Leituras diárias

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

 


“Estudos de biologia molecular, genética e de microscopia de alta potência em geral confirmavam a antes radical ideia do século XIX de que células de plantas e de nossos corpos animais (assim como os dos fungos e todos os outros organismos compostos de células com núcleo) surgiram por meio de uma sequência específica de incorporações de diferentes tipos de bactérias.” (Margulis, pág. 35)

 

Lynn Margulis, O planeta simbiótico – Uma nova perspectiva da evolução

Renda Básica Universal

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

 

https://www.politize.com.br/renda-basica-universal/

Fome, agricultura e mais fome

sábado, 26 de setembro de 2020

"O que chamamos de liberdade é a irredutibilidade da ordem cultural à ordem natural."   -   Jean Paul Sartre   -   Crítica da razão dialética 


Robert Malthus (1766-1834) foi economista, pastor e professor britânico, considerado o pai da moderna demografia. Formulou a teoria de que populações humanas crescem em progressão geométrica, enquanto que os meios de subsistência só poderiam em crescer em progressão aritmética. Estes princípios teóricos influenciaram Charles Darwin (1809-1882) na formulação de sua teoria da evolução das espécies, além de economistas como David Ricardo (1772-1823). A escassez de meios sempre foi uma das maiores preocupações do homem, desde sua origem, e é o fundamento de toda a atividade econômica. Obter recursos para sobreviver; desde a organização de uma caça na pré-história, a preparação de campos para a plantação do trigo no Antigo Egito, passando pela construção de silos de armazenagem na França medieval, até o planejamento e a operação das modernas cadeias de produção e distribuição. O homem sempre teve que conviver e tentar superar a escassez de recursos: alimento e abrigo.

Sob certo ponto de vista, todas as principais criações da espécie humana – a agricultura, o Estado, a religião, a tecnologia, a cultura – foram estimuladas pela necessidade de sobrevivência em um mundo no qual os recursos básicos, principalmente o alimento, são limitados. Tribos, Estados e impérios guerrearam por mais território, mais riquezas, mais poder e, além de tudo, por mais comida. A história humana é a narrativa dos seres humanos tentando saciar sua fome. Milhares de gerações pré-humana e humanas, passaram grande parte de suas curtas vidas sem alimentação suficiente, desde a mais tenra idade até morrem, quase todos com menos de 35 anos. As escavações arqueológicas em todas as regiões do globo dão conta disso; malformação de dentes e ossos foram comuns entre nossos antepassados. É difícil imaginar este quadro para nós, que vivemos em sociedades desenvolvidas, onde a maioria não passa mais fome e tem uma vida relativamente longa.

Basta consultar o Google e pesquisar na Wikipédia fomes em massa, (https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_fomes_em_massa) para encontrar uma lista de mais de 170 ocorrências de períodos de fome desde o século V a.C. até nossos dias. Vale ressaltar que esta relação de eventos se refere apenas aos episódios conhecidos; imagine-se as fomes periódicas ocorridas desde a Antiguidade na já naquela época populosas China e Índia, ou entre grupos humanos nas Américas, na África e na Austrália. A fome pela escassez de caça, provocada pelas mudanças climáticas ocorridas no final do período glacial do Pleistoceno, foi a principal razão pela qual nossos antepassados passaram a praticar a agricultura, há cerca de 10 mil anos. Da mesma forma, alterações do clima, como períodos prolongados de chuva ou seca e invernos mais longos, destruíram colheitas e sementes, provocando falta de alimentos. O mais conhecido exemplo de um tal tipo de desastre foi a Grande Fome de 1315-1317, na Europa. Excesso de chuvas e temperaturas baixas durante a primavera e o verão do ano de 1315, fizeram com que as sementes não germinassem. A falta de alimento para as populações e para os animais, deu início a uma cadeia de acontecimentos: fome, doenças, crimes, mortandade e até casos de canibalismo, fizeram com que 10% a 25% da população de muitas cidade e vilas perecessem.

A fome sempre foi motivo de preocupação dos governantes desde a Antiguidade, mas foi com a Revolução Industrial que o problema se tornou mais premente para os Estados. As fábricas atraíram parte da população rural para as cidades, diminuindo a mão de obra na agricultura. Ao mesmo tempo, a indústria química passava a desenvolver os primeiros fertilizantes para o solo, com base nas pesquisas de Justus von Liebig (1803-1873), um dos iniciadores da química orgânica, que em 1840 publicou A química orgânica em sua aplicação à química agrícola e à fisiologia. A partir desse período a atividade agrícola poderia contar com o apoio efetivo da ciência, sem depender somente das técnicas desenvolvidas ao longo de milênios de experiência, mas ainda pouco eficientes. Assim, no século XIX e XX a agricultura começa a dispor de produtos químicos e máquinas, que aumentam em muito a produtividade. Nos anos 1960 e 1970 a biotecnologia começa a desenvolver sementes híbridas e transgênicas, mais resistentes às pragas e às intempéries, permitindo colheitas e lucros ainda maiores. No entanto, apesar de todos estes avanços, a problema mundial da fome ainda não estava eliminado.

O Clube de Roma, é uma associação de cientistas, acadêmicos, políticos, estadistas e empresários que vêm se reunindo desde 1968, para discutir assuntos relacionados com a economia internacional, com ênfase na questão ambiental e no desenvolvimento sustentável. Com relação à fome, o grande mérito dessa instituição foi relacionar a questão ambiental – o uso dos recursos naturais – com o tema da agricultura. Em 1972 o Clube de Roma contratou uma equipe do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), chefiada por Donella e Denis Meadows, que elaborou um relatório, publicado sob o título de Os limites do crescimento. Tratando de assuntos como poluição, crescimento populacional, energia, saneamento e saúde, o relatório concluía que o planeta não suportaria o ritmo de crescimento da população, mesmo considerando os avanços tecnológicos futuros. Devido aos impactos ambientais provocados pela tecnologia (exaustão dos solos, uso de agroquímicos, destruição de áreas naturais remanescentes) poderia cair a oferta mundial de alimentos, ao passo que a população continuaria a crescer, o que provocaria crises de carestia de víveres.

