Como um castelo de cartas

sábado, 25 de abril de 2020
"Pois, quem pode saber o que é bom para o homem na vida, durante os dias de sua vã existência, que ele atravessa como uma sombra? Quem poderá dizer ao homem o que acontecerá depois dele debaixo do sol?"   -   Eclesiastes, 6:12


A vida grupal humana é organizada por diferentes tipos de acordos. Desde aqueles relacionados ao comportamento de seus integrantes em relação a si e aos demais membros da comunidade, até os diferentes tipos de conhecimentos transmitidos e compartilhados. Tais acordos e ajustes de regras e saberes fazem com que as sociedade humanas possam se estabelecer e continuar existindo. Mesmo nos grupos humanos que ainda mantêm um padrão de vida material primitivo, como os povos originais da América do Sul ou da Nova Guiné, existem regras de diferentes tipos e, muitas vezes, bastante elaboradas, tanto no aspecto comportamental quanto cultural-tecnológico.

Em comparação com os grupos sociais tradicionais, a sociedade contemporânea globalizada é mais complexa, com número muito superior de regras e saberes, parte deles diferentes em cada país, sociedade ou grupo cultural. Olhando a sociedade global, encontramos uma variedade e complexidade de padrões de comportamento; leis, normas, regras, procedimentos, acordos e conhecimentos variados, para ordenar e organizar aspectos sociais, econômicos, políticos, jurídicos e culturais das distintas sociedades. Uma estrutura invisível de princípios e saberes que fazem com que as sociedades funcionem.

A grosso modo, podemos admitir que, pelo menos desde a 2ª Grande Guerra (1939-1945), a sociedade global não vem enfrentando desafios que possam coloca-la em perigo, como um todo. A Guerra Fria, as dezenas de conflitos localizados – no Oriente Médio, no Sudeste Asiático, na região dos Balcãs –, os choques do petróleo (1956, 1973, 1979, 1991) e a introdução de novas tecnologias (computadores, internet, etc.) não abalaram ou provocaram mudanças repentinas em toda a orbis. Apesar dos problemas recorrentes que, apesar de todo o avanço político e tecnológico, ainda afetam parte significativa da humanidade – a má distribuição de renda, a fome e a falta de acesso à tecnologia – existe, de certa forma, um equilíbrio e um lento avanço, apesar de percalços geograficamente localizados. 

Este quadro, no entanto, mudou radicalmente nos últimos meses. “Na segunda década do século XXI...” – desta forma é que este período provavelmente será lembrado na história – surge a pandemia do vírus covid-19, o coronavírus. Um fato inédito em toda a história humana, já que: a) nunca, em toda a história, a humanidade esteve tão ligada e interdependente, seja em termos econômicos, políticos e culturais-tecnológicos; e b) em nenhuma época anterior informações, ideias, mercadorias, pessoas – e pessoas doentes – puderam se deslocar de um país ou continente para outro tão rapidamente.

Graças à globalização, em seus diversos aspectos, as fronteiras políticas, econômicas, tecnológicas e culturais se tornaram mais tênues ao longo dos últimos trinta e poucos anos. Um acontecimento que afeta uma região ou nação pode, direta ou indiretamente, afetar territórios adjacentes, ou aqueles com as quais se tenha relações econômicas, políticas ou religiosas. O isolamento de países não é mais possível; o mundo se transformou, para o bem ou para o mal, em uma imensa teia de relações de todos os tipos.

O vírus corona se dissemina facilmente, de inúmeras maneiras, mas principalmente pelo contato humano. Assim, afeta este gigantesco e dinâmico sistema de relações em um de seus aspectos básicos: o contato entre pessoas; seja presencialmente ou através da manipulação de objetos que serão utilizados por terceiros. O ponto é que grande partes das atividades humanas básicas, principalmente a produção e a distribuição das mais diversas mercadorias (alimentos, medicamentos, bens de consumo, etc), sem as quais a humanidade não pode sobreviver, só podem ser feitas por pessoas; pessoas em contato com outras. Somente uma diminuta parte do processo produção/distribuição é automatizado.

É neste aspecto que esta pequena “coisa”, o vírus, coloca em cheque todo o sistema mundial (englobando aí todo tipo de atividade humana possível e que tenha impacto global). Trava-se em grande parte a oferta e a demanda de produtos e serviços, a base de funcionamento do sistema capitalista global. Mais do que guerras, carestias, secas, terremotos, explosões vulcânicas, maremotos, epidemias localizadas, o coronavírus afeta o sistema de uma maneira muito mais profunda e ampla. Imune (aparentemente) às condições ambientais nas quais vivem os humanos, o vírus transmite-se através de um processo que a vida desenvolveu há bilhões de anos: a respiração. Desde as mais primitivas bactérias aeróbicas até os humanos, todos nós, seres vivos, precisamos incorporar oxigênio e eliminar gás carbônico pela respiração. E é durante esse processo que o vírus entra nos organismos humanos.  

A humanidade, com certeza, sobreviverá à pandemia. Mas a que custo? Até que ponto todo o sistema de produção e distribuição será afetado? Centenas de milhões de desempregados, dezenas de milhões de empresas sem condições de continuar produzindo e vendendo. Será possível que a vasta e complexa organização econômica, o sistema capitalista mundial da forma como o conhecemos, se desestruturará em seus diversos aspectos, vindo a desabar como um castelo de cartas? 

