Pensamentos sobre a morte

sábado, 29 de fevereiro de 2020
"Sono do justo? O justo não deveria conseguir dormir."   -   Jules Renard   -   Diário    


Todo final de ano a imprensa, talvez por falta de assunto, chama a nossa atenção para o grande número de personalidades famosas que teriam falecido durante o ano. Cantores e cantoras, atores e atrizes, empresários, atletas e políticos; todos têm suas vidas expostas, mostrando, de preferência, os aspectos mais tristes, trágicos e bizarros de suas biografias. A cada ano a prática jornalística se repete, mas, mesmo assim, quer se fazer parecer que hoje vivemos em um período único, como se antes não tivesse havido outro igual.

No entanto, mudaram apenas os nomes e algumas poucas circunstâncias do passamento das celebridades. Para o público, ávido por sensações, os principais personagens das apresentações que se sucedem nas páginas das revistas ou nos sites de famosos, são a fama, o poder, o dinheiro, os amores, as alegrias, os escândalos e as desgraças. As personalidades mortas são apenas personagens de uma história que no fundo é sempre a mesma; mudam apenas os atores.

A impressão de que em determinado ano morreram mais celebridades do que em períodos passados, pode também ser relativa. Talvez, porque coincidentemente nos últimos tempos tenham falecido pessoas que são conhecidas para nós, nosso grupo social, para nosso país. Muito provavelmente essas mortes, que nos chamam a atenção, sobre as quais vemos e fazemos comentários, pouco ou nada significam para pessoas de outros grupos, países ou culturas. Tudo, em última instância, depende do ponto de vista de quem percebe ou não o fato. Até a morte de celebridades supostamente famosas é relativa, ou, dito de outra forma, até a fama na morte é relativa ao meio histórico, geográfico, ou social. 
  
Há outras relativizações da morte. Não só da morte de indivíduos conhecidos, mas de pessoas comuns. Por vezes nos ocorre a lembrança de pessoas que conhecíamos no passado, em diversas fases de nossa vida, e que faleceram. Lembramos daqueles que, como nós, eram jovens e morreram. De repente, não estavam mais: um acidente, uma doença rápida e depois só a memória. O que teriam feito na vida, como viveriam e o que poderiam ter sido? (Quantos pais não se perguntaram isso durante toda a história da humanidade?) 

Sobre este fato escreve o filósofo Arthur Schopenhauer em Parerga e Paralipomena:

A profunda dor causada pela morte de todo ser de quem se é amigo surge a partir do sentimento de que, em todo indivíduo, existe algo de inefável, próprio apenas a ele e, portanto, inteiramente irrecuperável.” 

Em Senilia, pensamentos na velhice o pensador também registra:

A vida deve ser vista integralmente como uma lição rigorosa que nos é dada, embora nós, com nossas formas de pensamento voltadas a objetivos totalmente diferentes, não consigamos entender como chegamos ao ponto de precisar dela. Mas, para isso, devemos nos lembrar de nossos amigos falecidos com satisfação, considerando que superaram sua lição e desejando que ela tenha sido aproveitada.”

Ao longo da vida encaramos a morte de maneiras diferentes – poderíamos dizer pontos de vista diferentes, o que novamente nos remete à ideia da relatividade. Quando somos jovens, se não nos deparamos com ela na morte de parentes ou amigos, quase não tomamos conhecimento da “indesejada das gentes”, como a chamava o poeta Manuel Bandeira. Já na idade adulta, às voltas com a vida familiar e profissional, caso não se faça diretamente presente em nossas vidas, também pouco a percebemos. O frenético ritmo da vida, a energia, os planos e objetivos, a longa estrada ainda pela frente, nos afastam do pensamento da morte. Em se aproximando a velhice, quando começamos a ver, aqui e ali, tombarem aqueles que vinham nos acompanhando – os nossos pais –, começamos a nos dar conta de que aquele muro alto e cinza, que primeiro desconhecíamos e depois parecia estar muito longe, agora se aproxima.

