As quatro fases de convivência com a natureza

sábado, 30 de novembro de 2019
"A velhice é a mais inesperada de todas as coisas que acontecem a um homem."   -   Leon Trotsky   -   Citado em O livro das citações de Eduardo Giannetti


O relacionamento do homem com a Natureza mudou ao longo da existência da raça humana. Os mais antigos registros sobre como nossos antepassados se relacionavam com o mundo natural chegaram-nos através das pinturas rupestres, encontradas em cavernas localizadas no sudoeste da França e noroeste da Espanha e datadas do período glacial, entre 35.000 a 17.000 AEC. Bastante conhecidas, as pinturas retratam animais (alguns dos quais extintos), cenas de caça e, com menos freqüência, figuras humanas vestindo peles de animais. O significado destas pinturas ainda não foi explicado em todos os seus aspectos, apesar das inúmeras teorias apresentadas até hoje. Todavia, tudo indica que neste período os humanos ainda não haviam desenvolvido uma distinção clara entre sua vida diária e a natureza, já que o grau de desenvolvimento tecnológico era insuficiente a ponto de alterar significativamente o meio ambiente onde viviam. Em outras palavras, é pouco provável que o homem se sentisse como um ser estranho e oposto ao mundo que habitava. 

A invenção da agricultura e de ferramentas como a foice e o arado primitivo, há aproximadamente 12.000 anos, provocou uma mudança na maneira do homem se relacionar com a natureza. Surgia a natureza “humanizada”, ocupada e transformada pelo homem; constituída pela aldeia, seus domínios e, principalmente, pela atividade agrícola, que ocupava extensas áreas em torno das moradias e ao longo dos rios, propiciando grandes colheitas. Os excedentes agrícolas permitiram a armazenagem para consumo posterior e troca com outras comunidades por mercadorias de que não se dispunham. O comércio de produtos agrícolas como o trigo, a cevada, o azeite de oliva, e o vinho, associados à manufatura e comércio de produtos cerâmicos, pequenos objetos de metalurgia e joalheria, possibilitaram a ocupação de um numero cada vez maior de indivíduos, resultando na evolução da aldeia para a cidade. 

Com o passar do tempo, outras atividades foram agregadas à agricultura e ao comércio, centralizando a economia da região em uma só cidade, aumentando seu tamanho e domínio sobre outras aldeias e cidades. Desta forma, surgiram as condições econômicas e políticas propícias para que se formasse a elite econômica, os sacerdotes e governantes (que geralmente eram constituídos pelos mesmos indivíduos), os exércitos regulares e as religiões mantidas pelos templos. Comentando este período limítrofe entre a pré-história e a história, Don Cupitt, filósofo inglês contemporâneo, escreve: “(...) as antigas mitologias acertam ao dizer que os deuses foram os primeiros reis, os primeiros senhores da terra e a primeira classe alta. É razoável postular que a crença nos deuses desse tipo essencial se desenvolveu lentamente no período após 7.500 AEC., quando tiveram início as atividades agrícolas e a fixação ao solo. Os deuses corporificavam e eram as concentrações maciças da autoridade sagrada e poder disciplinar, necessária para a evolução das primeiras sociedades estatais. A única maneira de transformar um nômade em cidadão era induzir nele o temor a um deus.” (citado de Depois de Deus, Ed. Rocco, 1999). A cidade e os campos agrícolas faziam parte da natureza dominada e conhecida pelo homem; este era o seu lar. Ele estava familiarizado com seus habitantes, os animais e as plantas, e com suas transformações; as cheias dos rios e a seqüência das estações. Para além dos limites desta natureza “humanizada”, relativamente ordenada e conhecida, encontrava-se o caos, o mundo selvagem, sujeito à própria sorte e ainda não ordenado pela ação do homem. Era um lugar a ser evitado, dominado por forças e entidades estranhas e mais fortes do que o homem. Esta natureza selvagem, contraposta à natureza humanizada – quase sua antípoda –, estava localizada na floresta, nas montanhas isoladas e nos desertos, nos pântanos, nos mares e nas regiões remotas. Este mundo era pouco frequentado; só aventureiros ou fugitivos lá penetravam. Ali habitavam os animais selvagens, pessoas perigosas ou aqueles que por alguma razão haviam se isolado da sociedade. Na maioria das culturas esta região selvagem e desabitada era a moradia dos personagens míticos, associados à religião e às lendas populares. Como não lembrar da “Odisseia”, poema atribuído a Homero, no qual são descritas as viagens de Ulisses pelo mundo “não-humanizado”, habitado por criaturas como os gigantes Ciclopes, os antropófagos Lastrigões e as Sereias, que atraiam para a morte aqueles que as ouvissem. A epopeia babilônica de Gilgamesh faz referência à cidade, oposta à remota região habitada pelo mítico ser Enkidu. Na visão de mundo do Antigo Egito também havia uma fronteira imaginária entre o vale do Nilo, onde se localizava a civilização (com todos os seus benefícios materiais e espirituais para os vivos) e a região externa, principalmente o Ocidente, para onde se estendia o deserto sem fim, habitado por demônios e espíritos malignos.


