Daqui a cinco ou dez anos

sábado, 26 de outubro de 2019
"A melhor forma de expulsar o diabo, se ele não se render aos textos das Escrituras, é zombar dele e ridicularizá-lo, pois ele não suporta o desdém."   -   Martinho Lutero   -   citado por C. S. Lewis em Cartas de um diabo a seu aprendiz

Como estaremos daqui a cinco ou dez anos? A pergunta vem sendo feita por diversas pessoas preocupadas com o futuro do país e, principalmente, com seu próprio futuro. Jornalistas, empresários, políticos, intelectuais, pessoas comuns e jovens; por diversas razões e baseados em premissas diversas, todos imaginam o futuro de certa maneira – ou não imaginam nada.

Como estarão as atividades econômicas do país daqui a cinco ou dez anos? A economia conseguirá se recuperar? A indústria se modernizará e automatizará em ritmo crescente? E os postos de trabalho que serão abolidos em toda a economia com a robotização e a automatização?

A nova Previdência, votada pelo Congresso em outubro de 2019, como será recebida pelos trabalhadores? Tendo que trabalhar mais, como farão para manterem seus empregos depois dos 45 ou 50 anos? Como se atualizarão profissionalmente, tendo em vista a constante mudança de tecnologias de um lado, e de outro a quase total falta de apoio na capacitação profissional por parte de empresários e Estado?

O meio ambiente estará mais limpo daqui a cinco ou dez anos? Até lá, com certeza uma parte considerável da população ainda não terá acesso a água tratada – hoje ainda são 30 milhões. O esgoto sanitário igualmente continuará sendo um problema. Se em 2019 mais de 110 milhões de pessoas encontram-se sem aceso ao tratamento de efluentes domésticos, até 2024 ou 2029 a situação certamente não terá sido resolvida. O problema dos lixões clandestinos em centenas de municípios, a baixíssima taxa de reciclagem de materiais e as áreas contaminadas por disposição ilegal de produtos tóxicos igualmente continuará a fazer parte da vida dos cidadãos de muitas regiões.

E a Amazônia, continuará sendo derrubada? Terão aparecido as primeiras áreas de savana, bioma no qual parte da floresta deverá se transformar com a manutenção do atual ritmo de destruição? Nesta condição as regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul já começarão a ser afetadas pela diminuição das chuvas, trazidas da Amazônia pelos “rios voadores”.

Como estará a cultura do país, com a crescente redução dos recursos destinados às iniciativas nesta área? Corte de investimentos em atividades teatrais, publicações, cinema, música, pesquisa científica... Aumentará a crescente aversão à cultura, às ciências, o anti-intelectualismo?

Baseado no argumento de que o Estado se concentrará cada vez mais em suas atividades básicas, haverá realmente uma melhora considerável da Educação, da Saúde e da Segurança? Os aparelhos culturais públicos – museus, bibliotecas, clubes, cinematecas, teatros, auditórios, estádios de esportes – serão disponíveis em maior quantidade, atendendo a população?

Ainda são tantas as preocupações em relação aos próximos cinco ou dez anos e que permanecem sem respostas: oferta de empregos, custo de vida, transporte público, áreas de lazer nas cidades, entre vários outros itens que nem sequer mencionamos.

Se, no entanto, daqui a cinco ou dez anos continuarmos a escutar os mesmos discursos cujo principal tema seja o “combate à corrupção!”, “combate à criminalidade!”, “ordem e progresso!” “reforma disso!”, “reforma daquilo!”, saberemos que pouca coisa mudou e que o país continuou parado no tempo.  

(Imagens: pinturas de Juan Gris) 

Faça download de meu e-book "Considerações oportunas"

sábado, 19 de outubro de 2019
https://drive.google.com/file/d/1NaFp6_QXt4VIhDs3efF3SlnvOkjw7u6l/view

"Excertos, citações, aforismos, máximas, ditados, provérbios, opiniões, pensamentos, declarações, frases, comentários, etc., que recuperamos de leituras feitas ao longo dos dias e dos anos”.