Escreve na antologia A arte de envelhecer o filósofo contemporâneo italiano Franco Volpi:

Naturalmente, existe o implacável mecanismo de contagem do tempo, o rigor da decadência biológica o unus dies par omni: a morte, ou seja, o dia que, de maneira singularmente democrática, é de fato igual para todos. Na juventude, quando, por assim dizer, escalamos a montanha da vida, não conseguimos ‘ver a morte, pois ela está no sopé do outro lado da montanha’. Porém, depois que ultrapassamos o cume, ‘então avistamos realmente a morte, que até esse momento conhecíamos apenas de ouvir falar.’ Tomamos consciência de sua aproximação devido ao esgotamento de todas as forças do organismo, aquele processo bem triste do ‘marasmo’, que, não obstante, é necessário e até mesmo benéfico e salutar: ‘Pois sem essa preparação (a diminuição de todas as forças), a morte seria difícil demais.”

Até os enterros guardam uma certa relatividade. Quantas vezes já não ocorreu, a cada um de nós, irmos a um enterro e lá encontrarmos parentes e pessoas conhecidas – esses encontros memoráveis que geralmente só ocorrem nessas ocasiões especiais: casamentos, cada vez mais raros, batizados cujo número também sofreu perceptível queda, e enterros, cuja frequência permanece igual. Continua sempre atual a expressão latina: Vixit, viveu, já não vive.

O relativismo ao qual me refiro com relação aos enterros é a questão da perspectiva. Vamos ao enterro de um parente, no qual encontramos outros familiares com os quais conversamos durante as longas – e geralmente frias – noites de velório. Passado um período, somos chamados a comparecer a outro sepultamento, exatamente daquele familiar com o qual havíamos conversado durante algumas horas naquele velório passado. Num futuro longínquo ou não, não o sabemos, muitos daqueles parentes e amigos estarão conversando por algumas horas, numa noite fria, durante o nosso próprio enterro. E assim gira a roda da vida, a bhavacakra dos budistas.

Talvez, por toda esta visão relativística em relação à morte e ao morrer, é que os grandes mestres espirituais da humanidade sempre foram reticentes em relação à morte e ao que vem depois. Nunca tentaram formar um quadro detalhado do que aconteceria após nossa morte, deixando transparecer que o “hoje e o aqui”, eram mais importantes do que fantasiosas elucubrações a respeito de um estado, sobre o qual provavelmente nem eles tinham uma ideia clara formada.

Finalizamos com pensamentos de alguns filósofos sobre a morte:

Nenhuma desgraça pode atingir aquele que deixou de ser; em nada difere do que seria se jamais tivesse nascido, pois sua vida mortal lhe foi arrebatada por uma morte imortal.” (Lucrécio, Da Natureza)

É decerto medonho viver quando não se quer, mas seria ainda mais pavoroso ser imortal quando se quer morrer.” (Lichtenberg, Aforismos)

Não morres por estares doente; morres por estares vivo.” (Michel de Montaigne, Pensamentos)

A morte – o senhor absoluto.” (Georg W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito)

O que aguarda os homens após a morte não é nem o que esperam, nem o que acreditam.” (Heráclito de Éfeso, Fragmentos)

(Imagens: representações de Shiva)

Enchentes: o clima e a questão social

sábado, 22 de fevereiro de 2020
"O ser é uma vontade cega, sem rumo, que não pretende nada, que nada deseja, simplesmente vontade como uma força todo-poderosa, da qual tudo depende no mundo, ao passo que ela mesma não depende de nada nem de ninguém, mas simplesmente existe."   -    Leszek Kolakowski   -   Sobre o que nos perguntam os grandes filósofos (Schopenhauer)


O verão de 2019/2020 foi excepcionalmente chuvoso em toda a região Sudeste do Brasil. Centenas de cidades foram afetadas pelo transbordamento de rios e acúmulo de água, desalojando e desabrigando dezenas de milhares de pessoas e provocando mais de 70 mortes por desabamentos e afogamento. Segundo os meteorologistas, estas grandes precipitações estão sendo provocadas pelo aumento da temperatura média do Atlântico Sul, gerando nuvens que entram em contato com os corredores de umidade que vêm da Amazônia, os chamados “rios voadores”. O choque destas frentes climáticas acaba provocando grandes precipitações na região Sudeste, a região mais populosa do país.