A situação apontada pelo relatório Os limites do crescimento parece não ter se confirmado – pelo menos até agora – no que se refere à produção de alimentos, graças à criação de uma técnica que reúne um conjunto de tecnologias, para aumentar a produtividade da agricultura. Chamada de Revolução Verde, o método foi desenvolvido pelo engenheiro agrônomo norte-americano Norman Borlaug (1914-2009), introduzido a partir da década de 1960 nos Estados Unidos e na Europa, disseminando-se pelo mundo nos anos 1970. A técnica se baseia no uso intensivo de sementes alteradas, insumos industriais (agrotóxicos e fertilizantes), larga mecanização e emprego intensivo de tecnologia. A Revolução Verde contribuiu em grande parte para aumentar a produção agrícola de países com grande população como a China e a Índia, que sem este tipo de agricultura enfrentariam constantes crises de desabastecimento alimentar. Por outro lado, além de aumentar a produção agrícola, a Revolução Verde também ajudou a transformar países como os Estados Unidos, o Brasil e a Argentina em grandes fornecedores de commodities agrícolas no mercado mundial. Criada em 1973, durante o período de introdução da Revolução Verde no Brasil, a Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária é um exemplo do sucesso desta tecnologia. Desenvolvendo pesquisas e produtos voltados para a atividade agrícola e pecuária, a empresa tornou-se o maior centro de know-how nesta área para regiões tropicais em todo o mundo. Grande parte do sucesso obtido pelo agronegócio a partir dos anos 1980, deve-se às atividades cientificas desenvolvidas por esta instituição.

Se, por um lado, o tecnologia da Revolução Verde trouxe maiores colheitas, por outro lado também provocou impactos. A produção agrícola baseada em grandes áreas, o sistema plantation, tem forte impacto sobre o meio ambiente, devido ao uso extensivo de terras e intensivo de fertilizantes e agroquímicos, diminuindo a biodiversidade original do solo, ao mesmo tempo em que pode contaminar os recursos hídricos com produtos químicos. Os principais produtos produzidos atualmente pelo agronegócio brasileiro são: soja, cana de açúcar, café, milho, algodão, laranja, mandioca, arroz, cacau e celulose, destinados em grande parte à exportação. Por outro lado, 70% dos alimentos consumidos no mercado interno são produzidos pelas pequenas propriedades agrícolas, cujo nível de capacitação, capitalização, mecanização e uso de tecnologias de ponta é relativamente baixo, se comparadas às cerca de 400 mil empresas do agronegócio moderno.   

Apesar da grande expansão da agricultura a partir dos anos 1970, acompanhando o crescimento populacional, a fome não foi erradicada no mundo. Segundo dados disponíveis na ONU, em 2019 a fome atingia 820 milhões de pessoas em todo o planeta, mas principalmente na África. Países que já sofriam de insegurança alimentar antes do surgimento da pandemia, causada por conflitos armados, secas prolongadas e depressão econômica, se tornaram ainda mais vulneráveis com o surto da doença. Burkina Fasso, Nigéria, Somália, Sudão, República Centro-Africana, entre outros, já se encontram em graves crises alimentares, fator que provoca ainda mais conflitos e movimentos de refugiados para outros países. Além dos aspectos ambientais e político-econômicos, muitos países também não dispõem de suficientes recursos financeiros para adquirir alimentos no mercado internacional, cujos preços, principalmente dos grãos e leguminosas, encontram-se ainda mais inflacionados desde o surgimento da pandemia. Segundo um estudo da consultoria McKinsey, a alimentação do mundo é baseada principalmente em quatro grãos: arroz, trigo, milho e soja, que constituem quase a metade das calorias de uma dieta global típica. Por outro lado, aproximadamente 60% da produção mundial de alimentação, se dá em apenas cinco países: Argentina, Brasil, China, Estados Unidos e Índia.

 No Brasil a fome sempre foi endêmica, tendo diminuído com o desenvolvimento de uma prática agrícola mais moderna, notadamente a partir dos anos 1970. Mesmo assim, sempre houve bolsões de fome, principalmente na região Nordeste, associados à pobreza. O programa Fome Zero foi criado em 2003, durante o governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva, substituindo e ampliando o programa Comunidade Solidária, implantado no governo de Fernando Henrique Cardoso. Para atender cerca de 44 milhões de pessoas ameaçadas pela fome à época, o programa foi desenvolvido com um conjunto de mais de 30 iniciativas complementares, com o objetivo de atacar as causas da fome e da insegurança alimentar. Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e a Agricultura (FAO), a insegurança alimentar divide-se em três categorias: a) a insegurança alimentar leve, quando existe preocupação com acesso à comida e queda na qualidade dos alimentos; b) a insegurança moderada, quando há uma redução na quantidade de alimentos e quebra nos padrões de nutrição entre adultos; e c) grave, com redução quantitativa de alimentos também entre crianças. A fome torna-se uma experiência concreta no lar.