(Imagens: pinturas de John Nash)

  

Notas rápidas (homenagem a G. C. Lichtenberg)

quarta-feira, 22 de abril de 2020



"Onde antes estavam as fronteiras da ciência, agora está o centro."

(G. C. Lichtenberg)




Tese da privatização perde força


A crise econômica gerada pelo coronavírus já fez as suas primeiras vítimas. Além das dezenas de milhares de trabalhadores demitidos e dos que tiveram salários reduzidos, já são milhares as pequenas e médias empresas em situação de insolvência. As circunstâncias só não são mais caóticas, porque o Estado aportou recursos financeiros para garantir a sobrevivência mínima de trabalhadores e empresários.

Vários setores da economia estão passando por dificuldades financeiras e reclamam por ajuda do governo. No setor de saneamento em todo o pais, por exemplo, a inadimplência dos clientes já chega aos 25% em média. Outros segmentos, como o bancário e o de energia elétrica, começam a se manifestar, também solicitando ajuda. Novamente, vemos o setor privado bater às portas do governo, aguardando apoio financeiro. Repete-se o que sempre ocorreu todas as vezes em que crises afetam a economia.  

No entanto, o discurso neoliberal que caracteriza a ideologia do atual governo e Congresso, sempre foi o do “estado mínimo”, da pouca ou nenhuma intervenção do Estado na economia. Ainda recentemente, o Congresso aprovou legislação que permite a privatização no setor de saneamento. 

Na Europa o processo foi diferente. Áreas da infraestrutura, como tratamento de água e esgoto na Inglaterra e Alemanha, haviam sido transferidos para o setor privado, mas foram reincorporados ao setor público.

Como faríamos no Brasil, se não tivéssemos o Sistema Único de Saúde (SUS) e se gradualmente a estrutura tivesse sido transferida ao setor privado, como planejava o atual governo? No caso da saúde temos dois exemplos extremos: a Alemanha e os Estados Unidos. Na Alemanha, onde o sistema de saúde é público, a pandemia do coronavírus está sendo enfrentada com bastante êxito, com 4.586 mortes até o dia 19/04/2020. Nos Estados Unidos, que não possuem um sistema de saúde público, as mortes chegaram a 165.636, até a mesma data. Evidentemente existem outros fatores em jogo neste quadro, mas a existência de um sistema de saúde operado pelo Estado tem sido estratégico no caso da pandemia.

Tudo indica que a pandemia do coronavírus forçará estados, eleitores, políticos e especialistas a rediscutir a questão da privatização de diversos serviços – principalmente a infraestrutura. É bem provável, que por um longo tempo, as teses neoliberais percam o apoio que vinham tendo.

(Imagem: G. C. Lichtenberg)

O que aprenderemos com o coronavírus?

sábado, 18 de abril de 2020
"Toda uma infinidade transcorreu quando ainda não existíamos: mas isso não nos aflige de modo algum. Ao contrário, achamos difícil e até insuportável que o incidente momentâneo de uma existência efêmera deva ser seguido por uma segunda eternidade, na qual já não existiremos."   -   Arthur Schopenhauer   -   Sobre a morte


Em plena pandemia do coronavírus fala-se pouco da questão ambiental. O aumento de casos da doença, as medidas profiláticas, os possíveis tratamentos, ocupam quase que 80% do tempo dos telejornais. A mídia impressa dá mais destaque aos aspectos políticos da crise; a rivalidade entre os Estados Unidos e a China, os bastidores da Organização Mundial de Saúde (OMS) as intrigas palacianas em Brasília...

No entanto, é sabido que o surgimento do covid-19, o coronavírus, está ligado às questões ambientais, assim como outras epidemias viróticas que surgiram ao longo dos últimos trinta anos. Simplificando bastante a questão, podemos dizer que novas cepas viróticas ou bacteriológicas aparecem em condições nas quais convivem muitas espécies. Na Ásia, onde este é o caso em muitas localidades, coexistem animais selvagens e domésticos junto com humanos; seja na forma de criação ou no abate e venda das carnes.

Neste ambiente, geralmente pouco higiênico, ocorre acontecer – apensar de ser um evento muito raro – de um vírus de uma espécie selvagem se adaptar ao organismo de um animal doméstico e, posteriormente, ao do homem. O vírus não provoca mal nenhum ao seu hospedeiro selvagem e usualmente também não ao animal doméstico. No entanto, quando “salta” para a espécie humana, o vírus pode provocar um grande estrago. É o caso do covid-19, da SARS (surgida em 2002) e do Mers (síndrome respiratória do Oriente Médio, surgida em 2012).

As epidemias de doenças vem acompanhando a humanidade há milhares de anos. Os registros mais acurados cobrem os últimos 2 mil anos. Cientistas estimam que ao longo dos últimos 1.500 anos morreram pelo menos 3 bilhões de pessoas por doenças originadas por vírus ou bactérias. Uma das primeiras pandemias registradas foi a praga de Justiniano, nome do imperador romano da época. Vinda da África, a doença provocada por uma bactéria que vivia na pulga dos ratos, atravessou o Oriente Médio e chegou à Europa, matando cerca de 30 milhões de pessoas. A Peste Negra, que durou de 1346 a 1353, teve origem na Criméia e provavelmente foi disseminada pelos navios mercantes italianos. Da Europa a pandemia se espalhou para o Oriente Médio e a África. Segundo historiadores, cerca de 65 milhões de pessoas faleceram em razão da doença. Quase um terço da população europeia foi dizimada.