Amazônia e recursos hídricos

sábado, 12 de outubro de 2019
"Amazônia, ainda sob o aspecto estritamente físico, conhecemo-la aos fragmentos."   -   Euclides da Cunha   -   Obras completas 


As recentes notícias sobre o aumento dos índices de desmatamento da floresta amazônica preocupam não só os ambientalistas de todo o mundo, mas também empresas e organizações científicas. A interrupção ou mesmo a diminuição do fenômeno dos “rios voadores” pode significar grande mudança no regime hidrológico das regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul. A diminuição das chuvas poderá provocar uma forte redução da atividade agrícola, pecuária e industrial nestas regiões, afetando uma economia de aproximadamente R$ 5 trilhões, onde se concentra 65% da população do país.

O vapor d’água lançado na atmosfera pelas árvores da Amazônia é carregado pelos ventos alísios em direção oeste, rumo à cordilheira dos Andes. Ali, não podendo mais avançar, estas nuvens encaminham-se para o sul. Estudos realizados pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), constataram que uma árvore da região da floresta, com copa de 10 metros de diâmetro, bombeia diariamente para a atmosfera mais de 300 litros de água na forma de vapor. Uma árvore com copa de 20 metros de diâmetro pode evaporar mais de 1.000 litros em um dia. Por outro lado, estimam os pesquisadores, que a existam cerca de 600 bilhões de árvores em toda a floresta da região. Forma-se uma quantidade imensa de água – cerca de 20 trilhões de litros diários segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) - que na forma de nuvens se desloca constantemente da região Norte para o restante do Brasil. 

Se, por um lado, empresas retrógradas do setor madeireiro, pecuário e do agronegócio brasileiro continuam derrubando a floresta – somente em janeiro de 2019 o desmatamento aumentou em 54% em relação ao mesmo período de 2018 -, outras organizações mostram preocupação com a destruição do bioma. Para conservar a floresta e a evapotranspiração responsável pela formação do vapor de água dos “rios voadores”, organizações como a Fundação Amazônia Sustentável (FAS) remuneram moradores das unidades de conservação através do Programa Bolsa Floresta, com o objetivo de combater a pobreza e manter a floresta em pé. Companhias de saneamento, localizadas nas regiões beneficiadas pelas água vindas da região amazônica, poderão futuramente subsidiar projetos de conservação da floresta. 

O crescente desmatamento da floresta já se faz sentir na região Sudeste, onde de acordo com pesquisas da Universidade da Califórnia, dos EUA, a estimativa é que nos estados do Rio de Janeiro e Espírito Santos as chuvas sejam menos frequentes e mais intensas. Segundo a Agência Nacional da Água (ANA), 38 milhões de pessoas de todo o país foram afetadas por secas e estiagens em 2017.

Desde o início da ocupação da região até março de 2019 foram derrubados 763 mil quilômetros quadrados de floresta, segundo dados da organização Observatório do Clima. Uma área equivalente a três Estados de São Paulo, ou pouco mais do que as áreas da França, Portugal, Áustria e Holanda somadas. Com o gradual desmantelamento dos órgãos de controle o desmatamento tem avançado ainda mais rapidamente. Segundo dados mais recentes, a derrubada da floresta aumentou 20% entre agosto de 2018 e abril de 2019, totalizando 2.169 quilômetros quadrados de árvores destruídas. Enquanto o mundo fala na preservação dos recursos naturais e das mudanças climáticas, o Brasil continua arrasando seu mais precioso recurso natural.    

(Imagens: pinturas de Jean Hogan) 

Mudanças climáticas e ciência

sábado, 5 de outubro de 2019
"A morte é a união da alma e do corpo, dos quais a consciência, o estado de alerta e o sofrimento são a desunião."   -   Ambroise-Paul-Toussait-Jules Valéry   -   Tal e Qual II


A ciência é uma forma de entendermos e interpretarmos a realidade baseados em fatos, pensamento racional e experiências. A principal ferramenta utilizada pela ciência na elaboração de teorias, desde seus primórdios no século XVII, foi a matemática – que até hoje ainda é o principal instrumento na construção de teorias que expliquem o mundo.

Esta maneira peculiar de explicar o meio que nos cerca, a ciência, foi um invento (uma descoberta?) da civilização ocidental europeia nos séculos XVI-XVII. Não que povos de outras épocas não tivessem atividades que hoje poderíamos chamar de ciências. Os antigos egípcios e sumérios foram precursores na astronomia, no invenção da agrimensura e no desenvolvimento da matemática. Indianos e maias desenvolveram, mais ou menos na mesma época (século II EC) de forma independente, o conceito do número zero. Gregos do período helênico (século III AEC) criaram diversas máquinas utilizando a força mecânica gerada pelo vapor.