Esta maneira de enxergar o meio ambiente, a dicotomia “humanizado e não-humanizado” perdura através de toda a história da humanidade, assumindo diversas formas, até que a partir do século XVI as Grandes Descobertas, os avanços da Ciência e a crítica filosófica, passam gradualmente a desmistificar a natureza "não-humana", desembaraçando-a de todo aspecto sobrenatural, que as regiões remotas e desabitadas ainda tinham no imaginário popular. Ao final do processo de mudança de paradigma, aproximadamente no início do século XIX, a natureza selvagem e inexplorada deixava de inspirar medo ao sobrenatural, para despertar a cobiça pelos recursos naturais, prontos a serem explorados. 

Não é coincidência de que o período de “desmistificação” da natureza coincida com o surgimento do capitalismo e do desenvolvimento tecnológico. O clima é de entusiasmo com o desenvolvimento da indústria, dos transportes e do grande numero de descobertas científicas. Em pouco tempo, vaticinavam alguns à época, o progresso deveria beneficiar todas as regiões da Terra, mesmo às mais remotas. Avançava-se sobre áreas remotas da África, para encontrar minas de ouro e diamantes. Derrubava-se a floresta na América do Sul para construir ferrovias, que deveriam melhorar os transportes e trazer riqueza para a região. Vastas áreas de floresta eram dizimadas no Sudeste Asiático para estabelecer plantações de chá, consumido na Inglaterra. Ao longo de todo o século XX a história não foi diferente. Grandes êxodos humanos provocaram um aumento exponencial da população em cidades, sobrecarregando a infra-estrutura de transporte, saneamento e moradia. Milhares de fábricas surgiram em bairros afastados, poluindo mananciais de água e expulsando pequenos agricultores. Vastas áreas de floresta são derrubadas para a criação de gado, enquanto que grandes barragens, construídas para geração de eletricidade, destinada aos grandes centros urbanos, provocam inundações de vastas regiões cobertas por florestas tropicais.

O resto da história nós já conhecemos; até porque ainda hoje convivemos com os fatos. Aos poucos, porém, o homem terá que mudar sua maneira de atuar sobre a natureza, o “mundo não-humano”. A princípio totalmente inserido na natureza, o homem do Paleolítico Superior não se via como algo fora ou à parte de seu meio ambiente. Com o surgimento das primeiras civilizações, o homem passou a encarar o ambiente selvagem (a floresta, o deserto, as montanhas) com temor, como local inseguro, por ser o lugar habitado por feras e seres sobrenaturais. Além disso, sempre pairava no ar a ameaça de que a natureza “humanizada”, o local onde estavam as cidades e os campos, pudesse, por causa de acidente natural (seca, inundação) ou guerra, voltar ao estado selvagem original, ocasionando o desaparecimento dos homens e dos deuses (quantas cidades como Troia e Persépolis não foram queimadas e destruídas, voltando a ser “cobertas pela erva e tornando-se covil de feras”, como relata a Bíblia?). Na era moderna, o homem passou a encarar o meio ambiente natural como região a ser explorada e dominada, por ser fonte inesgotável de recursos, prontos a serem transformados em matéria-prima e produtos, destinados ao consumo humano.