Na Idade Média europeia, devido à falta de saneamento nas cidades, eram comuns os surtos de hepatite, disenteria amebiana, cólera, leptospirose e febre tifoide, que ceifavam dezenas de milhares de vidas anualmente, principalmente entre as crianças. A partir do século XVI ocorrem diversas pandemias em todo o mundo, cuja dispersão era facilitada com a melhoria das condições de navegação. Com isso, sarampo e resfriados comuns mataram milhões de indígenas nas Américas. Ao mesmo tempo o tifo e o cólera continuavam a se manifestar periodicamente nas grandes cidades europeias. Para os interessados no tema, há uma lista bastante completa das principais epidemias que assolaram o mundo em (https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_epidemias).

As epidemias e pandemias nunca ocorrem por acaso. Não são “castigo de Deus” nem “vingança da natureza”. Estes fenômenos fatídicos para a humanidade (e propícios para certas bactérias e vírus) ocorrem quando o equilíbrio de um ambiente natural é perturbado, através, por exemplo, da derrubada da vegetação original, do aterramento de pântanos, da poluição de cursos d ‘água. Cabe assinalar que cientistas de diversas áreas estranham o fato, de que apesar do desmatamento e o avanço de atividades predatórias sobre a floresta amazônica, ainda não tenham sido descobertos novos vírus ou bactérias letais na região, como o ebola e o HIV, na África, e o vírus Nipah, transmitido por morcegos, no Sudeste asiático.   

Outra forma de surgimento de pandemias é quando espécies completamente diferentes e oriundas dos ecossistemas mais diversos são restritas ao mesmo ambiente limitado. Em muitas regiões do mundo – não só na Ásia – convivem animais de criação com espécies selvagens, geralmente aves. Nestas condições também há ambiente propício para que cepas de vírus sofram mutações e nesse processo possam “saltar” de uma espécie para outra, até chegar a nós, como o coronavírus.

Uma das principais lições a serem aprendidas com a pandemia – é provável que passemos por outras ao longo das próximas décadas – é que precisamos limitar ao máximo nossas intervenções em ambientes naturais. As terras agricultáveis atualmente disponíveis, são suficientes para que a humanidade possa se alimentar, desde que haja uma distribuição equânime dos produtos agrícolas. Nos poucos países onde as áreas férteis não são suficientes para produzir colheitas abundantes, será necessário implantar programas de recuperação dos solos.

Também não será recomendável, mesmo atendendo costumes e práticas culturais milenares, alimentar-se de espécies selvagens. Exceção deverá ser feita às populações e culturas que ainda vivem no ambiente natural, como os povos originais das Américas, África, Ásia e Oceania. Outro aspecto bastante importante, será criar melhores condições de moradia e saneamento para as populações pobres de todos os continentes, cuja grande maioria ainda se ressente de suprimento de água potável de qualidade, esgotamento sanitário e condições de moradia decentes.  

Assim vemos que há muito que aprender com a pandemia do coronavírus. Não será esperar demais de um pequeno vírus, formado por material genético envolto em proteínas, sobre o qual ainda não podemos dizer se é algo vivo ou não?


(Imagens: pinturas de William Coldstream)
 

Notas rápidas (homenagem a G. C. Lichtenberg)

quarta-feira, 15 de abril de 2020




"Por mais que nelas se façam pregações, as igreja continuam precisando de para-raios."

(G. C. Lichtenberg) 




Narrativas políticas na era da pós-verdade


A batalha pela hegemonia do discurso político é constante. Todas as tendências procuram atrair a atenção do eleitor, cada uma com seu discurso. Em tempos de pós-verdade, o que vale não é fundamentar a narrativa em fatos e argumentos lógicos; procura-se ganhar a atenção e a concordância do receptor da mensagem apelando para sentimentos e crenças.

Constroem-se convicções através da repetição, sob diversas formas, da mesma mensagem, do mesmo conteúdo ideológico. Para provar uma tese que normalmente seria pouco aceitável, como por exemplo a intervenção militar no governo, apresentam-se informações sobre a “corrupção generalizada na política”. Este tipo de argumento apela diretamente ao sentimento de parte da população, que nos últimos anos foi soterrada por reportagens e dados sobre a corrupção no país, em suas diversas facetas.

Não que ela não tivesse existido ou não exista mais, mas é bastante provável que tenha diminuído. Além disso, a corrupção existe em todas as atividades humanas; na política como nos negócios, na religião como no futebol, nos esportes olímpicos como nas relações entre os países, na medicina como na polícia... Seria impossível intervir igualmente em todas estas áreas da atividade humana.

É difícil encontrar qualquer iniciativa onde, de uma forma ou de outra, não exista alguém tentando obter algum tipo de vantagem. Não só por ganância, o apego doentio ao ganho, mas também por sentimentos de inferioridade, vingança ou vontade de dominar sobre outras pessoas. Há situações, nas quais indivíduos ou grupos se envolvem em práticas ilícitas, convencidos de que esta atividade trará posterior benefício a muitos. Enfim, as possibilidades de atos humanos possíveis, abarcados na classificação de “corrupção”, são inúmeras. Não se trata somente de surrupiar recursos do Estado.