Apesar do fenômeno não ser regular, não foi a primeira vez que tal volume de chuvas caiu sobre a região. Cientistas preveem que tais precipitações passarão a ser cada vez mais comuns, com a crise climática. Neste ano, dada a vasta área geográfica afetada, as chuvas despertaram mais preocupação entre administradores públicos e especialistas, já antevendo acontecimentos semelhantes ou mais graves nos próximos anos.
São várias as causas destas enchentes. A mais óbvia delas é o clima, mas este não é o único vilão desta história. Por um lado existe o fenômeno do aquecimento global provocando a crise climática, que se apresenta como uma série de acontecimentos – aumento da força das chuvas, das nevascas, dos furacões, das secas, etc. – que cada vez mais afetarão as atividades humanas. O fato não é novo e já vem sendo anunciado e debatido desde meados da década de 1980. Mas continua sendo negado por alguns grupos econômicos e governos, cujas atividades contribuem direta ou indiretamente para o aprofundamento da crise do clima. O Acordo de Paris, assinado em 2016 por 175 países, é o primeiro passo no compromisso mundial em reduzirmos gradualmente as emissões de gases, evitando aumentar o aquecimento da atmosfera ao longo das próximas décadas.

Outra causa das enchentes, talvez a principal, tem como base o desenvolvimento das cidades brasileiras, notadamente as da região Sudeste. O Brasil, ao longo de sua história, não chegou a fazer uma reforma agrária ampla, de modo que as populações campesinas pudessem ter acesso à terra. Crises econômicas, secas e a mecanização da agricultura, ocorridos ao longo dos anos 1940-1990, fizeram com que estas pessoas não tivessem mais sustento no campo, sendo forçadas a migrarem para os centros urbanos. As cidades, por outro lado, não estavam preparadas para receberem estes contingentes adicionais de moradores; faltavam recursos para ampliar a rede de infraestrutura urbana.  

Assim, dado o baixo poder aquisitivo destas populações, elas não tinha condições para se fixarem em áreas urbanas valorizadas, onde havia uma infraestrutura urbana desenvolvida. Sobravam em muitas cidades apenas as zonas situadas na várzea dos rios ou nas encostas de morros – exatamente os espaços que com o adensamento urbano provocado pelo crescimento da cidade, a construção de grandes avenidas, a larga impermeabilização dos solos, seriam as mais sujeitas às enchentes.  

De uma maneira bastante simplificada, pode se dizer que as enchentes são sintomas de dois processos distintos, mas não independentes. Primeiro, o aumento das chuvas provocadas pela crise climática, como consequência da exploração desordenada dos recursos naturais pelas atividades econômicas. Segundo, o crescimento desordenado e excludente das cidades brasileiras, através de um processo de especulação imobiliária e um incipiente (ou nenhum) planejamento urbano.   

(Imagens: pinturas de Emil Rau)       

Notas rápidas (homenagem a G. C. Lichtenberg)

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020




"Nenhuma invenção foi mais fácil para a humanidade do que o céu"

(G. C. Lichtenberg)




Lula e Francisco 


Há poucos dias, o ex-presidente Lula foi recebido pelo papa Francisco. O fato foi pouco comentado ou quase ignorado pela maior parte da imprensa. O Jornal Nacional, que deu grande destaque aos encontros de outras personalidades brasileiras com este e outros papas, fez apenas uma brevíssima referência ao encontro. Nas redes sociais, houve fortes ataques a Lula e ao papa de um lado, e efusivos elogios de outro.

No varejo dos diversos grupos do WhatsApp e do Facebook, a impressão é que a visita de Lula a Francisco causou desgosto aos apoiadores do presidente Bolsonaro. Foram várias as manifestações, referindo-se ao sumo pontífice como “comunista”, associando isto ao fato de ser argentino. Parece que nossa velha xenofobia em relação aos argentinos ainda não foi superada – acontecimentos recentes têm contribuído para manter o tema em pauta.

Outros lamentam o fato de que o chefe máximo da igreja católica tenha recebido em audiência privada “o maior ladrão na história brasileira”, figura que, segundo estes “tanto mal fez ao Brasil”. Independentemente disto, vale lembrar que a função do papa, como sacerdote e representante de Deus, é exatamente esta: receber e confortar os pecadores (lembrando que, pelo menos em relação aos pecados dos quais é acusado por estas pessoas, o processo do julgamento de Lula foi fortemente influenciado por forças políticas, as quais, acima de tudo, queriam tirá-lo das eleições de 2018).