Hoje, nossa civilização percebeu de que há necessidade de mudar novamente nossa visão da natureza. Desta vez, porém, de uma maneira consciente, conhecedores que somos agora de todas as transformações da história. Após vivermos completamente inseridos na natureza por centenas de milhares de anos e depois de a temermos por outros milhares de anos, para em seguida a explorarmos mais algumas centenas de anos, resta-nos ainda pouco tempo para entendermos a natureza e conhecermos as suas limitações, que também são as nossas.

(Imagens: pinturas de Max Ernst)

FESTA DO LIVRO NA USP

quinta-feira, 28 de novembro de 2019
De 27 de novembro a 30 de novembro de 2019

PARTICIPE! LEIA MAIS!

Faça download do meu ensaio "A religião e o riso"

quarta-feira, 27 de novembro de 2019
https://drive.google.com/file/d/1op0E8eQkJeFPkDJPS8YWR1hcuMmhyGxF/view

Moralistas franceses - La Rochefoucauld, La Bruyère, Vauvenargues, Chamfort e Joubert

sábado, 23 de novembro de 2019





(Pesquisa, texto e montagem: Ricardo Ernesto Rose)

(Imagens da esq. para direita: Chamfort, La Rochefoucauld, Joubert, La Bruyère, Vauvenargues)

21 DE NOVEMBRO - DIA INTERNACIONAL DA FILOSOFIA

quinta-feira, 21 de novembro de 2019


“Nunca se protele o filosofar quando se é jovem, nem canse o fazê-lo quando se é velho, pois que ninguém é jamais pouco maduro nem demasiado maduro para conquistar a saúde da alma.”

Epicuro (341 - 270 AEC), filósofo grego 

Livros, quem se interessa?

sábado, 16 de novembro de 2019
"Nada emociona mais o burguês do que um revolucionário de um outro país"   -   Nicolás Gómez Dávila   -   Aforismos 


Não se discute a importância dos livros. Todavia sempre houveram sociedades, em todos os períodos históricos, nas quais os livros, ou certos livros, foram execrados. No período da Inquisição, entre os séculos XIV e XVIII, as obras escritas tinham que obter o nihil obstat quominus imprimatur, o “nada obsta para que seja impressa”, para poderem ser impressas e distribuídas. Cientistas como Copérnico, escritores como Rabelais e filósofos com Espinoza protelaram a publicação de suas obras para o final da vida, quando já sabiam que a Igreja pouco poderia fazer para puni-los. Outra opção era organizar edições anônimas, com local de impressão inverídico. A apreensão de uma publicação que fosse contra os ensinamentos e dogmas da Igreja podia custar meses de tortura, anos de encarceramento ou, no pior dos casos, a queima do autor em um ato público religioso, os Autos de fé.

Mas tal aversão contra a circulação de ideias não foi exclusividade do período que se estende da Baixa Idade Média até a Revolução francesa. O século XIX e, principalmente, o século XX estão repletos de períodos durante os quais se organizaram repressões à publicação e distribuição de livros. Em outras palavras, uma coibição da circulação de ideias que colocassem em questão, ou diretamente fossem contrárias à concepção de mundo das forças políticas, religiosas ou econômicas dominantes de certas sociedades. Os exemplos são inúmeros, e vão desde a censura de obras rotuladas de “capitalistas ou burguesas” no regime soviético, aos livros tidos como “impuros” no regime nazista. Durante este último, o governo hitlerista chegou a organizar em 10 de maio de 1933 uma queima de milhares de livros, como ato de repúdio ao teor de obras escritas por intelectuais como Stefan Zweig, Thomas Mann, Sigmund Freud, Erich Kästner, entre outros.