Assim, sob o argumento de que o país “não consegue se livrar dos políticos corruptos”, tese esta muitas vezes avalizada por depoimentos de supostos militares e magistrados, é defendida a ideia da “intervenção militar”. Detalhe: não se trata de um golpe político, segundo seus defensores. Planeja-se “apenas” a destituição de todos os políticos e a convocação de novas eleições no período de três meses (pergunto se a cassação de políticos incluiria também o poder Executivo ou se limitaria ao Legislativo?).

A aceitação desta narrativa, felizmente, está limitada a pequenos grupos, geralmente com pouco ou nenhum conhecimento da política. Trata-se, em muitos casos, de uma estratégia de grupos radicais, de modo a manter sua militância estimulada e marcar presença perante outras facções.  

(Imagem: G. C. Lichtenberg) 

Recuperar mentes e a história

sábado, 11 de abril de 2020

"Spiegel (semanário alemão): E quem ocupará agora o lugar da filosofia?
Heidegger (filósofo alemão do século XX): A cibernética"
Frank J. Tipler   -   A física da imortalidade


Alguns cientistas e engenheiros da área da inteligência artificial, defendem a possibilidade de que em algumas década a tecnologia de processamentos de dados será tão avançada, capaz de captar e fixar toda a memória de um cérebro humano e armazená-la em dispositivos digitais. A Universidade de Oxford e o Google (Google Brain) estão investindo nestas pesquisas já há alguns anos. O diretor do projeto Google Brain, Ray Kurzweil, cientista e inventor americano, disse em 2015 que ainda espera estar vivo para ver este projeto concretizado. Outro grupo de pesquisadores, liderado pelo empresário e cientista russo Dmitri Itzkov, espera ser capaz de fazer o back up de mentes humanas na nuvem (rede global de servidores que armazena dados) até 2045.

Baseados nestas ousadas previsões, podemos levantar algumas questões. Supondo que seja possível correlacionar os dados dos back ups das mentes dos habitantes de uma pequena cidade, seria possível reconstruir, em detalhes, parte da história dessa cidade? Se juntássemos os back ups das mentes de milhões de pessoas que viveram em determinado período histórico, haveria a possibilidade de reconstruir, com detalhes, maiores que os atuais, este período da história?

Só o tempo nos dará as respostas para estas e outras questões. Se tal avanço científico realmente ocorrer, será possível reconstruir, em seus mínimos detalhes, os períodos mais recente da história humana – pelo menos na visão particular dos indivíduos que viveram durante este período.


Outro cientista vai ainda mais longe. Frank J. Tipler é físico e professor na Universidade do Texas. Em um de seus livros A física da imortalidade (The physics of immortality) o autor afirma que em um futuro muito remoto todas as pessoas poderão ser, digamos, ressuscitadas. Com a uma capacidade computacional inimaginável em nossos dias, os cientistas, segundo Tipler, poderão emular todos os universos possíveis e recuperar todas as memórias de todo e qualquer ser humano que jamais viveu. Trata-se, sem dúvida, de uma teoria bastante ambiciosa, talvez fantástica. Tanto que, por suas ligações com crenças religiosas, a teoria de Tipler foi classificada por muitos físicos com anti-científica.

Além de tantas perguntas, as teorias de Kurzweil e de Tipler levantam temas como a constituição da mente, do tempo, as possibilidades de desenvolvimento da ciência e da tecnologia, a liberdade individual, o futuro da humanidade, entre outras. 

(Imagens: radiação de fundo do universo)

Notas rápidas (homenagem a G. C. Lichtenberg)

quarta-feira, 8 de abril de 2020



"Deus criou o homem segundo sua imagem. Possivelmente isto significa: o homem criou Deus segundo a sua."

(G. C. Lichtenberg)



E depois do coronavírus, Brasil?


A toda hora se escuta falar da “volta à normalidade”, depois que passar a crise do coronavírus. Muitos provavelmente esperam que em alguns meses suas vidas voltem a ser exatamente do jeito que eram. Uma crise econômica, talvez, mas com rápida recuperação e retorno à antiga rotina.

O estrago do corona vírus será maior do que muitos imaginam. Economistas já preveem recessão na economia mundial e provavelmente lenta recuperação. Falências e desemprego, com estados fazendo o possível para ajudar a colocar a atividade econômica novamente em marcha em seus países.

Em consequência desta situação virão muitas mudanças, como as que abordamos recentemente em artigo publicado neste blogue (http://ricardorose.blogspot.com/2020/04/coronavirus-tempos-interessantes.html).

O capitalismo, provavelmente, mais uma vez se adaptará às novas condições e passará por mudanças. A começar por uma grande ironia da história, que parece se desenhar no horizonte: com a crise econômica nos Estados Unidos provocada pelo coronavírus, a maior economia do sistema capitalista será a de uma país que ainda se diz comunista, a China.

Qual será o papel do Brasil neste nesta nova disposição de forças no mundo? O atual governo começou como grande aliado dos Estados Unidos. O presidente Bolsonaro fez quatro visitas a Trump, desde que assumiu o mandato em janeiro de 2019. Para poder entrar na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) o governo brasileiro atendeu a mais de 100 requisitos impostos – alguns beneficiando diretamente a economia americana.