A visita do ex-presidente ao pontífice levanta outras questões sobre a sociedade brasileira. Por um lado, parece que parte dos católicos conservadores, acompanhando setores igualmente conservadores do clero local, colocam-se contra Francisco e suas decisões pontifícias. Nestas condições, personagens, políticas e ideias conservadoras, sejam quais forem, despertam a simpatia de tais grupos sociais. Aqueles que por uma razão ou outra não têm o apoio das lideranças conservadoras, por defenderem outro tipo de visão da sociedade, são considerados inimigos – e Lula cristaliza esta situação –, são rechaçados e atacados.

Por outro lado, parece que para as alas menos progressistas da igreja católica brasileira a situação política e social do país não é o motivo principal de seu reacionarismo. O objetivo primordial de suas ações é fazer oposição à posição progressista do papa Francisco na condução da Igreja. O momentâneo alinhamento com muitas posições retrógadas do presente governo (Bolsonaro) é muito mais baseado em estratégia do que em convicções.

Parece que a situação política do país é o fator mais importante a provocar uma divisão entre católicos conservadores e progressistas. A posição do papa em relação a certos temas provavelmente provocaria pouca reação entre os fiéis, se o governo de Bolsonaro não tivesse uma agenda conservadora tão acentuada. Haverá no Brasil uma divisão definitiva entre grupos católicos conservadores e outros mais progressistas? Vale observar, por outro lado, que os grupos evangélicos também não estão apoiando Bolsonaro e seu governo em sua totalidade. 

Até que ponto os futuros governos do Brasil, sua ideologia e as condições sociais, influirão nesta divisão entre progressistas e conservadores? E se o próximo papa for alguém tão progressista quanto Francisco?   

(Imagem: retrato de G.C. Lichtenberg)

Economia não é mais dissociada de meio ambiente

sábado, 15 de fevereiro de 2020
"Não há homem, por mais hábil que seja, que conheça todo o mal que pratica."   -   La Rochefoucauld   -   Máximas e pensamentos 


O atual governo brasileiro tem uma visão arcaica da questão ambiental. A preservação dos recursos naturais é um dos temas mais importantes nas agendas dos países ricos, dos grandes grupos econômicos e das camadas mais instruídas da população mundial. Se a atual administração almeja efetiva inserção na economia global e pretende ser um dos grandes protagonistas nos fóruns de discussão – posição que o Brasil já teve em outros governos – deve mudar a maneira como trata da questão do meio ambiente.

A sociedade capitalista ocidental começou a se preocupar com os impactos ambientais de suas atividades econômicas a partir da década de 1960. Crescimento das cidades e das áreas agrícolas, aumento da população, início da industrialização, eram aspectos que, principalmente nos países desindustrializados (à época denominados subdesenvolvidos e em desenvolvimento) preocupavam cientistas e políticos. As economias dos países industrializados, por sua vez, também causavam forte impacto ao meio ambiente: poluição de rios por esgotos domésticos e industriais, contaminação de solos por substâncias da indústria química e petrolífera, falta de espaço para construção de novos aterros sanitários, poluição atmosférica, entre outros efeitos.

A ideia de que era preciso agir e diminuir a poluição começou a se impor nos países mais desenvolvidos. Nações europeias, Japão e os Estados Unidos iniciaram um processo de criação de leis e órgãos de controle, com apoio de políticos progressistas e grupos organizados da sociedade civil. Ao longo dos anos 1970 e 1980 o setor industrial e de serviços fizeram grandes investimentos, tornando seus processos, produtos e serviços menos poluentes e consumindo menos recursos – matérias primas, água, combustíveis e energia.

Nos anos 1980 a ciência descobriu uma outra consequência da poluição: o aquecimento da atmosfera terrestre, causado pelo efeito estufa, que se origina do acúmulo de gases na atmosfera. A maior e mais grave consequência do aumento da temperatura da atmosfera é a crise climática; uma escalada dos fenômenos climáticos extremos (secas prolongadas, chuvas torrenciais, furacões, nevascas, etc.).

Simplificando, pode-se dizer que o combate à poluição em todo o mundo tem duas fases (ou aspectos) principais: 1) a necessidade de diminuir os impactos imediatos ao ambiente, como a poluição dos recursos hídricos (água de subsolo, rios, lagos e oceanos), do solo e da atmosfera, eliminando ou diminuindo a poluição. 2) a imposição de reduzir e gradualmente eliminar a contaminação da atmosfera por emissões causadoras do efeito estufa (gás carbônico, metano, óxido nitroso, clorofluorcarbonos e ozônio, etc.). São duas etapas ou enfoques do mesmo processo, cujos impactos são conhecidos de todos, como a destruição da biodiversidade, dos recursos naturais e, em última instância, a piora da qualidade de vida dos humanos – ou, como dizem alguns, sua eventual eliminação.