No Brasil, entre 2013 e 2018 a insegurança alimentar nos domicílios cresceu em 62,4%, atingindo 10,3 milhões de pessoas. A situação é pior no Nordeste e na região Norte, onde respectivamente apenas 49,7% e 43% dos domicílios tiveram acesso pleno e regular aos alimentos. Nas outras regiões o acesso regular a alimentos chega a 79,3% (Sul); 68,8% (Sudeste) e 64,8% (Centro-Oeste). Desde 2014 o Brasil havia deixado de constar na relação do Mapa da Fome – países que têm mais de 5% da população ingerindo menos caloria do que o recomendável. Em 2019, no entanto, a FAO alertou o governo brasileiro de que o país poderia vir a reintegrar esta lista. Ainda em relação a isto, dados do IBGE informam que cresceu em três milhões o número de pessoas em situação de insegurança alimentar grave nos últimos cinco anos e o percentual dos brasileiros com alimentação satisfatória, atingiu o patamar mínimo em 15 anos. A estatística inclui apenas os moradores de domicílios permanentes, excluídas as pessoas em situação de rua.

O Brasil é o segundo maior produtor mundial de alimentos, depois dos Estados Unidos. No entanto, paradoxalmente, enfrentamos uma alta nos preços dos produtos agrícolas de maior consumo, como o arroz (25,55% em 12 meses), o feijão (48,37%), óleo de soja (23,51%) o leite (18,79%), a carne, ovos e vários outros produtos constantes da cesta básica de alimentação. A alta dos preços, segundo especialistas, deve continuar pelo menos para alguns produtos, o que prejudicará ainda mais grande parte da população, que continua sem recursos financeiros como consequência da pandemia – situação que será agravada com o término do auxílio emergencial a partir de 2021.

Com o recebimento do auxílio emergencial da pandemia, muitas pessoas tiveram mais dinheiro para comprar alimentos, do que teriam em situação normal. Só isso nos dá uma ideia do grau de pobreza e até de miserabilidade em que vive parcela considerável dos brasileiros – cerca de 30% da população, aproximadamente 62 milhões de pessoas. Alegam alguns economistas que com os recursos do auxílio emergencial os pobres aumentaram o consumo de alimentos, o que provocou o aumento de preços pelo comerciantes. A maior parte dos especialistas, no entanto, dá como origem do aumento dos preços dos alimentos exatamente a falta deles, provocada pelo crescimento de suas exportações, tornadas mais vantajosas com a alta do dólar. Assim, enquanto desde o mês de junho o setor do agronegócio aumentava exponencialmente suas exportações, principalmente de arroz, o governo federal já não dispunha de estoques reguladores de alimentos básicos. A iniciativa de abolir os estoques reguladores, comuns na maioria dos países, foi tomada pelo governo do presidente Temer, e assim permaneceu até agora. Desta forma – mais um paradoxo destes tempos tão estranhos – um dos maiores países produtores e exportadores de arroz terá que importar arroz para abastecer sua população. No entanto, este arroz importado chegará ao consumidor a um preço mais alto do que vinha se pagando pelo grão produzido internamente. Não se pode culpar os produtores e comerciantes por quererem ganhar mais, aproveitando as condições favoráveis, mesmo que à custa dos consumidores internos. O que se espera, todavia, é que o governo volte a retomar a inteligente e previdente prática de formar estoques reguladores de certos produtos de primeira necessidade.  

 

(Imagens: pinturas de Hariton Pushwagner)

Leituras diárias

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

 


“No que diz respeito a conspirações e segredos, a experiência (inclusive histórica) nos diz que: (i) se existe um segredo, mesmo que seja de uma única pessoa, esta mesma pessoa vai revelá-lo mais cedo ou mais tarde, talvez na cama com um amante (somente os maçons ingênuos ou os seguidores de algum rito templário fajuto ainda acreditam que existem segredos que nunca forma revelados); (ii) se existe um segredo, haverá sempre uma soma de dinheiro capaz de convencer alguém a revelá-lo (bastaram algumas centenas de milhares de esterlinas em direitos autorais para convencer um oficial do exército inglês a contar tudo o que tinha feito na cama com a princesa Diana e se tivesse feito o mesmo com a sogra, bastaria dobrar a quantia para que um gentlemen do tipo contasse tudo).” (Eco, pág.119)

 

Humberto Eco, Pape Satàn Aleppe, Crônicas de uma sociedade líquida


Leituras diárias

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

 


Sei muito bem que dezenas de livros já foram escritos sobre a síndrome do celular e que talvez não reste nada a acrescentar, porém se refletirmos um instante, parece inexplicável que quase toda a humanidade tenha sido tomada pelo mesmo frenesi e não tenha mais relações face a face, não olhe a paisagem, não reflita sobre a vida e a morte, mas ao contrário, fale obsessivamente, quase sempre sem ter nada de urgente a dizer, desperdiçando a própria vida num diálogo entre cegos.” (Eco, pág.112)

 

Humberto Eco, Pape Satàn Aleppe, Crônicas de uma sociedade líquida


Leituras diárias

quarta-feira, 23 de setembro de 2020


“Um amigo meu, pessoa culta e distinta, jogou fora seu Rolex porque, diz ele, pode ver a hora no BlackBerry. A tecnologia inventou o relógio de pulso para permitir que os humanos não andassem por aí com um pêndulo nas costas ou não tivessem que tirar o cebolão do bolso do colete a cada dois minutos. E eis que meu amigo escolhe andar, não importa o que esteja fazendo, com a mão permanentemente ocupada. A humanidade está atrofiando um de seus dois membros, e no entanto, todos sabemos o quanto as duas mãos com polegar opositor contribuíram para a evolução da espécie.” (Eco, pág.110)

 

Humberto Eco, Pape Satàn Aleppe, Crônicas de uma sociedade líquida 

QUEIMADAS NÃO!