Por outro lado, é necessário lembrar que o maior parceiro comercial do Brasil ainda continua sendo a China – pelo menos até pouco antes da crise provocada pela pandemia. Nas últimas semanas, no entanto, são cada vez mais frequentes os ataques à China por parte de membros da família Bolsonaro e de ministérios do governo brasileiro. Nas redes sociais circulam fake news, estranhamente com o mesmo discurso de ataque à China e sua cultura. 

Depois de mais uma ofensa feita àquele país, desta vez pelo Ministro da Educação, Abraham Weintraub, nota divulgada pela embaixada da China nas redes sociais diz o seguinte: "deliberadamente elaboradas, tais declarações são completamente absurdas e desprezíveis, que têm cunho fortemente racista e objetivos indizíveis, tendo causado influências negativas no desenvolvimento saudável das relações bilaterais China-Brasil."

Será que estes senhores ainda não se deram conta para onde caminha a economia mundial? Qual o papel este senhores imaginam, terá o Brasil na nova ordem mundial do período pós-coronavirus? 

A recuperação da economia brasileira não será tarefa fácil. Pior ainda, se associado a estas dificuldades estivermos também com problemas de relacionamento com nosso maior cliente.  

(Imagem: G. C. Lichtenberg)

Coronavírus: tempos interessantes

sábado, 4 de abril de 2020
"Os seres humanos têm maior probabilidade de encontrar maneiras de viver bem se não passarem a vida querendo ser felizes."   -   John Gray   -   O silêncio dos animais


“Vivemos em tempos interessantes!” A afirmação tem se tonado comum nas últimas décadas, em todo o mundo. A alteração da rotina diária, seja por alguma mudança na política, economia ou tecnologia, logo é classificada como sendo tempos interessantes. Alguns, como o escritor norueguês Karl Knausgärd, durante a FIip (Festa Literária Internacional de Paraty) de 2016, chegou a dizer que “vivemos tempos interessantes e preocupantes”, referindo-se ao aumento do populismo na política dos Estados Unidos e da Europa.

Quando jornalistas, historiadores e filósofos dizem que vivemos em tempos interessantes, querem geralmente dizer que está ocorrendo algo de extraordinário, que aparentemente faz com que a atual fase da história seja diferente das anteriores. Por trás deste raciocínio também pode estar a ideia de que o ciclo presente, por ser distinto de outros passados, poderá inaugurar uma nova fase na história humana, com outras características.

Nada é estático, tudo está em constante mudança, já dizia o velho Heráclito – mais ainda a história humana. Convulsões sociais, guerras, crises econômicas, políticas e culturais, ocasionam mudanças na maneira como sociedades e civilizações atuam, funcionam. Um fator climático, como uma seca prolongada, pode comprometer a produção de alimentos de uma sociedade. A carestia consequente, acompanhada por saques e revoltas, levaria à guerra civil, precipitando o colapso da economia e da ordem política, o que também alteraria diversos aspectos culturais da sociedade. Este esquema de sucessão de acontecimentos pôde ser observado em sociedades de todos os tempos; egípcios, babilônios, gregos, romanos, árabes e nas nações modernas.  

Diversos fatores, nos mostra o estudo da história, podem provocar mudanças no status quo das sociedades. A introdução de novas tecnologias – o cavalo na Antiguidade, a adaptação da vela latina às caravelas, o uso da força motriz do vapor na indústria e no transporte, o uso bélico e pacífico da energia nuclear – podem tanto ser consequências como causas de acontecimentos históricos. Em sendo a história um processo dialético complexo, no qual acontecimentos, fatores ou condições influenciam outros – paralelos ou sequentes – dependerá do foco de estudo do especialista estabelecer o que será considerado origem ou decorrência de um fato. 

A introdução de máquinas a vapor, por exemplo, é o princípio de uma longa série de posteriores descobertas e invenções no sistema de produção capitalista. Por outro lado, a possibilidade da aplicação do vapor à geração de trabalho, é decorrência de diversos experimentos científicos e desenvolvimentos tecnológicos, ocorridos anteriormente, no século XVII e início do XVIII. O uso bélico da energia nuclear – inaugurado com o bombardeio das cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki ao final da Segunda Grande Guerra – teve origem nas pesquisas científicas independentes de Rutherford, Fermi e Hahn, nas primeiras décadas do século XX, e da criação do projeto Manhattan em 1942. No entanto, uma das principais decorrências do uso da energia atômica para fins militares, foi o acontecimento da Guerra Fria, período de disputas político-militares estratégicas e conflitos indiretos, entre as duas principais potências nucleares em toda a segunda metade do século XX, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e os Estados Unidos da América.

