", antologia de textos da Academia Peruibense de Letras - Volume VII, 2016)


"Há assim uma memória involuntária que é total e simultânea. Para recuperar o que ela dá, basta ter passado, sentido a vida; basta ter, como dizia Machado, 'padecido no tempo.'"
Pedro Nava, Baú de Ossos

"Quanto a mim não conheço prazer superior ao de encontrar-me ou reencontrar-me no meio de onde provêm a minha essência animal, no convívio do mar, viagem no mar, banho de mar, vista de mar. "
Gilberto Amado, História de minha infância



O começo

Conheço Peruíbe desde há muito tempo, de quando ainda era subdistrito de Itanhaém e uma aprazível e pacata aldeia de pescadores, só acessível percorrendo-se a praia, ou em demorada viagem de trem. Trouxeram-me para cá meu avós maternos,  que em 1958 construíram uma das primeiras casas de veraneio na rua dos Pescadores. A cidade era ainda encantadoramente pequena. Limitava-se a alguns quarteirões em torno da praça da Matriz e um reduzido número de casas do outro lado da estação do trem da Sorocabana.
A casa foi para mim o meu segundo lar, onde passei muitos períodos de férias. Nessa morada com terraços abertos e amplo terreno, tomado por velhos pés de abacate, pitangueiras, laranjeiras, limoeiros, goiabeiras e até um cajueiro, vivi parte da infância e da juventude. A residência e o quintal repleto de árvores, pássaros; as ruas de areia e os arredores da cidade; o mar e o rio; todos foram parte de meus primeiros contatos com a natureza e com o mundo.  
A poetisa Adélia Prado escreveu uma vez que "tudo que a memória amou já ficou eterno". Para mim, no entanto,  nossas memórias e impressões, aquilo que nos forma e nos torna únicos, morre conosco. Assim, antes que estas poucas recordações desapareçam junto comigo, tento registrar algo daquele período inaugural. Parte do que recordo destes tempos vividos em Peruíbe; lembranças que me acompanham até hoje, mais de meio século depois. Os episódios que relato são mínimos e desimportantes. Pequenos fatos sobre a cidade, que a maioria desconhece. Minhas lembranças. Mas seu eu não registrá-las, quem o fará por mim?  

    


A Padre Anchieta, a curva do 77 e os postes do telégrafo

Esta longa avenida que corta a cidade, fazia a ligação com a estrada construída entre Itanhaém e Peruíbe, em meados dos anos 1960. A estrada demorou para ser concluída, o que fez com que por muitos anos também a Padre Anchieta permanecesse apenas coberta de cascalho, sem asfaltamento, inclusive em seu curso dentro da cidade. Todo tráfego que vinha de Itanhaém e se dirigia para a rodovia Padre Manoel da Nóbrega - à época chamada Estrada da Banana -, passava necessariamente por dentro de Peruíbe, através da Padre Anchieta. Dali os veículos seguiam pela São João e 24 de dezembro até a rua da Estação, que já ficava no fim da cidade - naquela época existiam poucas casas no recém inaugurado Jardim Veneza.
A rodovia entre Peruíbe e Itanhaém percorria um trecho praticamente desabitado à época, cortando a mata que ainda cobria grande parte do região. Quando criança, em noites sem luar, dirigindo meu pai desligava os faróis do carro. Ficávamos alguns minutos fascinados, admirando o céu estrelado, brilhando por entre a floresta escura.
A avenida Padre Anchieta terminava onde hoje é a rotatória e começa a avenida João Abel, no bairro dos Prados. Aquele ponto foi por muito tempo chamado de "curva do 77", já que  segundo o antigo Departamento de Estradas de Rodagem, percorriam-se 77 quilômetros dali até Santos. Ainda no início dos anos 1970, havia ali apenas uma pequena placa, indicando a direção a ser seguida por quem saía de Peruíbe. O desvio era de 90 graus, sem iluminação e cercado por um alto capinzal. Muitos veículos, embalados, não conseguiam fazer a curva e capotavam.
Mas, dos males o menor. Antes da abertura da estrada entre as duas cidades, os automóveis tinham que fazer o percurso pela praia. Para quem fosse fazer a travessia, era necessária a consulta da tábua das marés, nos jornais. Os carros precisavam passar rente ao mar, evitando os barrancos dos riachos. No Piaçaguera, em frente à ilhota onde hoje é o bairro do Gaivota, o motorista tinha que utilizar uma pequena ponte para atravessar o córrego sempre caudaloso.
Na outra ponta, em direção à cidade e ao rio Negro, a Padre Anchieta era um caminho de areia, que terminava quase na beira do rio, no mesmo local onde hoje fica a sede da Polícia Florestal. O caminho era ladeado por poucas casas, que iam rareando à medida que este se afastava do centro. Já perto do rio, a areia da rua era mais grossa, de cor amarelada, diferente de outros pontos da cidade (nunca soube por que razão). À beira do caminho, ainda estavam fincados antigos postes enferrujados, restos do telégrafo do século XIX. A sequência das colunas degradadas se estendia pelo outro lado do rio Negro, adentrava a mata do morro do Itatins, em direção à Prainha e ao Guaraú, para dali seguir para o sul.