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

 

Pandemia e a ação de governos

sábado, 19 de setembro de 2020

 
"Não há nada de importante no que não é original e o que é original traz sempre em si as mazelas do indivíduo."   -   J. W. Goethe   -   Máximas e reflexões


O Brasil, assim como todos os outros países, encontra-se em meio a uma pandemia virótica. No momento em que escrevemos este artigo, mais de 28,7 milhões de pessoas já foram infectadas em todo o mundo, com 922 mil mortes. No Brasil há, até o momento, aproximadamente 4,3 milhões de casos e ocorreram cerca de 131 mil mortes.

As estratégias de combate à pandemia são basicamente as mesmas em todos os lugares, seguindo padrões (atualmente costuma-se falar em protocolos) já estabelecido pelas organizações para enfrentar outras surtos passados. Isolamento social, principalmente para grupos de risco, uso de proteção das vias respiratórias (máscaras) e muita higiene pessoal – especialmente a lavagem das mãos. Essas medidas, se bem aplicadas, podem ser bastante eficientes para manter a pandemia sob controle até que ela diminua. Adicionalmente, outra precaução fortemente recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), foi a testagem e o isolamento de pessoas contaminadas, e de todas aquelas com as quais estas tiveram contato. Tal providência foi bastante efetiva na China, onde a pandemia teve início e foi eficientemente controlada, na Alemanha, na Coréia do Sul, Taiwan e Singapura.

Já países como a Inglaterra, os Estados Unidos, a Suécia e o Brasil, cujos dirigentes primeiramente negaram ou relativizaram a gravidade do surto virótico, não implantando medidas de isolamento e não testando suas populações, atingiram um alto número de infectados. As medidas profiláticas implantadas em uma fase avançada de disseminação da doença entre a população, tiveram um efeito reduzido.

A maneira de como governos atuaram no combate à doença até agora, tem muito a ver com seus regimes políticos, a situação de suas economias, a reação de seus dirigentes empresariais, de seus médicos e até da própria índole de seus dirigentes. Personalidades autocráticas na forma de governar, líderes como Trump, Bolsonaro e Orbán, tentaram de início conduzir o combate da pandemia de forma personalista, pouco ou nada atentando para os conselhos de especialistas e às informações da ciência. São dessa fase as declarações de que “o vírus não é perigoso e desaparecerá sozinho” (Trump) e “que se trata apenas de uma gripezinha” (Bolsonaro). Num fase seguinte do surto, ambos passaram a insistir no uso de medicamentos sem efeito terapêutico algum, ou podendo causar até efeitos colaterais, como no caso da cloroquina. Trump chegou até a sugerir a ingestão de desinfetante no combate à doença.

Os fatos se precipitaram, o número de casos e de mortes aumentou exponencialmente, e durante esse processo Trump teve vários atritos com especialistas responsáveis pela condução da crise. No Brasil, o ministério da Saúde foi sucessivamente ocupado por dois médicos, dos quais o primeiro foi demitido e o segundo pediu demissão. O substituto temporário ainda continua sendo um general, especialista na área de intendência, sem conhecimentos médicos ou de pandemias. Nos próximos dias, o general será empossado como ministro da Saúde em definitivo.

Inútil nesta fase da pandemia voltar às longas discussões havidas tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos – e, em parte, na Hungria de Orbán – sobre a necessidade de quarentena; quarentena horizontal, quarentena vertical... Discussões aparentemente técnicas, mas que tinham provavelmente o objetivo de desacreditar as medidas preventivas e de organização do combate à pandemia. Assim, ocorreu que medidas rígidas de isolamento não foram sistematicamente implantadas, o que fez com que, segundo alguns especialistas, a duração da pandemia fosse estendida e o número de contaminados maior. Com isso, a economia também acabou sendo afetada. O auxílio emergencial, que permite que também pessoas sem qualquer tipo de renda possam permanecer isoladas, no caso do Brasil, só começou a ser distribuído a partir de final de abril de 2020, depois de muitas negociações entre o governo e o Congresso.

A partir de setembro os números de casos de infecção pelo coronavírus está caindo no Brasil. Em outros países da Europa, parece estar começando uma segunda onda de contaminação, depois que parte das atividades econômicas começaram a ser retomadas.

A gradual normalização da situação, seja em seus aspectos políticos, econômicos, sociais e médicos, só virá com a disponibilidade de uma vacina. Mas, mesmo sobre este tema ainda pairam dúvidas, o que dá margem a muita desinformação e circulação de notícias falsas. Não se sabe ainda, por exemplo, quando a vacina estará disponível. Os mais otimistas já preveem possibilidades de imunização a partir de dezembro de 2020, outros durante o primeiro trimestre de 2021 e os mais pessimistas somente mais tarde. Também existem os grupos que dizem confiar somente na vacina de certo país ou empresa, como se para qualquer vacina não fosse mandatória a fase de testes, durante os quais é preciso atingir certos padrões de efetividade. Outros, querendo ser mais originais ainda, dizem que, seguindo as afirmações do presidente, “ninguém é obrigado a tomar vacina” e que não tomarão a vacina. Enfim, falta de informação, ausência de diretrizes, que deveriam ser estabelecidas pelo órgãos competentes, entre outras coisas.

Esta não foi a primeira e não será a última pandemia a afetar a humanidade. Cientistas já anteveem a chegada de novas pandemias viróticas, inevitáveis, segundo eles, dada a invasão e destruição de áreas selvagens remanescentes, forçando microrganismos a procurarem novos hospedeiros – animais domésticos, de abate e humanos.

Uma das lições que mais uma vez se confirma é que o desenvolvimento social e político não é uma constante na história humana; princípio válido também para a nossa Civilização Ocidental. Povos e nações podem retroceder à ignorância, à credulidade e ao fanatismo em pouco tempo. Já vimos isso no século XX e novamente agora, quando se repetem as estratégias de grupos que apostam na desinformação e no embrutecimento, tirando das pessoas sua capacidade de analisar os fatos com racionalidade e bom senso. A história não se repete, mas os impulsos dos grupos humanos, animais que somos, têm certa previsibilidade.   