Quanto mais desenvolvido o cuidado com o meio ambiente em uma sociedade, tanto mais ela está avançada na resolução dos aspectos da fase 1 citada acima, e foca principalmente na resposta à fase 2, a redução das emissões – o que é bem mais complexo. No Brasil de 2020 ainda temos dificuldades com os problemas imediatos de poluição (fase 1) e avançamos pouco nas medidas para eliminar as emissões de efeito estufa – notadamente pelas ações (ou falta delas) do atual governo.

Agora, depois do Fórum Econômico Mundial de Davos, realizado em janeiro de 2020, o governo brasileiro percebeu que os ricos de todo o mundo, os grandes grupos econômicos mundiais e os formadores de opinião, associam cada vez mais os investimentos com uma melhor atuação na preservação dos recursos naturais. Se quiser receber investimentos estrangeiros de monta, o governo terá que mudar a maneira como trata os recursos naturais.

(Imagens: pinturas de Maurice de Vlaminck)

Notas rápidas (homenagem a G. C. Lichtenberg)

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020



"Pergunta: O que é fácil e o que é difícil? Resposta: Formular perguntas como esta é fácil; respondê-las é difícil."

(G. C. Lichtenberg)


Esperando os investimentos e o crescimento
(ou será “esperando Godot”?)

  
Há quanto tempo estamos parados? Há quase sete anos, desde 2014! O número de desempregados não diminui significativamente e aumentam os subempregos – forma-se a classe do precariado – afora os milhões de profissionais que estão na total informalidade.

Nunca estivemos numa situação como esta. Dirão alguns que a crise é mundial, que o processo também acontece nos países desenvolvidos e, com mais força ainda, nos países menos desenvolvidos do que o Brasil. Fato é que nos países desenvolvidos, afora os Estados Unidos, o cidadão tem uma malha de proteção mais eficiente do que no Brasil.

Por aqui, a proteção que o trabalhador tem – ou tinha – está sendo eliminada, sob o argumento de que seu custo era muito alto para o patrão e o Estado. O principal mecanismo de proteção social do cidadão pobre – a última barreira contra a miséria total –, o Bolsa Família, foi implantado por um governo agora execrado como sendo “totalmente corrupto e esquerdista”.  

Fato é que depois de tantas reformas – Teto de Gastos, Reforma Trabalhista, Reforma da Previdência – ainda se argumenta de que  são necessárias as reformas Fiscal e a Administrativa. Mas quando voltarão o crescimento e os empregos? Teremos mais uma década perdida, como as de 1980 e 2010?

O quadro real é que o país continua parado, há anos. As promessas não foram cumpridas. Bolsa em alta, juros em baixa, adiantam pouco ou quase nada. O que gera crescimento, empregos, melhoria dos serviços públicos (ainda públicos!), consumo e bem estar social são investimentos.

Onde estão os investimentos? Quanto tempo se planeja esperar e manter o país em hibernação?

(Imagem: gravura representando G. C. Lichtenberg)

A cultura da "Terra plana"

sábado, 8 de fevereiro de 2020
" A cultura serve para dimensionar a ignorância alheia."   -   Millôr Fernandes   -   A Bíblia do caos


O conhecimento e a cultura estão sendo relegados a segundo e terceiro plano na atual administração do país. Há, ao que parece, um processo em andamento, com o objetivo de desestruturar o ensino público superior e nivelar a cultura brasileira por baixo.

Professores, principalmente os docentes das ciências humanas, são acusados de serem agentes de uma “ideologia de esquerda que domina as universidades”. As universidades, especialmente as públicas, são tidas como locais onde se consome (e produz) drogas, além de serem ponto de encontro para a prática do sexo grupal entre os alunos.  
  
A política educacional do governo está afetando também o Ensino Médio, prejudicado pela maneira desastrada como o ministério da Educação conduziu o último exame do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), realizado em janeiro de 2020.