Sendo um processo dialético complexo, a história não funciona somente em um esquema linear, do tipo causa e efeito. Há acontecimentos ao longo do processo histórico, mais tarde destacados como “fatos históricos”, cujas aparentes causas ou origens são difíceis de determinar e, muitas vezes, comprovadamente aleatórios. Um desses fatos históricos é descrito pelo filósofo inglês John Gray em sua obra O silêncio dos animais. Trata-se do assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, presumido herdeiro do Império Austro-Húngaro. O crime, sabemos, foi o fato indutor do início da Primeira Grande Guerra. Escreve Gray:

“O fato desencadeador da catástrofe foi um assassinato que podia perfeitamente não ter acontecido. O nacionalista sérvio Gavrilo Princip, que matou a tiros Francisco Ferdinando em Sarajevo no dia 28 de junho de 1914, fazia parte de uma gangue que tentara mandar o arquiduque pelos ares pouco depois das dez horas naquela manhã. A tentativa fracassou, Francisco Ferdinando a descartou com uma risada e o comboio seguiu na direção do compromisso oficial. Encerrado o evento, ele voltou ao carro, que partiu com os outros do comboio. Mas o motorista errou o caminho, o carro ficou retido e Princip, que após o fracasso do atentado a bomba tinha ido a uma delicatessen próxima, conseguiu atirar no arquiduque a curta distância. Se o motorista não tivesse feito o desvio, se o automóvel não tivesse ficado retido ou se Princip não tivesse ido à delicatessen, o assassinato não teria ocorrido. Uma vez ocorrido, tudo se seguiu.” (Gray, pag 31)


Se tão pueris e contingentes acontecimentos podem levar à eclosão de uma guerra mundial – a qual foi a causadora de tantos fatos na história sequente – imagine-se as consequências do aparecimento da pandemia do coronavírus. Um evento raro, inesperado, de grandes proporções e do qual só conheceremos todas as consequências depois que tiver passado – um “cisne negro” diria provavelmente o cientista Nassim Taleb, autor da ideia em A lógica do cisne negro (The black swan, 2007).    

O objetivo principal deste texto é discutir o surgimento da epidemia do vírus corona, batizado de Covid-19 e apresentar algumas ideias sobre as principais consequências históricas desta epidemia. Sigo as análises e depoimentos de especialistas que se manifestaram sobre o tema nas últimas semanas. Neste ensaio tentaremos mostrar que vivemos – agora sem dúvida alguma – tempos interessantes. O aparecimento da pandemia provocará mudanças em toda a nossa civilização mundial. Suspeito que os dias atuais ficarão definitivamente na memória de toda a humanidade e mais tarde na história.

O vírus Covid 19, causador da síndrome respiratória aguda grave (SARS-Cov-2), surgiu na China, na cidade de Wuhan, capital da província de Hubei. A moléstia se manifestou provavelmente entre os meses de novembro ou dezembro de 2019. Existem, no entanto, relatos não confirmados de que casos de contaminação com o mesmo vírus foram identificados em outras regiões da China em meses anteriores.

É certo que o vírus tem origem zoonótica, apesar de alguns rumores de que a cepa deste coronavírus tenha sido criada em laboratórios; nos Estados Unidos, na China ou em Israel – três versões ao gosto do freguês. Em situações como esta é comum surgirem as teorias da conspiração e, mais recentemente, as fake news, claramente com objetivos políticos.

De início, o governo chinês tentou esconder o fato. Foi um oftalmologista de Wuhan, Li Wenliang, quem em dezembro de 2019 chamou a atenção do público para uma estranha epidemia de pneumonia, que estava afetando várias pessoas da cidade. Wenliang colocou a informação nas redes sociais e foi censurado pelas autoridades. Semanas depois, a doença já tinha se alastrado e o governo decidiu intervir. As autoridades sanitárias da China colocaram sob quarentena a região de Wuhan e dezenas de milhões de pessoas de outras regiões. A reclusão, os testes para identificar os contaminados e o isolamento total de certas áreas, fizeram com que o avanço da doença fosse lentamente contido, ao longo de pouco mais de três meses. Li Wenliang, agora um herói mundial, transformou-se também em vítima da doença, falecendo em 7 de fevereiro de 2020.

Da China o vírus se transmitiu rapidamente para outros países asiáticos e para a Europa, onde por falhas nos sistemas de prevenção de epidemias dos diversos países, a moléstia se alastrou. A Itália foi até agora o país mais afetado pela doença, seguida pela Espanha e a França. Nos Estados Unidos, o avanço do coronavírus foi tratado inicialmente com desdém pelo presidente Donald Trump. Nos últimos dias, Trump e quase todos os líderes mundiais reconheceram a seriedade da situação.  

Desde seu início, até a data e hora em que escrevemos este artigo, 31 de março de 2020, o Covid-19 já contaminou 756.376 pessoas, das quais 36.081 faleceram. Os países que apresentam maior número de infectados, são:

País                                  Número de casos                  Número de mortes 
Estados Unidos                     161.807                                              2.978
Itália                                       101.739                                            11.591
Espanha                                 87.956                                               7.716
China                                      82.198                                               3.308
Alemanha                               66.885                                                  645
França                                    45.077                                               3.964

O Brasil registra até este momento 4.579 casos constatados e 159 mortes. As previsões dos especialistas são de que estes números deverão continuar crescendo exponencialmente, pelo menos nos próximos 30 dias.

Em 11 de março de 2020 a epidemia do coronavírus foi declarada pandemia, já que a doença estava presente em vários continentes e apresentava transmissão sustentada entre as pessoas. Antes desta data muitos países já haviam implantado medidas de restrição na circulação de pessoas; providência que se difundiu desde então por todo o planeta, com poucas exceções.