(Imagens: pinturas de Heinrich Stegemann)     


Leituras diárias

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

 


“Um tempo de grande pressão intelectual, como o que vivemos, é mais fácil de suportar aos velhos do que aos moços. O velho sabe que lhe basta carregar o fardo da época por mais um trecho. Nota com resignação como as coisas eram antes, ou pareciam ser, lá quando começou a carregá-lo, e como agora estão se transformando.”

 

Johan Huizinga, Nas sombras do amanhã: um diagnóstico da enfermidade espiritual de nosso tempo

Leituras diárias

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

 


“De algo podemos ter certeza: é preciso continuar criando cultura para poder conservá-la.”

 

Johan Huizinga, Nas sombras do amanhã: um diagnóstico da enfermidade espiritual de nosso tempo 

Leituras diárias

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

 


“A disseminação de parâmetros críticos estreitos e vulgares tem atualmente contribuído para reavivar em muitos, de maneira impressionante, os fantasmas dessas forças diabólicas. Mesmo gente instruída vem cedendo com frequência a um irracionalismo que só entre as camadas mais baixas do populacho poderia ser perdoado.”

 

Johan Huizinga, Nas sombras do amanhã: um diagnóstico da enfermidade espiritual de nosso tempo

ESTADO LAICO

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

 

Microrganismos e meio ambiente

sábado, 12 de setembro de 2020

 
"O verdadeiro e o falso são atributos da linguagem, não das coisas. E onde não há linguagem, não há verdade nem falsidade."   -   Thomas Hobbes   -   Leviatã


Os microrganismos têm uma função importante no equilíbrio ambiental do planeta. Antes de mais nada, é preciso dizer que tudo começou com eles. Os primeiros seres vivos foram organismos unicelulares, provavelmente similares às bactérias atuais. Surgiram no planeta há cerca de 3,8 bilhões de anos, por um longo processo que teve origem na matéria inanimada. Desde o século XIX a ciência desenvolveu quatro ou cinco grandes teorias sobre como se deu este salto da matéria inanimada para a vida, mas até o momento nenhuma delas pode dar resultados definitivos em experiências controladas. Toda vida sobre o planeta descende daquele primeiro organismo, que em um instante específico do passado remoto, passou a existir como criatura viva, capaz de realizar seu metabolismo, crescer e se reproduzir. Durante a maior parte da história da vida, esta ficou restrita aos organismos unicelulares. As primeiras criaturas pluricelulares surgiram há cerca de 550 milhões de anos, quando também se deu divisão entre os seres vivos que desenvolveriam as plantas e os que formariam os animais.

A partir deste simples e invisível início a vida se espalhou pelo planeta, gerando as mais diferentes formas de seres em seus respectivos reinos: monera (bactérias ou cianobactérias), protistas (algas unicelulares e protozoários), fungi (fungos), plantae (plantas) e animália (animais). Movidos pelo impulso de conservação, ocuparam e ajudaram a formar ambientes propícios, através de um relativo equilíbrio com outras espécies, mas sempre em competição pela sobrevivência. Por este processo se organizaram os mais complexos ecossistemas, como os bancos de corais, a floresta amazônica ou a microbiota intestinal (flora intestinal) do trato digestivo. A base que sustenta em grande parte o funcionamento de todas estas complexas estruturas, constituídas por milhões ou bilhões de espécies vivas, é mantida pelos microrganismos.

Os microrganismos, quase todos, só podem ser vistos por microscópios, que em muitos casos precisam ser bastante potentes e só foram desenvolvidos nos anos 1930. Esta espécie de criaturas inclui as bactérias (monera), os protozoários (protista), as algas unicelulares (protista), os fungos (fungi) e os vírus. Estes últimos não são propriamente considerados seres vivos. Interessante notar que dos cinco reinos de seres vivos existentes, três são constituídos em grande parte por espécimes microscópicos – na vida, considerando o número de indivíduos e talvez de espécies, a regra ainda é o microscópico. A quantidade de microrganismos presentes na Terra excede em muito os padrões humanos. A massa total de células microbianas no planeta é aproximadamente 25 vezes o total da massa animal. Uma grama de solo (aproximadamente o peso de três grãos de feijão), pode conter cerca de um bilhão (1.000.000.000) de micróbios, divididos em algumas milhares de espécies.    

Ainda não se conhecem todas as espécies de vida na Terra, muito menos as microbianas. Estima-se que a ciência até hoje só tenha identificado cerca de 1% dos microrganismos existentes no planeta. Além de seu diminuto tamanho, estas criaturas são encontrados em qualquer lugar: no fundo do gelo das regiões polares, nas profundezas do oceano a milhares de metros, em gêiseres onde as temperaturas chegam a 100ºC e até a 3 quilômetros no solo, abaixo da superfície. São os tipos de organismos mais resistentes e adaptados do planeta. Não será uma grande surpresa se a missão da NASA Rover Mars 2020, que deverá chegar ao Planeta Vermelho em 2021 para realizar várias prospecções, encontrar indícios de vida microscópica em Marte. Provavelmente, se ainda sobreviverem até lá, microrganismos como as bactérias serão os últimos seres vivos a sobreviverem na Terra, antes que nosso planeta seja engolido pela expansão do Sol, daqui a cinco bilhões de anos.