Os livros didáticos também serão mudados. Os atualmente em uso, segundo o presidente, têm “muita coisa escrita”, “é preciso “suavizar”. Assim, em 2021, quando segundo Bolsonaro “todos os livros serão nossos, feitos por nós” (ou seja, de acordo com a ideologia que este governo sempre afirmou não ter), o material distribuído aos alunos terá a bandeira do Brasil na capa e o texto do hino nacional. Com essas simples medidas, parece que o governo descobriu a fórmula mágica para aumentar o interesse dos alunos pelo material didático.

Na área da cultura, a atuação do governo também mostra seu objetivo de imprimir um outro direcionamento à pasta. Bolsonaro, além das críticas, da intenção de “colocar filtros” e de declarações como “a cultura tem que estar de acordo com a maioria da população”, tem uma visão bastante peculiar da cultura – e acha que deve impingir esta visão ao resto dos brasileiros.

A Secretaria Especial de Cultura (nome que substitui o antigo Ministério da Cultura – MinC)) perdeu mais de 80 servidores, transferidos para outras áreas dentro do governo. A pouca importância que o tema da cultura tem para a atual administração é demonstrada pelo fato de que a Secretaria é subordinada ao Ministério do Turismo. Outro aspecto que denota o pouco valor que o governo dá à cultura, está no perfil de alguns dos integrantes nomeados para ocuparem cargos na Secretaria. Além disso, reflete a direção política que o governo quer imprimir à cultura:

- Roberto Alvim assumiu o cargo de Secretário em novembro, mas foi exonerado no mês seguinte por sua escandalosa defesa de ideias nazistas. O fato teve ampla repercussão nacional e internacional, tendo sido mais uma contribuição do governo para denegrir a imagem do país no exterior. Foi substituído pela atriz global Regina Duarte;

- Sérgio Nascimento Camargo, foi empossado no cargo de presidente da Fundação Palmares. “Negro de direita, contrário ao vitimismo e ao politicamente correto”, como se definia, fez várias declarações que justificadamente escandalizaram vários segmentos da sociedade, principalmente os negros. Chegou a afirmar que a escravidão “foi benéfica para os descendentes”, que não existe “racismo real” e que o movimento negro precisa ser extinto. Foi exonerado depois de alguns dias no cargo;

- Camilo Calandreli, formado em música pela USP, é cristão conservador e seguidor de Olavo de Carvalho. Já acusou a Lei Rouanet de “marxismo cultural”. Substituiu Katiane Gouvêa, que depois de duas semanas no cargo foi exonerada por censurar o filme “A vida invisível”;

- Janícia Ribeiro Silva, conhecida como reverenda Jane Silva, já estava à frente da área da Diversidade Cultural na Secretaria. Foi convidada pela amiga Regina Duarte (que assumiu o cargo de secretária da Cultura) a ocupar o cargo de secretária Adjunta. É pastora e defensora da transferência da embaixada brasileira para Jerusalém;

- Dante Mantovani, que substituiu Miguel Angelo Oronoz Proença no comando da Fundação Nacional das Artes (Funarte). Dante é formado em música, especialista em Filosofia Política e Jurídica e Mestre em Linguística. Também é discípulo de Olavo de Carvalho. Em seu canal do Youtube, o novo presidente da Funarte afirma que “o rock ativa as drogas, que ativam o sexo livre, que ativa a indústria do aborto, que ativa o satanismo. O próprio John Lennon disse que fez um pacto com o diabo.” Sobre o grupo inglês The Beatles, Mantovani disse que “eles precisavam destruir as famílias americanas porque eram a sustentação do capitalismo.”

Uma forte influência no governo de Bolsonaro, entre os filhos do presidente e ministros, é a do escritor e astrólogo Olavo de Carvalho – que entre outras coisas é terraplanista, acredita que fetos abortados são usados como adoçante, que o filósofo Theodor Adorno escreveu as letras das músicas dos Beatles, que o vírus Corona foi criado pela Microsoft, etc. Seus discípulos são chamados de “olavetes” e são, entre outras coisas, contra a globalização e não acreditam nas mudanças climáticas ou em sua origem antrópica. Na mesma linha negacionista, a pastora Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, por exemplo, declarou que “a igreja evangélica perdeu espaço na história. Nós perdemos o espaço na ciência quando nós deixamos a Teoria da Evolução entrar nas escolas”


Ainda não é claro o rumo que deverá tomar a educação e a cultura no Brasil durante este governo. Uma coisa, porém, é certa: a continuar este tipo de influência, estaremos caminhando rapidamente para o passado. Enquanto o mundo desenvolvido deixou há muito de problematizar filigranas culturais, religiosas ou de costumes, o Brasil – que detinha um bom nível no ensino superior, na pesquisa e na cultura em geral, comparado a outras nações em desenvolvimento – se transformará em uma nação retrógada, avessa ao progresso e à inovação. Uma sociedade cujos principais temas culturais serão “a Terra plana”, o “marxismo cultural” e a “ideologia de gênero”.   