No Brasil, grande parte da população está seguindo as instruções do Ministério da Saúde e permanecendo em casa. Transporte, comércio e demais serviços funcionam com restrições. O objetivo é que apenas os serviços essenciais permaneçam em operação, evitando a circulação de pessoas. O governo e o Congresso aprovaram medidas de exceção, de modo a fazer com que os trabalhadores, inclusive os informais, recebam recursos financeiros para se manterem em casa sem precisarem trabalhar.

As consequências da pandemia serão muito grandes, com influência em grande parte das atividades humanas. Os dias, semanas e meses pelos quais o mundo está passando, serão lembrados pela atual geração por muitos anos. Tanto pelas perdas de vidas, quanto pelo impacto que o Covid-19 terá na organização política, econômica, social e cultural de todo o mundo nos próximos anos. Analistas políticos, historiadores, sociólogos e economistas, entre outros, falam em uma grande mudança. O mundo não será mais o mesmo.

Na sequência do texto, tentaremos condensar as principais informações, opiniões e comentários, feitos por diversos especialistas, sobre o rumo que a civilização mundial deverá tomar nos próximos anos. Na situação atual, sabemos que se trata de opiniões e palpites, que se confirmarão ou não. Mais importante é perceber que um período da história humana está no fim e outro tem início. Muito mais do que o ataque às torres gêmeas de Nova York, em 2001, ou a crise financeira mundial em 2008, a pandemia do corona vírus provocará profundas mudanças nas relações políticas e econômicas.

Nos últimos anos, a China e os Estados Unidos vinham travando uma batalha pelo domínio da economia mundial. A China, já há alguns anos, estabeleceu metas para expandir sua influência econômica no mundo, através do que se convencionou chamar de “a rota da seda”. Os Estados Unidos, principalmente depois da eleições de 2016 que elegeram o presidente Donald Trump, e tendo como lema de campanha “fazer a América grande novamente” (make America great again), decidiram fazer frente às iniciativas chinesas. Dado o novo contexto da economia mundial, o quadro de confronto econômico entre os dois países, segundo os especialistas, deverá se acirrar. A economia americana, endividada pela crise econômica que será provocada pela pandemia, levará alguns anos para se recuperar. Com isso, a China terá uma vantagem em seus planos de ampliação da área de influência de sua economia.

Outra consequência, segundo os analistas, será o fortalecimento de um bloco político-econômico liderado pela China e outros países asiáticos (Japão, Coréia, Taiwan), incluindo ainda a Indonésia, Oceania e a Índia. Seguindo esta linha de pensamento, nas próximas décadas o centro de decisões do planeta deverá se deslocar para a Ásia – situação que já havia sido apontada por alguns analistas antes da crise, e que poderá se acelerar cada vez mais a partir de agora. A Rússia e a Europa, já pelas relações que ambos têm com a China, fortalecidas através de uma série de acordos de cooperação comercial assinados recentemente, deverão aproximar-se deste bloco asiático, afastando-se da influência estratégica dos EUA – com os quais os europeus já vinham tendo atritos constantes, no governo Trump. Parece haver um certo consenso entre os que acompanham o assunto, de que o resultado desta nova disposição de blocos e forças ao longo dos próximos anos, será o gradual afastamento dos Estados Unidos do holofote dos acontecimentos mundiais. Os americanos ficarão numa posição de relativo isolamento, se aproximando mais de seus aliados na América Latina. Um fator decisivo em toda esta situação é o quão rápido a economia americana se recuperará. Quanto mais tempo demorar, mais a posição da China se fortalecerá.

Analistas também apontam o aumento dos governos de democracias “iliberais”, aqueles que aparentemente são democráticos, mas não têm liberdades civis plenas. Governos da Hungria, Rússia e Turquia recentemente já implantaram medidas que, cada um à sua maneira, darão mais poder aos seus líderes e restringirão a democracia. A crise econômica poderá fazer com que mais nações se sintam atraídas por tal tipo de solução, principalmente em uma economia mundial que se tornará mais fechada, menos globalizada, forçando os estados a terem uma interferência mais forte em suas economias domésticas. Assim, segundo alguns, ocorrerá em paralelo: a) uma redução da globalização, levando as nações a certo isolamento; b) um fortalecimento do poder do Estado (nacionalismo); e c) um refluxo do liberalismo econômico. 

Os Estados estão oferecendo um forte apoio financeiro às suas empresas e populações, a fim de garantir sua sobrevivência. Em alguns países, como os Estados Unidos e o Brasil, grandes segmentos da população estão recebendo pela primeira vez o equivalente a uma renda mínima; o mínimo necessário para que o cidadão possa sobreviver durante o mês, sem passar fome. Como reagirão as populações destes países – e de outros que também implantarem medidas parecidas – quando a situação econômica se tornar razoavelmente normal? Voltarão estas populações a aceitar sua situação anterior de privação e, em casos extremos, de fome? Exigirão nessa nova situação uma renda mínima básica, suficiente para prover suas necessidades básicas, com propugnado por partidos políticos?

Espera-se também uma mudança na esfera do trabalho. Segundo especialistas, haverá uma tendência cada vez maior em se trabalhar de maneira virtual, o home working. Premidos por custos diversos na fase de recuperação financeira, muitas empresas optarão por manter parte de seus funcionários trabalhando de casa, como já em parte vêm fazendo neste período de quarentena.