O maior serviço que os microrganismos vêm prestado ao restante dos seres vivos da Terra é decomposição de matéria orgânica. Na longa cadeia alimentar na qual se baseia a vida, os organismos produtores são aqueles que, como as plantas, produzem seu próprio alimento. Em seguida há os macroconsumidores, que se nutrem da matéria orgânica de outros seres vivos, localizados abaixo deles na escala de alimentação. São os herbívoros, os carnívoros e os animais onívoros. Descendo a escala, encontramos os microconsumidores, que tanto podem ser pluri ou unicelulares e se alimentam da matéria orgânica morta, ou por parasitismo, como os cerca de 390 trilhões (390.000.000.000.000) de microrganismos que cada ser humano carrega em seus intestinos. Por fim, existem os decompositores, os mais importantes em toda esta longa cadeia da vida, pois decompõem e retornam à natureza o que restou no “final de tubo” de todo o processo. Dissolvem tecidos orgânicos, quebram moléculas e assim repõem elementos como o nitrogênio, oxigênio, ferro, enxofre e carbono de volta ao solo, de onde estes elementos são reabsorvidos pelas raízes das plantas (organismos produtores), dando início novamente ao ciclo da vida, enquanto ela perdurar sobre a Terra.

A saúde de um solo depende diretamente da quantidade de microrganismos e outros pequenos animais que o habitam. Em 1 cm³ de solo de pastagem, por exemplo, podem ser encontrados milhões de bactérias, milhares de protozoários, centenas de metros de hifas de fungos, centenas de térmitas e outros insetos, além de outros organismos. Se todo este imenso ecossistema habita apenas 1 cm³ de solo, tentemos imaginar as centenas de trilhões (ou serão mais?) de organismos que vivem em solos como o da Amazônia ou do Cerrado. Assim, é fácil compreender porque o desmatamento, a queima da vegetação, o uso de agrotóxicos, a monocultura extensiva e a erosão destroem a terra. Todo bom agricultor sabe que em média se formam 10 t/ha/ano (dez toneladas por hectare por ano) de solo novo, enquanto que as perdas anuais, dependendo de como a terra é manejada, podem chegar de 120 a 150 t/ha.

Além de influir na qualidade do solo, os microrganismos também atuam na atmosfera e na água. O fitoplâncton é um organismo microscópico fotossintetizante, encontrado principalmente nas algas. Além de ser uma das bases da cadeia alimentar dos ambientes aquáticos, também é o maior responsável pela produção de oxigênio no planeta. Não são as grandes florestas equatoriais as que mais retiram o dióxido de carbono (CO²) da atmosfera. Estas atuam como grandes umidificadores e refrigeradores da atmosfera, além de produzirem grandes quantidades de chuva. Os grande purificadores do já poluído e aquecido ar do planeta, são os diminutos fitoplânctons.

Os microrganismos, as bactérias especialmente, são os criadores e mantenedores da vida no planeta. São nossos antepassados muito, muito remotos e, com certeza, depois que nossa espécie tiver desaparecido, seja por que motivo for, eles ainda estarão aqui por muito tempo. Foram os primeiros a chegar e serão os últimos a sair.   


(Imagens: pinturas de Max Pechstein)

Leituras diárias

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

 


“O culto dos mortos e dos deuses foi a pedra fundamental da religião, fazendo da comunicação com tais seres a principal função do sonho. Os sonhos desempenharam papel central nas narrativas mitológicas das primeiras grandes civilizações – Suméria, Egito, Babilônia, Assíria, Pérsia, China e Índia. Os primeiros manuais de interpretação de sonhos apareceram no Império Assírio há 3 mil anos, com a produção de coletâneas de sonhos premonitórios como o Ziqiqu, que estabeleceu correspondências entre fatos oníricos e suas hipotéticas implicações na realidade.” (Ribeiro, pág. 57)

 

Sidarta Ribeiro, O oráculo da noite – A história e a ciência do sonho


Leituras diárias

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

 

“Quando o sol brilhava no céu, a temperatura aumentava, facilitando a difusão molecular e acelerando as reações químicas. Desde o início dos tempos, depois que o sol se põe no horizonte, a temperatura cai na Terra – e as reações químicas se tornam mais lentas. Essa alternância praticamente imutável há mais de 1,6 trilhão de dias e noites acopla à rotação da Terra os ciclos comportamentais de praticamente todas as formas de vida que já existiram no planeta. Com exceção dos ambientes muito profundos, toda a vida planetária evoluiu sob a alternância entre claro e escuro a cada doze horas, aproximadamente. Por essa razão, ritmos circadianos muito parecidos são encontrados em praticamente todos os seres do planeta.” (Ribeiro, pág. 119)

 

Sidarta Ribeiro, O oráculo da noite – A história e a ciência do sonho


Leituras diárias

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

 


“Se a noção de tempo circular é inspirada pela agricultura e pelos ciclos cósmicos, o espaço – antes tão vasto quanto a necessidade de migrar – passou a ter como referenciais geográficos fixos as cidades e seus campos cultivados, dando início a uma representação do Centro do Mundo. Surgem as primeiras evidências arqueológicas dos princípios antagônicos fundamentais da vida simbólica: nós versus eles, mulher versus homem, mãe versus pai, verão versus inverno, vida versus morte, dia versus noite.” (Ribeiro, pág. 47)

 

Sidarta Ribeiro, O oráculo da noite – A história e a ciência do sonho


ESTUDE FILOSOFIA!

segunda-feira, 7 de setembro de 2020


Religião, evangélicos e política

sábado, 5 de setembro de 2020

 
"A religião é a consciência do infinito; ela é portanto e só pode ser a consciência de que o homem toma de sua própria essência, não de sua essência finita e limitada, mas de sua essência infinita."   -   Ludwig Feuerbach   -   A essência do cristianismo

De uma maneira geral, a religião é um tema superado nas sociedades avançadas. As igrejas são cada vez menos frequentadas, porque não oferecem mais as respostas que as pessoas procuram. Nas sociedades europeias, por exemplo, seu vizinho pouco se importa no que você acredita ou não. Este tipo de questionamento não faz mais sentido, não importa mais. Como associar crenças, padrões de conduta e visões de mundo, surgidas há mais de dois mil anos em uma civilização agrícola e culturalmente periférica, às preocupações e à visão de mundo influenciada pela tecnologia, pelo individualismo e um relativo bem estar social?