 (Imagens: terra plana, ET, lobisomem e mula sem cabeça)

Ciclos da natureza

sábado, 1 de fevereiro de 2020
"A coisa que mais deve ser desenvolvida é a própria vida. Nossa vida não deveria apenas ir arrastando-se - uma coisa boba atrás da outra -, porém deveria mover-se propositadamente adiante, em direção a um objetivo final e realizador."   -   Richard Schoch   -   A história da (in)felicidade 


Tudo na natureza passa por ciclos; fenômenos, comportamentos, atividades, processos, que se repetem ao longo de um período de tempo. Horas, dias, meses, anos, décadas e séculos ou períodos cronológicos muito maiores. O mais conhecido é o ciclo circadiano; um processo que afeta o ciclo biológico dos organismos durante um período de 24 horas, influenciado principalmente pela variação da luz do dia e da noite. O ciclo também sofre interferência das marés, das fases lunares, correntes eólicas e marítimas. A dinâmica circadiana atua de diferentes maneiras sobre plantas e animais, microrganismos e seres humanos, mostrando que as influências dos astros, do clima, da geologia e da ecologia são maiores à vida do que pensa o senso comum.

A variação das estações ao longo do ano exerce uma importante influência na vida do planeta, condicionando o desenvolvimento dos seres vivos desde sua origem, há cerca de 3,8 bilhões de anos. Estudos recentes realizados em importantes universidades mostram que o organismo humano sofre variações em sua estrutura genética ao longo das quatro estações. A Dra. Silvia Sánchez Ramón, chefe da Unidade de Imunologia Clínica do hospital Ruber Internacional de Madrid, afirma que 23% do genoma humano oscila durante as estações do ano e que ocorrem mudanças significativas em mais de 4 mil genes dos glóbulos brancos do sangue e em células do tecido adiposo. Isto significa, conforme a especialista, que o organismo está sujeito a doenças específicas, conforme as estações do ano.

Os ciclos glaciais e interglaciais, aos quais o planeta está sujeito através da sucessão de períodos frios, quando parte da água dos oceanos está congelada, e períodos mais quentes, durante os quais os oceanos estão com pouco ou sem congelamento algum, têm se sucedido ao longo da história geológica. Segundo dados mais recentes da ciência, a Terra passou por seis grandes eras do gelo ao longo de sua história. A mais recente, teve início há cerca de 2,5 milhões de anos, no período Quaternário, e se estendeu até aproximadamente 10 mil anos atrás, quando teve início o período geológico do Holoceno. Interessante é que devido ao imenso impacto das atividades humanas ao clima do planeta durante estes últimos dez milênios – basta lembrar da invenção da agricultura, das cidades, das máquinas –, muitos cientistas pretendem mudar o nome deste período de Holoceno para Antropoceno (antropo em grego significa homem). 


Em grande parte dos fenômenos do mundo físico, podem ser identificados processos cíclicos: os dias, as estações, as marés, as fases da Lua. A vida, por sua vez se adaptou a estas constantes mudanças e repetições. Através da floração, produção de frutos e perda das folhas, no caso das plantas; pelas migrações, acasalamento e cuidado com os filhotes, no caso dos animais. Até o universo, de acordo com as modernas teorias da astronomia, tem seu período de expansão e, depois de centenas de bilhões de anos, ocorre sua retração – para que depois o processo se repita.

A humanidade está interferindo nos ciclos da natureza, com suas agressivas atividades exploradoras dos recursos naturais. Corremos o risco de definitivamente interrompermos ciclos importantes como o da água, dos nutrientes do solo, do clima, das migrações, da reprodução de espécies, entre muitos outros. No extremo, podemos interromper ciclos vitais à sobrevivência de nossa espécie.

(Imagens: pinturas de François Morellet)