A mesma tendência poderá ser acompanhada por parte das escolas – pelo menos as de nível secundário e superior – que também já estão utilizando o ensino à distância, sobretudo desde o aparecimento da pandemia com as medidas de isolamento. A tendência de uma utilização acelerada das tecnologias digitais também incentivará a expansão do uso da inteligência artificial (AI), seja no segmento de prestação de serviços (bancos, compras online, companhias aéreas, serviços médicos), quanto na área de segurança. Paralelamente a isso, ocorrerá um grande aumento do comércio eletrônico e crescerá o número de pequenas start-ups de tecnologia, em todo o planeta.

A grande importância que a medicina está tendo no enfrentamento do coronavírus, levará à maior valorização do setor. Profissionais ligados à área médica serão mais reconhecidos pela população e, principalmente, pelo Estado. A pesquisa médica, a capacitação de profissionais e a infraestrutura receberão maior apoio financeiro, já que com esta crise o mundo compreendeu que outras pandemias parecidas poderão afetar as sociedades nas próximas décadas.

As mudanças climáticas e questão ambiental serão temas prioritários. A pandemia do coronavírus, para muitos cientistas, representa mais um aspecto da desastrada interação entre a chamada civilização e o meio ambiente. Epidemias de febre amarela, dengue, ebola, malária, meningite, entre outras, são resultado da destruição de habitats naturais pela atividade econômica e movimentação de populações. Há que se estudar também novos modelos de aglomerações urbanas, já que a disposição urbana atual, principalmente nos países onde grandes parcelas da população vivem em condições desfavoráveis, é propícia à disseminação de doenças transmissíveis.

É consenso na maior parte dos especialistas que o sistema econômico mundial não operará mais da mesma maneira. O capitalismo em sua atual fase financeira teve início nos anos 1980. Nos anos 1990 sofreu forte aceleração com a queda dos regimes socialistas – o fim da Guerra Fria – e a introdução das tecnologias digitais. Em 2008 ocorreu a crise do subprime, os “títulos podres” dos Estados Unidos, que acabou afetando toda a economia mundial. Apesar de o sistema financeiro mundial ter passado por um processo de recuperação, muitos economistas de renome vinham apontando indícios que prenunciavam uma nova crise. Em início de 2019 o ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI) e ex-diretor do Banco Central da Índia, Raghuram Rajan, declarava que “o capitalismo parou de prover as massas, e quando isso acontece, as massas se rebelam contra o capitalismo”. Nouriel Roubini, o economista que previu a crise dos Estados Unidos em 2008, anunciou recentemente um desastre econômico global, por força da crise do coronavírus. Agora, os fatos se precipitam e, como dizem alguns, temos uma crise financeira equivalente à de 1929, somada à da pandemia da Gripe Espanhola de 1918.

A hiperglobalização da economia deve recuar junto com uma queda brutal do PIB individual das nações, já que, como dissemos anteriormente, haverá uma tendência de que as economias se tornem mais fechadas ao comércio internacional.

A interrupção da cadeia de fornecimento ocorrida com a suspensão das atividades industriais em parte da China provocou um grande choque na estrutura industrial mundial. Assim, poderá ocorrer que produtos e insumos sejam produzidos em localidades não muito distantes das unidades consumidoras, evitando deslocamento de mercadorias destinadas à produção por metade do planeta. Assim, muda a situação na qual a China e países asiáticos são fornecedores de mais de 70% dos produtos e insumos utilizados pelas indústrias em todo o mundo. Global sourcing e just-in-time talvez se tornem apenas conceitos de um capitalismo do passado.

Alguns especialistas se perguntam se todas estas mudanças na política, na economia e na tecnologia poderão também trazer mudanças aos hábitos e costumes das populações. A impossibilidade de consumo desenfreado durante o período de isolamento, principalmente nos países ricos, poderá fazer com que as pessoas comecem a encarar seus hábitos de consumo de maneira mais razoável? As dificuldades momentâneas pelas quais passarão milhões de indivíduos, mudarão a maneira como veem as necessidades constantes de seus concidadãos, fazendo com que exijam de seus governos a implantação de leis mais equânimes e investimentos em estruturas de proteção social? As horas passadas no silêncio, com pouco ou nenhum contato humano durante o período de isolamento, levarão as pessoas a serem mais voltadas para si mesmas, mais meditativas, ocupando suas mentes com assuntos mais filosóficos, existenciais?

E, por fim, a pergunta que muitos se fazem em seu íntimo: seria a crise também a oportunidade para que a humanidade enverede por um novo caminho? Um itinerário no qual as sociedades seriam mais justas, mais livres, educadas e cultas? Onde a convivência com a natureza seria menos destrutiva e a vida mais saudável? Onde as pessoas não precisariam mais se preocupar com sua subsistência, já que qualquer trabalho seria justamente remunerado?

Não sabemos como a humanidade sairá desta pandemia. Antevemos uma imensa crise econômica, social e cultural, com todas as suas consequências sobre pessoas e nações. Esperemos, no entanto, que todos nós passemos por esta tempestade o mais rápido possível, e que cheguemos ao final dela prontos para o novo mundo que surgirá.      


(Imagens: pinturas de Vincent van Gogh)