Mais recentemente, nos anos 1960, 1970 e 1990, ditaduras espalhadas pelo mundo – produto sucedâneo da Guerra Fria – também promoveram sistemático tolhimento da cultura de suas sociedades, principalmente através da proibição de publicação e circulação de livros. Coréia do Sul, China, Cuba, Chile, União Soviética, Argentina, Brasil, África do Sul; a supressão do pensamento crítico sempre foi a maneira mais eficiente de manter povos na ignorância, na apatia e na servidão, garantindo privilégios dos dominadores.


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Sempre gostei de livros. Meus pais nunca foram ricos, mas em nossa casa tínhamos uma biblioteca de razoável tamanho. Além das obras de Monteiro Lobato, Francisco Marins, Francisco de Barros Júnior e uma coleção da editora Melhoramentos sobre as regiões geográficas brasileiras, gostava de ler uma coletânea, da qual não me lembro o nome, em vários volumes, sobre história e pré-história. Mais tarde, já na adolescência, passei para os clássicos mundiais e comecei a me aproximar da filosofia.

Livros, livros. Durante o período de serviço militar, sempre guardava alguns livros no armário para ler nas longas e entediantes horas de folga, quando não estava de serviço. Depois, frequentando o cursinho pré-vestibular, ao invés de estudar as matérias do exame, passava as tardes lendo tudo que podia. A mesada era toda gasta em livros e, às vezes, em discos.

Já trabalhando e ganhando pouco, deixava de gastar dinheiro com o almoço, para comprar livros. No final dos anos 1970, quase diariamente durante os intervalos de almoço, passava na livraria Siciliano da rua Antônio de Barros, no Tatuapé, procurando pechinchas e lançamentos, negociando com o vendedor.

Procurei transmitir esta paixão pelos livros também aos meus filhos. À época, as condições econômicas felizmente me permitiam comprar grandes quantidades de livros, frequentando livrarias e os sebos no Centro Velho de São Paulo, nas manhãs de sábado. Acabei formando uma biblioteca de tamanho razoável, da qual tive que me desfazer em grande parte anos depois.

Os livros são para mim quase um objeto mágico, um oráculo. Neles procurei e encontrei respostas para algumas das minhas perguntas, tomando contato com as ideias de pessoas de todas as épocas e culturas. Mas, ao longo da vida, a leitura de tantos romances, ensaios, tratados, poemas, peças de teatro, relatos, fez com que muitas respostas perdessem a importância e os questionamentos aumentassem.      

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Apesar de sua importância, o livro ainda continua sendo privilégio de apenas uma parte reduzida da população. A crise econômica que persiste no Brasil e que governos seguidos parecem não conseguir debelar, colocou 104 milhões de pessoas, mais de metade da população do país, fora do mercado consumidor. Com uma renda mensal por pessoa de R$ 413 por mês, segundo dados oficiais, é impossível consumir mais do que o essencial para sobreviver – aquisição de livros é impossível.

Acrescente-se a isso o fato de que o número de bibliotecas no Brasil é insuficiente para atender a população. Dos 5.570 municípios brasileiros, segundos dados oficiais, apenas 112 não possuem biblioteca. Estes números, à primeira vista, parecem aceitáveis. Esquecemos, no entanto, que estes centros de cultura, estão mal distribuídos e são insuficientes para atender a população do país. Segundo informações do jornal Gazeta do Povo, em 2017 o Brasil tinha uma biblioteca para cada 30.000 habitantes. Nos Estados Unidos este índice é de uma biblioteca pública para cada 19 mil habitantes. Na República Tcheca, país com a melhor distribuição do mundo, esta proporção é de uma instituição para cada 1.970 cidadãos. Além disso, as bibliotecas públicas são pouco aparelhadas e, acima de tudo, mal distribuídas, principalmente nas médias e grandes cidades. Nas periferias dessas metrópoles, onde se concentram crianças em idade escolar, jovens e trabalhadores, inexiste praticamente possibilidade de acesso ao livro.