A praçinha, a igreja matriz e os alemães

A praça da igreja matriz, a praça monsenhor Lino dos Passos, foi remodelada por três ou quatro vezes ao longo dos últimos 50 anos. Nunca fizeram dela uma praça verdadeira, com árvores frondosas para fazer sombra. Apesar da grande quantidade de pés de joão bolão que existiam na região central de Peruíbe no passado, na praça nunca foi plantada uma única árvore desta espécie, típica da nossa região. Hoje o logradouro lembra um teatro romano; tem pouca área verde e está cercado por estátuas religiosas.
Até o início dos anos 1970, nas noites quentes de verão, quando a praça se transformava em local de reunião e encontro, surgiam frequentemente gigantescas baratas d'água, causando alvoroço. Com o passar dos anos, no entanto, as construções avançaram sobre as áreas verdes e os córregos limpos, a céu aberto, foram cimentados. As baratas d'água, ressentidas, não deram mais as caras na pracinha.
Li em algum lugar que o pintor itanhaense Emygdio Emiliano de Souza pintou um quadro retratando a praça matriz de Peruíbe. A obra, que data de 1893, é de interesse histórico mas é pouco conhecida e vista. Uma pena para nossa cidade, que tão poucas imagens tem de seu passado.
Pelo menos até o final dos anos 1960, a igreja matriz não era muito maior do que uma capela. Durante a década seguinte o templo foi gradualmente ampliado, chegando às dimensões que tem hoje. Ao lado da igreja, onde agora se encontra o centro de compras havia um terreno vazio, em parte um areão, que na temporada era ocupado pelos parques de diversão itinerantes. No mesmo lugar, no início dos anos 1960, havia uma barraca de sapê, onde os índios da reserva vendiam seu artesanato.    
Durante a infância conheci muitos imigrantes alemães que moravam em Peruíbe, amigos dos meus pais. Na rua Tucuruví vivia o Sr. Senz, carpinteiro aposentado, morador da cidade desde os anos 1950. Mais à frente, seguindo a rua em direção à Almirante Barroso, perto da velha mangueira (que está lá até hoje), morava o Sr. Otto, que tinha sido dono de uma pequena fábrica em São Paulo. O casal Wagner, também velhos moradores, ficavam na atual rua Ministro Genésio de Moura (perto da antiga delegacia, instalada no prédio onde hoje é a biblioteca municipal). Na rua Santos Dumont, quase esquina com a José Veneza, estava o Otto cozinheiro, antigo tripulante do navio alemão Windhuck, aprisionado pelo Brasil durante a 2ª Guerra. Lembro vagamente do casal Heide, que perto da praia construiu uma casa moderna para a época, quando tudo era um imenso areal e nem rua havia (hoje a rua Erasmo Pinheiro Ribas). No início da Estrada do Guaraú, esquina com a hoje rua Dalmar da Costa, ficava o bar do casal Müller, alemães que moravam em Peruíbe desde os anos 1950. O local era parada obrigatória para quem voltava da Prainha ou Guaraú em dias de muito calor.
O "Opa" Weiss (Opa, avô em alemão) foi um dos membros mais conhecidos da colônia alemã. Aposentado e pescador amador, Opa Weiss foi um dos primeiros paulistanos a ter um barco com motor de popa em Peruíbe. Nos últimos anos de vida dedicou-se à pintura, copiando quadros de pintores famosos. Antes de morrer, pintou e doou à igreja a Via Crucis, que ainda hoje pode ser vista no templo.
Entre os anos de 1950 a 1980 havia em Peruíbe uma pequena colônia de alemães e descendentes, que se conhecia e frequentava. Destes, ainda guardo na lembrança os nomes do "seu" Augusto e "dona" Ivone, Sr. Paulo Becker; as famílias Stender, Nusch, von Zengen, Kohn, Motz, Kunde, Weiss e Rösner. Quase todos já falecidos, viveram e foram felizes durante muitos anos em Peruíbe.


Olha o trem chegando!