Mas foi somente a civilização europeia quem desenvolveu uma maneira peculiar de observar e estudar a realidade, de forma metódica, racional e consequente. Este novo método, que em pouco tempo traria muitos frutos – seja na explicação da realidade ou no desenvolvimento de tecnologias – passou a ser chamado de método científico. Surge assim a ciência e seus cultores, os cientistas.


De início, os cientistas não foram muito populares. Poucos conseguiam entender o que faziam e o que diziam. Muitos dos que compreendiam este novo método não gostavam do que ouviam, já que negava ou tornava obsoletos conhecimentos milenares. Copérnico, Servet, Cardano, Kepler, Bruno, Galileu, foram perseguidos por suas ideias científicas, que não coadunavam com crenças religiosas e estratégias políticas de suas épocas.

A partir do Iluminismo (século XVIII) a ciência passou a ser olhada de uma nova maneira. No plano das ideias a religião havia perdido parte de sua influência, ao passo que reis e comerciantes passaram a enxergar as vantagens – poder e lucro – que as invenções tecnológicas começavam a trazer. Com o advento da industrialização no século XIX, a ciência impulsiona o desenvolvimento material de uma civilização que com suas máquinas domina a natureza cada vez mais, extraindo materiais, produzindo mercadorias e gerando riquezas – para poucos. Ciência é progresso e os cientistas são festejados como os sacerdotes da nova crença da sociedade industrial.

No século XX e o desenvolvimento da ciência e de sua filha dileta, a tecnologia, acelerou mais ainda. O sistema produtivo industrial domina a Terra, valendo-se de uma infinidade de tecnologias destinadas a fabricar produtos de consumo, consumindo grandes volumes de recursos naturais.

No percurso rumo ao progresso e à produção sem limites os cientistas identificam um problema: o uso indiscriminado da natureza está colocando em risco a vida no planeta, poluindo e aquecendo a atmosfera. Surge um impasse entre a ciência e setores do sistema produtivo, alguns dos quais colocam em dúvida a teoria do aquecimento global. Isso faz com que governos e instituições sejam influenciados por argumentos negacionistas, baseados em ideologias, crenças e interesses econômicos. Assim, a negação da crise climática mostra que mesmo no cientificamente avançado século XXI interesses econômicos e estranhas ideologias se sobrepõem às teorias científicas. As consequências desse engano serão conhecidas nas próximas décadas.  

Escreve o físico e professor Marcelo Gleiser em seu livro O caldeirão azul: 

Não vivemos no século XVII, mas seria inocente - especialmente dada a atitude do governo atual - achar que a ciência e sua credibilidade não estão sendo atacadas. Vemos isso todos os dias, quando muitos políticos e amadores criticam, sem a menor autoridade ou conhecimento, as conclusões de milhares de cientistas, em assuntos que vão da validade das vacinas do aquecimento global. Não acredito que tenhamos um único cientista no Congresso ou no Senado Federal. Nos EUA, a situação não é muito diferente. (Gleiser, 2019) 

E, mais adiante Gleiser completa:

É paradoxal e trágico que isto esteja ocorrendo em pleno século XXI, quando dependemos tão diretamente das tecnologias resultantes da aplicação da pesquisa em ciência básica. O vídeo SOS Ciência, produzido por cientistas brasileiros, é extremamente importante e deveria ser visto por todos (https://www.youtube.com/watch?v=g2873J5t4pw). Sem a ciência brasileira, não existem carros movidos a àlcool ou gás natural, com flexibilidade no uso do combustível. Sem a ciência brasileira, não temos liderança na exploração de águas profundas, ou no controle da erradicação de várias doenças tropicais. Como então, me pergunto, nos encontramos na situação absurda de termos governos que parecem declarar guerra ao conhecimento científico? (Gleiser, 2019) 

Olhando retrospectivamente a história do início da ciência, podemos entender um pouco melhor o fato de confissões religiosas e governos terem perseguido ou condenado à morte os precursores do progresso científico. Às vezes, mesmo os mais racionais argumentos não conseguem vencer o fanatismo ou a sede de poder e riquezas.  

(Imagens: fotografias de Mario Giacomelli)