A falta de disponibilidade e de incentivo ao uso do livro nas escolas, local onde o jovem aprende a se familiarizar e apreciar o livro, tem feito com que os índices de leitura do país sejam bastante baixos. Some-se a isso o fato de que a maioria das famílias não tem o hábito da leitura, não dispondo de livros em casa, principalmente por motivos financeiros. Assim, de acordo com pesquisa realizada pelo IBOPE para o instituto Pró-Livro em 2014, 44% da população brasileira não tem o hábito de ler e 30% nunca compraram um livro. Dados da mesma pesquisa indicam que o brasileiro lê em média 2,43 livros por ano. Os franceses, por exemplo, leem 21 livros por ano: 17 em versão impressa e 4 na forma digital.
Não é por outra razão que o mercado editorial brasileiro vem mostrando uma crescente queda. Entre 2006 e 2017 as edições tiveram uma redução de 21%. Entre 2017 e 2018 o número de exemplares impressos caiu em 11%, representando 43,3 milhões de exemplares a menos produzidos. Com isso, as tiragens foram menores e o preço médio do exemplar aumentou cerca de 5% em um ano.

As livrarias vem sendo prejudicadas em todo este processo. As pequenas, com pouco espaço e reduzido capital de giro, tiveram que fechar suas portas ao longo dos últimos dez anos, devido à concorrência das lojas e megastores nos shopping centers. Nos últimos anos chegou a vez das grandes redes de livrarias, como a Cultura e a Saraiva, que agora também se encontram em sérias dificuldades financeiras e fecharam algumas de suas lojas. Dados de 2017 da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviço e Turismo mostram que entre 2007 e 2017 21 mil livrarias e papelarias encerraram suas atividades.  

A esta lista acrescente-se ainda o fato de que o mundo, e especialmente o Brasil, atravessa uma crise cultural. Movimentos de diversas origens tornaram-se propagadores de políticas e conceitos anti-intelectuais, desvalorizando e negando a cultura e a ciência. Coloca-se em dúvida a segurança da vacinação, de fatos evidentes como a esfericidade da Terra e de teorias científicas estabelecidas como a teoria da evolução e das mudanças climáticas. Na área cultural volta a imperar um obscurantismo pré-iluminista e um conservantismo farisaico, que prejudicam o necessário debate sobre temas atuais da sociedade. O atual governo e grupos que o apoiam pouco valorizam o conhecimento e a pesquisa, preferindo fundamentarem-se em teorias e crenças veiculadas pelas mídias sociais, muitas vezes respaldadas em fatos inverídicos, as fake news.



Neste contexto cultural e econômico adverso, cabe a nós, ignorantes amigos do conhecimento, valorizar o livro e, evidentemente, outros instrumentos de difusão do saber. Ao longo da história, todas as civilizações que deixaram de valorizar o cultivo e a crítica da cultura, tenderam à decadência e à ignorância e, por fim, ao fanatismo e à barbárie.

(Imagens: pinturas de Umberto Buccioni)

Ainda o saneamento

sábado, 9 de novembro de 2019
"Desde que começaram a enterrar seus mortos, a negociar com o além, a frequentar bailes e refletir sobre números primos, os 'seres humanos' são criaturas que ontologicamente se desviaram de seu rumo."   -   Peter Sloterdijk   -    Pós Deus 


O país enfrenta graves problemas ambientais nos últimos meses. Incêndios na Amazônia e áreas preservadas do Cerrado, ocupações ilegais na Mata Atlântica e, ultimamente, a poluição de centenas de praias do Nordeste por óleo vindo do oceano. O governo demorou em responder aos acontecimentos, seja por falta de organização ou de pessoal, provavelmente por ter reduzido a capacidade operacional do ministério do Meio Ambiente.

No entanto, há outras mazelas ambientais cuja solução – ou pelo menos seu encaminhamento – o Estado brasileiro vem postergando há décadas. Falamos aqui especificamente da gestão do lixo e do saneamento, para os quais não têm sido destinados todos os recursos necessários, mesmo durante o período de crescimento da economia no governo Lula. O suprimento de água potável, a coleta e o tratamento de esgoto são, neste contexto, problemas mais prementes no que se refere à saúde pública do país.