Quem não viajou para Peruíbe pelos trens da Sorocabana e da FEPASA não sabe o que é bom. Bom, mas demorado. Viajava-se seis a sete horas da estação do Socorro, na Zona Sul de São Paulo, até a estação de Peruíbe. Antes de descer a serra, a composição percorria parte dos bairros da região sul de São Paulo, que à época eram pouco povoados. Às vezes entrava no trem uma família de indígenas; subiam em uma estação e desciam em outra, no meio da neblina da serra.
O trem fazia um ruído característico, cadenciado: "Tactac-tactac! Tactac-tactac! E isso intercalado por um zumbido, cuja intensidade aumentava e diminuía regularmente - suponho que fosse o atrito das rodas nos trilhos, não sei. As paradas nas estações eram constantes. Antes de retomar a viagem, o fiscal verificava se todos haviam embarcado, apitava, para logo depois o maquinista tocar a buzina e colocar o trem em marcha. E lá íamos nós, até a próxima estação, numa velocidade média de 40 a 50 quilômetros por hora.
Viajar de trem era uma festa, principalmente para as crianças e os jovens. Na volta para São Paulo, no final das férias, os passageiros chegavam à estação a pé, alguns de carro e muitos nas charretes, que há 50 ou 60 anos faziam o trajeto entre o centro e a estação. Uma multidão ocupava os vagões. Durante a viagem, a composição passava por muitas estações até que chegasse em Samaritá, em São Vicente. Lá engatava-se uma locomotiva mais forte, que puxava o pesado comboio de passageiros serra acima.
Os corredores ficavam apinhados de malas, bolsas, sacolas, pacotes, caixas e gente, muita gente! Conversando, gritando, cantando, olhando pensativos pela janela. Além da bagagem, trazíamos na memória os dias de sol na praia, as pescarias, as caminhadas pelo morro e pelas ruas de areia, o descanso na rede, o céu estrelado, o canto dos pássaros, o cricrilar dos grilos, as fortes trovoadas de madrugada...

(Imagens: pinturas de Wayne Thiebaud)

Pirro e a filosofia prática

sábado, 1 de setembro de 2018
"A realidade é difícil de conhecer e a maioria está fadada a viver para sempre no domínio das sombras."   -   Charles Landesman   - Ceticismo

(Texto publicado originalmente na no livro "Vozes Impressas", antologia de textos literários da Academia Peruibense de Letras - Volume VII, 2016) 

A filosofia muitas vezes é vista como assunto de difícil entendimento, que pouco tem a ver com a vida concreta. Quando a maneira de pensar de uma pessoas nos parece complicada ou distante da realidade, dizemos que "está filosofando". Dedicar-se ao estudo e à prática da filosofia é, para muitos, uma atividade que não traz resultado prático, já que, como se diz, "filósofos vivem nas nuvens" e a ocupação "não enche a barriga". Por trás deste desdém com que se encara o pensamento teórico em geral, está também uma reação à maneira como a filosofia frequentemente tem sido apresentada por aqueles que a praticam. 

Desde seu nascimento na Antiguidade grega, a filosofia era ensinada e praticada em grupos relativamente fechados. Pitágoras e seus discípulos formavam uma seita filosófica, compartilhando ensinamentos secretos. Platão, na sua Academia, palestrava para a grande massa de alunos e reservava outros conhecimentos para um pequeno grupo de discípulos. No Liceu, Aristóteles tinha práticas semelhantes. Na Idade Média, a filosofia foi usada para fundamentar a teologia e os dogmas da fé católica. Por isso, todos os que se dedicavam à sua prática, tinham que ser aprovados pelas universidades e referendados por seus pares, atestando seus conhecimentos e, além de tudo, sua obediência aos ensinamentos da Igreja. Cultivados principalmente nos círculos acadêmicos, os estudos filosóficos desenvolveram um linguajar e um corpo de ideias próprio ao longo da história. Nos últimos cinco séculos o pensamento filosófico influenciou as artes e as ciências, mas seus conceitos mais abstratos permanecem longe da vida diária dos não filósofos. 

Na longa e rica história do pensamento ocidental, também encontramos filósofos que não se utilizaram de conceitos abstratos para desenvolver sua filosofia. Voltados apenas para o que podemos apreender pelos sentidos, ignoraram conceitos filosóficos que não passassem pelo crivo das sensações. Desenvolvidas na antiga Grécia, as ideias destes pensadores permanecem mais atuais do que nunca. 