O “retorno da religião”, apontado como novo fenômeno social e cultural por alguns intelectuais nos últimos trinta anos, foi uma ocorrência localizada. O crescimento da prática religiosa concentrou-se principalmente nas sociedades com menor acesso à educação formal, onde condições aceitáveis de vida não são a regra e as liberdades individuais são limitadas. São sociedades sem perspectivas para a maior parte dos indivíduos, seja no cotidiano como no futuro, com Estados autoritários e corruptos, dominados por elites culturalmente atrasadas; fatores que levam parte da população a procurar algum tipo de alívio e ajuda na religião, despendendo considerável tempo e esforço para isso.    

Na visão de Marx a religião, além de prática para aliviar as mazelas da vida, também era um protesto contra uma situação injusta. Escreve o filósofo na Crítica da Filosofia de Hegel: “A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo.” 

A teologia da libertação foi, entre os anos 1960 e 1980, uma forte corrente de pensamento na teologia católica, principalmente na América Latina. Caracterizava-se por uma posição extremamente crítica em relação às adversas condições econômicas, sociais e políticas na região, dominada então por regimes autoritários. Durante este período também os religiosos foram censurados, perseguidos e assassinados pelas forças de repressão. No entanto, com a chegada de João Paulo II ao papado, a teologia da libertação foi proscrita da doutrina da Igreja, sendo gradualmente substituída por linhas doutrinárias e religiosos mais conservadores.

Em pleno período da Guerra Fria, a teologia da libertação, por sua forte crítica às injustas relações sociais e econômicas, foi incorretamente associada à expansão do socialismo; seja pelos regimes autoritários como pelas agências do governo dos Estados Unidos. Neste período, as igrejas evangélicas, atuando na América Latina desde o início do século XX, cresciam lentamente, principalmente nas periferias das grandes cidades. Para fazer frente à teologia da libertação, governos latino-americanos procuraram facilitar a expansão das igrejas evangélicas neo-pentecostais, pois estas não desaprovavam os regimes autoritários e eram politicamente neutras em relação à situação social. Credos evangélicos, com ligações nos Estados Unidos, chegaram a receber apoio financeiro para expandirem e disseminarem a doutrina que, na prática da evangelização, se contraporia à teologia da libertação: a teologia da prosperidade. Há, no entanto, igrejas evangélicas pentecostais que não enfatizam a teologia da prosperidade. 

No texto As origens norte-americanas da teologia da prosperidade, e sua influência no contexto brasileiro, publicado no site da Faculdade Batista do Paraná (FABAPA) (https://fabapar.com.br/blog/as-origens-norte-americanas-da-teologia-da-prosperidade-seus-ensinos-e-sua-influencia-no-contexto-brasileiro/), os especialistas Me. Gabriel Maurílio e Dra. Marivete Zanoni Kunz, apresentam uma explicação da teologia da prosperidade, da qual selecionamos o seguinte trecho:

“Esta Teologia traz uma nova interpretação, que troca as boas novas por solução de problemas. Também ensina que a marca do cristão verdadeiro consiste em ter muita fé, ser bem-sucedido, ter boa saúde física, emocional e espiritual, isto inclui a prosperidade financeira, mas, se o cristão é pobre ou está doente, são resultados de pecado ou falta de fé. Neste aspecto, a Teologia da Prosperidade tem atraído grande número de pessoas que passam por estas dificuldades, mas, para receber estas bênçãos, inclusive a financeira, o cristão tem que ofertar na igreja para recebê-las, em forma de barganha.” (Maurílio e Kunz)

Caiu o Muro, desapareceu a competição entre o bloco capitalista e o comunista em todo o planeta, governos se sucederam no Brasil, mas as condições sociais e econômicas do país não mudaram em suas bases. Como escreveu Tomasi di Lampedusa em seu clássico romance O Leopardo “Algo deve mudar para que tudo continue como está.” E foi o que ocorreu – ou não ocorreu. A situação dos pobres e miseráveis foi apenas atenuada ao longo dos últimos vinte e poucos anos, mas não mudou em suas bases. A função de alívio e protesto da religião, continua justificada em nossa sociedade.

O Brasil sempre foi um país de hegemônica tradição católica, pelo menos até há alguns anos. No entanto, ao longo dos últimos quarenta anos, os evangélicos tornaram-se o grupo religioso que vem apresentando o mais rápido crescimento. Em 2010 já perfaziam 22,2% da população, cerca de 42,3 milhões de pessoas. Em 2017 eram 27% da população e hoje este percentual deve estar em torno de 30% – cerca de 60 milhões de pessoas. A maior parte dos fiéis destas correntes protestantes, assim como a dos católicos, é formada por pessoas de baixa renda (cerca de 60%) e por representantes da classe média.

Recentemente, os grupos evangélicos tiveram um grande peso na eleição do presidente Bolsonaro, segundo dados levantados pelo jornal Folha de São Paulo. É preciso notar, no entanto, que em eleições anteriores os evangélicos também votaram maciçamente nos candidatos “preferidos”, como Fernando Henrique Cardoso, Lula da Silva e Dilma Rousseff. Bolsonaro agradou especialmente aos evangélicos e a seus pastores por ter incorporado práticas da religião, como o batismo a que se submeteu, a referência a Deus em seu slogan de campanha (“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”), a defesa dos “valores da família brasileira”, o conservadorismo e o anti-intelectualismo. Eleito, retribuiu os votos indicando pastores evangélicos para cargos ministeriais e mantendo estreito relacionamento com a comunidade evangélica. 