Os índices de saneamento no Brasil ainda são muito baixos, considerando o PIB, o nível de desenvolvimento social e tecnológico e comparados a outros países da América Latina. Em 2019 ainda existem 35 milhões de pessoas que não estão conectadas à rede de abastecimento de água. Na região Norte, por exemplo, cerca de 57% da população continua sem acesso à água tratada, enquanto que no Sudeste são 9%. Com relação ao efluente doméstico são 110 milhões de brasileiros sem acesso; 90% da população da região Norte e 22% do Sudeste.

Os índices de saneamento, segundo muitos especialistas, refletem a desigualdade com que regiões de diferente desenvolvimento econômico são tratadas pelo governo central e pelas administrações regionais. Compare-se o baixo nível de acesso à infraestrutura pública entre áreas rurais do Nordeste com regiões urbanas do Sudeste.

Segundo entidades do setor, seriam necessários investimentos de R$ 600 bilhões para universalizar o saneamento no país até 2030, segundo previsto no Plansab (Plano Nacional de Saneamento Básico) de 2013. Segundo o Instituto Trata Brasil, em declaração ao jornal Folha de São Paulo (FSP 9/10/2019), o Brasil necessita de R$ 22 bilhões de investimentos por ano nesta área. Dados do Ministério de Desenvolvimento Regional informam que entre 2014 e 2017 houve uma queda nos investimentos anuais de R$ 15,9 bilhões para R$ 7,8 bilhões.  

Está em preparação um plano de privatização das companhias públicas de saneamento, com o objetivo de gerar receitas para novos investimentos e transferir parte dos serviços às companhias privadas, que atualmente já atendem 6% dos municípios do país. A proposta, apresentada como a única solução para o setor dada a falta de recursos federais e estaduais para ampliar ou até manter a estrutura existente, tem muitos críticos. Estes citam como exemplo casos de concessão dos serviços ao setor privado nos quais as necessidades da população não são atendidas, caso das cidades de Manaus e Tocantins. No exterior, na Alemanha, França e Inglaterra o setor público vem retomando os serviços de saneamento em diversas cidades.

É preciso reconhecer que, com raras exceções, faltou ao setor de saneamento apoio na gestão das concessionárias através de suporte técnico, administrativo e financeiro, capacitação e atualização tecnológica. Por outro lado, convêm lembrar que administrações privadas visam, acima de tudo, o lucro de seus acionistas. Privatização não é uma panaceia universal.

(Imagens: fotografias de Annie Leibovitz)

Potencial e mediocridade

sábado, 2 de novembro de 2019
"Minha obra e a sua são extraordinariamente semelhantes, embora eu não faça a menor ideia sobre de que trata sua obra."   -   Woody Allen   -   Que loucura!



Todos nós na vida já encontramos pessoas com grandes aptidões, indivíduos que poderiam se tornar excepcionais em certas áreas, mas que com o tempo se renderam à mediocridade e não desenvolveram seu potencial.

Esta ideia de capacidades não exploradas se aplica tanto a seres humanos quanto a instituições; tudo aquilo que tem capacidade de fazer algo mais de si mesmo ao longo do tempo. Transformar seus aspectos positivos ainda pouco desenvolvidos em algo maior, mais elaborado, valendo-se de potencialidades que lhe são inerentes.

Trata-se, porém, de um processo consciente, no qual o indivíduo ou a instituição – um Estado, uma organização, uma empresa – estão na posição de poderem avaliar seu estado atual, identificar suas potencialidades e elaborar maneiras de como ampliar, desenvolver e/ou transformar a si mesmos ou a instituição – a qual, no final das contas, é um agrupamento de indivíduos com os mesmos objetivos em relação àquele assunto.

Podemos traçar um paralelo aproximado entre este processo de transformação psíquica e cultural pelo qual podem passar indivíduos e instituições (aqui incluindo todos os aspectos da cultura; como sistemas de crenças, leis e normas, ciência e tecnologia, etc.) e a evolução das espécies vivas, o neodarwinismo. Mas, bem claro: trata-se de uma comparação aproximada, já que as mudanças psíquicas (indivíduo) e culturais (instituições) ocorrem ao longo de um curto espaço de tempo e se manifestam na pessoa e na instituição. Ao passo que a evolução dos sistemas vivos se desenrola no decorrer de longos períodos de tempo e é quase que imperceptível no indivíduo – talvez, eventualmente, a nível molecular e genético.