O filósofo Pirro nasceu em aproximadamente 360 A.C., na cidade Élis, situada na parte ocidental da península do Peloponeso. Criador do ceticismo, também conhecido como pirronismo, as informações sobre sua vida são esparsas. Começou atuando como pintor, tendo decorado as paredes do ginásio de Élis, segundo o historiador Diógenes Laércio (225 - 300). Entrou em contato com a filosofia através das obras de Demócrito e teve aulas com o filósofo Bríson, tornando-se mais tarde discípulo de Anaxarco de Abdera. Com este participou da campanha de Alexandre, o Grande, para a Índia, em 326 A.C., onde travou contato com a cultura indiana. Durante sua permanência na Índia, Pirro conheceu os filósofos gimnosofistas, os filósofos nus, como eram conhecidos entre os gregos. Este encontro ocorreu na cidade histórica de Taxila, no atual Paquistão, à época importante centro de estudos do hinduísmo, budismo e do jainismo. O contato com a filosofia indiana influenciou seu pensamento posterior. De volta à Grécia, Pirro ensinou sua filosofia, mas nada deixou escrito. Suas ideias chegaram até nós através dos escritos de seu discípulo Tímon de Flio (320 - 230 A.C.) e do historiador Diógenes Laércio. O maior divulgador do pensamento pirrônico foi o filósofo cético Sexto Empírico (160 - 210). 

Pirro afirma que somos constantemente enganados por nossas sensações. Cansaço, doença e o temperamento, por exemplo, influem na maneira como vemos as coisas. O que para a pessoa saudável é doce, para o doente pode ser azedo; a maneira como apreendemos o mundo é variável e não existe um ponto de vista único. O conhecimento humano é falho e nunca poderá chegar à certeza. O mesmo se aplica a conceitos tidos como absolutos: o Belo, o Bem, a Verdade, a Beleza; valores que mudam de uma época para outra e de um povo para o outro. Segundo Diógenes Laércio, Pirro teria dito que: "nada é belo ou ignóbil, justo ou injusto, nada é realmente como parece. Os seres humanos fazem tudo por convenção ou hábito e cada coisa é indeterminada." O que temos então é a acatalepsia, ou seja, a incompreensão; a impossibilidade de compreender ou conceber a verdade sobre as coisas. Esta também não existe e se existe nunca poderá ser encontrada. Portanto, para evitar o conflito interno e externo, tentando aceitar e combater opiniões, é mais acertado manter uma atitude de suspensão do julgamento; nenhuma afirmação é melhor que outra. Limitamo-nos à aparência dos fatos, já que a realidade absoluta é impossível. Assim, segundo Pirro, pode-se escapar das perplexidades da vida e atingir a imperturbabilidade da mente, a ataraxia. 

Em sua vida Pirro, segundo relatos, viveu profundamente sua filosofia. Residindo em Élis, Pirro levava vida simples, sem apego a posses ou riquezas. Nada preocupando com papéis sociais, executava tarefas reservadas aos serviçais, como a limpeza da casa. Lavava os porcos que criava e carregava galinhas e outros animais para vender no mercado. Não se dedicava aos debates filosóficos e dava pouco valor aos que tentavam explicar o universo e prevalecer em discussões acadêmicas. Submetido a uma dolorosa intervenção cirúrgica, enfrentou a dor com coragem e serenidade. 

Pirro foi admirado e apreciado em seu tempo. De Atenas recebeu o título de cidadão ateniense e em sua cidade foi feito sumo sacerdote. Em sua honra, todos os filósofos de Élis foram isentados do pagamento de impostos. No final de sua vida, a exemplo de seus antigos mestres da Índia, viveu um vida retirada, vindo a falecer aos 90 anos. Segundo seu discípulo Timon, manteve-se fiel às aparências, crenças, às leis e aos costumes, sabendo que estes não têm validade absoluta. 

O ceticismo surgiu em um período de desestruturação social e econômica do mundo grego. As cidades, lideradas por Atenas e Esparta, haviam perdido sua autonomia, tendo sido incorporadas ao império de Alexandre Magno. A democracia e a cultura grega estavam em decadência. Os filósofos, influenciados pela insegurança generalizada e a derrocada dos sistemas de pensamento tradicionais, voltaram-se para questões práticas, relativas ao ser humano concreto; longe dos improváveis sistemas teóricos políticos e metafísicos. 

O pensamento cético iniciado por Pirro foi fundamental para a formação da mentalidade moderna. Quase desaparecido durante a Idade Média, o ceticismo voltou a ser largamente estudado a partir do Renascimento, tendo contribuído para a formação de um pensamento crítico na filosofia moderna e o desenvolvimento da ciência. 

Por outro lado, o pirronismo nos ajuda a compreender que o critério básico para conhecermos o mundo são nossos sentidos e suas extensões - microscópios, telescópios, aceleradores de partículas, sondas, entre outros. Formamos assim um quadro da realidade, sempre mutável, que chamamos ciência.
Mas esta também não é a imagem exata do universo, já que o que vemos, pensamos e sentimos é apenas o que pode ser observado sob um ponto de vista antropomórfico. Se há outros pontos de vista ou também "o ponto de vista absoluto", permanecerá eterna conjectura.
(Imagens: pinturas de Jasper Johns)