Sendo assim, os grupos evangélicos têm e terão, cada vez mais, forte influência no governo – pelo menos neste governo. É bem provável que a política e certas práticas sociais sejam influenciadas pela visão de mundo evangélica, que passou a ter certa ascendência na vida pública do país, através da política e da mídia. Se isto é uma vantagem para os evangélicos, significando poder e hegemonia, também transformar estes grupos sociais – e as instituições e personalidades a eles ligados – em atores constantemente observados, analisados e avaliados pelo resto da sociedade, através dos meios de comunicação e das mídias sociais.

A exposição na mídia que figuras evangélicas passaram a ter – e que este grupo pouco tinha no passado –, já começa a ter consequências. Chamaram a atenção da opinião pública do país os casos recentes de conhecidos ministros de igrejas evangélicas suspeitos de envolvimento em atividades criminosas – caso do pastor Everaldo Dias Pereira, importante nome da igreja Assembleia de Deus e presidente do Partido Social Cristão (PSC), acusado de corrupção e lavagem de dinheiro, e da pastora Flordelis dos Santos de Souza, pastora da igreja do Ministério Flordelis (rebatizado para Cidade de Fogo) e deputada federal pelo Partido Social Democrático (PSD), acusada do assassinato de seu marido, também pastor.  

Só o tempo poderá dizer como será a atuação dos grupos evangélicos na política, e de que modo influenciarão a história do país. Por enquanto estão instalados em ministérios e outros importantes cargos no Executivo, preenchem 91 cadeiras no Legislativo e futuramente poderão ocupar posições no Judiciário (Bolsonaro não deve ter abandonado sua ideia de empossar um ministro “terrivelmente evangélico” no STF). Todos estes, elas e eles, ocupando cargos de evidência na administração, precisam ter em mente de que governam, legislam e julgam para uma República laica, sem religião. Uma República onde deve imperar a vontade da maioria, sem que as aspirações justas de minorias sejam desrespeitadas. Diferente dos planos da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Silva, que recentemente declarou em entrevista à Deutsche Welle de que "É o momento de a igreja ocupar a nação". Uma República cujo principal objetivo deve ser o de promover a justiça econômica e social, propiciando o desenvolvimento das potencialidades de todas as pessoas, todos os grupos sociais, independente de religião, cor ou sexo, através de igual acesso à educação, cultura, saúde e vida digna. É só desta maneira que a sociedade brasileira poderá atingir um nível aceitável de humanismo e civilização.    


(Imagens: pinturas de Georg Schrimpf)


Leituras diárias

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

 


“O culto de Osíris tornara-se uma espécie de culto familiar com três divindades: Osíris, sua esposa Ísis (que também era sua irmã, o que causava certo constrangimento) e seu filho Hórus, que governava o mundo dos vivos. Por volta do final do século II, uma trindade semelhante também surgira no cristianismo sob a forma de Deus, o pai, Jesus, o filho, e sua mãe Maria. Assim como os templos dedicados a Osíris haviam retratado imagens de Ísis amamentando o menino Hórus, as imagens cristãs de Maria amamentando o menino Jesus tornaram-se cada vez mais comuns.

Esse novo cristianismo baseado na família provocou algumas mudanças importantes. Jesus nunca se considerara um deus, e mesmo Paulo não parece ter pensado que o fosse. Os primeiros Evangelhos, de Marcos e de Mateus, escritos algumas gerações após a crucificação, ainda retratam Jesus como humano, dando-se ao trabalho de criar uma árvore genealógica falsa que começava no antigo herói de Israel, o rei Davi, e ia até o pai de Jesus, José.” (Kneale, página 111)

 

Matthew Kneale, Crença, nossa invenção mais extraordinária


Leituras diárias

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

 


“Judeus, fenícios e filisteu falavam todos versões de uma mesma língua, escreviam de forma muito parecida, moravam no mesmo tipo de casa e, como já mencionei, adoravam os mesmos deuses. Embora judeus tivessem um deus de sua preferência, Iavé, seus vizinhos também tinham seus deuses favoritos. Isso comprova que os judeus não chegaram de repente de outro lugar, mas viviam na região há muito tempo. Além disso, pesquisas arqueológicas referentes a séculos anteriores a 1200 a.C. não descobriram nenhum indício de que a área tenha sofrido uma invasão violenta na qual cidades como Jericó tenham sido arrasadas.” (Kneale, página 43)

 

Matthew Kneale, Crença, nossa invenção mais extraordinária


Leituras diárias

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

 


“Zoroastro não inventou o Paraíso, mas reinventou a ideia de Paraíso. Muito antes da época em que ele viveu, os iranianos da Ásia Central já tinham a expectativa de uma vida feliz após a morte, ou pelo menos alguns deles tinham. Como os povos primitivos do mundo inteiro, de início eles parecem ter se resignado a uma vida infeliz após a morte, em um mundo subterrâneo ao qual se chegava após cruzar um rio tenebroso. Porém, a certa altura, muito antes da época em que Zoroastro viveu, essa interpretação mudou. Passou-se a acreditar que uma ponte cruzava o rio tenebroso, e, embora a maioria dos iranianos caísse dentro do mundo subterrâneo, alguns felizardos – a elite aristocrática – seguiam em frente e alcançavam uma eternidade luminosa e feliz no monte Hara. Como no Egito, em um primeiro momento o Paraíso existiu apenas para os membros do grupo ‘certo’.” (Kneale, página 33)

 

Matthew Kneale, Crença, nossa invenção mais extraordinária


LEIA!

terça-feira, 1 de setembro de 2020