São, portanto, as pessoas e as instituições que podem usufruir de suas potencialidades para desenvolverem suas aptidões (pessoas individuais) e aprimorarem sua atuação (instituições, Estados, empresas, processos, etc.)

Este curto preâmbulo pretende introduzir o tema das oportunidades de desenvolvimento perdidas pelo Brasil, pela maneira como vimos atuando em relação a diversas áreas. Para simplificar nossa abordagem, dividiremos estas áreas em três: a) o agronegócio; b) a questão ambiental e c) o uso extensivo de energias renováveis.

Sabemos há muito de que o Brasil é o país com a mais extensa área agricultável em todo o planeta. Rússia e Estados Unidos também dispõem de vastas planícies agricultáveis, mas estes países têm como limitação um inverso rigoroso, que impede totalmente a atividade agrícola. Além de área, desenvolvemos tecnologias específicas para o cultivo em regiões tropicais e adaptadas aos nossos solos e climas. Nossa agricultura é uma das mais produtivas em todo o mundo. Em apenas pouco mais de 30 anos, de grande importador de produtos agrícolas, o Brasil se tornou um dos maiores fornecedores mundiais de alimentos e insumos para outros setores ligados à atividade agrícola.

Na área ambiental, principalmente a partir de 1992 quando o Brasil organizou a histórica Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a ECO-92, no Rio de Janeiro, o país se tornou um dos maiores protagonistas planetários, quando o assunto são os temas ambientais. Dispomos de uma das mais ricas biodiversidades em nossos variados biomas, das mais extensas reservas de floresta tropical que abrigam milhares (ou milhões) de espécies de fungos, bactérias, plantas e animais ainda desconhecidos da ciência. Um valioso ativo de espécies e substâncias com potencial para a medicina, a tecnologia e para o próprio desenvolvimento do conhecimento.  

São poucos os países que possuem o potencial de desenvolvimento e uso de tecnologias para energias renováveis como o Brasil. Não é por outra razão que nosso parque eólico, por exemplo, foi um dos que mais cresceu nos últimos dez anos. Apesar de toda a crise econômica, o setor da energia do vento é um dos que mais se desenvolve a cada ano. Ventos e extensas áreas disponíveis para instalação de parques eólicos são fatores preponderantes neste desenvolvimento. Com um índice de insolação bastante alto em todo o país e preços de equipamentos cada vez mais econômicos, vemos que a energia fotovoltaica também começa a se desenvolver nos últimos cinco anos. Isto sem falar na energia hidrelétrica já instalada e ainda suprindo mais de 50% de toda a eletricidade consumida no país. Energia de biomassa e biogás também são setores de geração renovável que tendem a crescer ao longo dos próximos anos.

O ponto que defendemos é que todas estas atividades – agricultura, meio ambiente e geração de energias renováveis têm muitos pontos em comum e carecem de uma política com uma visão integradora. A floresta pode conviver com a agricultura e com a criação de gado, os resíduos da agricultura podem servir de insumos para a geração de energia renovável (biomassa). Há inúmeras possibilidades de integração – que seja dada a palavra aos especialistas –, que não abordaremos neste artigo por falta de suficiente conhecimento. No entanto, o que para todos que estudaram seriamente o assunto fica claro, mesmo para aqueles que não são especialistas, é que faltou e continua faltando aos governos brasileiros uma visão sistêmica. Uma perspectiva a partir da qual será possível identificar suas potencialidades, elaborar maneiras de como ampliar, desenvolver e/ou transformar o setor como um todo.

Nesta história toda o pior que pode acontecer ao Brasil é ter grandes aptidões e oportunidades, mas com o tempo se render à mediocridade, não desenvolvendo seu potencial como nação devidamente inserida no mundo, com atividades econômicas sustentáveis.

(Imagens: pinturas chinesas do século XIX)