“A emergência de uma estética nacional foi um dos motes da Semana —‘nascerá uma arte genuinamente brasileira, filha do céu e da terra, do homem e do mistério’, bradou Menotti del Picchia no segundo festival. Mas ainda havia pouco disso em 1922. As obras de arte e as músicas apresentadas basicamente imitavam as vanguardas europeias. Villa-Lobos ainda não tinha feito O trenzinho caipira (1934). O modernismo foi mais um dentre outros movimentos artísticos que tentaram, às vezes através de estereótipos e simplificações, traduzir o Brasil de seu tempo. Mas foi único em afirmar nossa singularidade em tempos de crescente globalização.” (Cordeiro pág. 56).
“Os jovens vanguardistas tomaram o
cuidado de não aborrecer demais sua plateia burguesa, proclamando guerra aos
estilos artísticos passadistas e não contra os patrões que se perpetuavam ao
longo do tempo. ‘Na impossibilidade de enfrentarem mais diretamente os
problemas políticos e sociais do país, os revolucionários [da Semana de Arte Moderna]
teriam se contentado em investir contra a colocação pronominal’. O evento, que
pretendeu ser um marco na história brasileira, foi promovido por artistas que
ainda tinham muito o que aprender sobre seu próprio país. A nova arte que eles
proclamavam era muito baseada nas vanguardas europeias, programas estéticos que
sequer dominavam adequadamente. O fato não passou despercebido pela crítica
especializada: ‘E depois venham dizer que o futurismo é coisa séria, coisa,
aliás, que nem os seus próprios apologistas acreditam’. Nos últimos cem anos, e
sobretudo mais recentemente, atribui-se (injustamente)
à Semana o defeito de não ter dado espaço às mulheres. Não é verdade.
Naturalmente, não se levantou a bandeira da igualdade dos sexos nem de qualquer
um dos feminismos. Mas as mulheres estiveram lá, e com notável protagonismo.
A Semana, inegavelmente marcada por contradições, limitações e hipocrisias, foi realizada por pessoas, sobretudo poetas e pintores jovens, que compreenderam melhor as correntes modernistas e desenvolveram sua consciência social ao longo das décadas seguintes. Mário de Andrade, talvez quem melhor exerceu a autocrítica após os excessos de 1922, comentou: ‘Deveríamos ter inundado a caducidade utilitária do nosso discurso, de maior angústia do tempo, de maior revolta contra a vida como está. Em vez: fomos quebrar vidros de janelas, discursar modas de passeio, ou cutucar os valores eternos, ou saciar nossa curiosidade na cultura (...) E apesar da nossa atualidade, da nossa nacionalidade, da nossa universalidade, uma coisa não ajudamos verdadeiramente, duma coisa não participamos: o amilhoramento [sic] político-social do homem.’ Mário buscou viver de acordo com seus aprendizados: ao invés de socializar com os modernistas brasileiros em Paris — que foram em massa para a capital francesa em 1923 — ,viajou por todos os cantos de nosso país, investigando as peculiaridades da cultura popular e os tesouros do passado colonial. Já Tarsila do Amaral, com sua típica lucidez e tolerância, comentou em 1942: ‘Não vejo razão para que Mário de Andrade se tormente tanto por um passado que poderia ter sido mais belo, mais voltado às questões sociais. Tudo quanto artistas e literatos produziram naquele tempo poderia ter sido melhor, mas a verdade é que não estavam preparados para encarar a vida com o espírito de hoje.’” (Cordeiro, págs. 84 e 85).
“Enquanto os artistas europeus discutiam os males e as maravilhas da vida moderna, o Brasil era uma nação jovem, de condições absolutamente distintas. Em 1922, a República e o fim da escravidão eram realidades muito recentes, de forma que o país ainda era extremamente autoritário, desigual, rural, repleto de pobres e analfabetos. O desejo por uma modernização nas artes aos moldes europeus só poderia vir de uma classe socialmente privilegiada, enriquecida (no caso de São Paulo, pelo café e pela industrialização) e alinhada com o cenário internacional. Eis a fórmula para uma Semana de Arte Moderna.” (Cordeiro, pág. 172).
“Diversas vanguardas artísticas, como
o cubismo e o fauvismo, desejaram voltar ao primitivo, ou seja, redescobrir a
pureza estética de povos considerados menos desenvolvidos. Já outros movimentos,
como o futurismo, decidiram-se pelo caminho contrário, de exaltação da
modernidade e suas invenções. Na dúvida ou por mera falta de coesão, a
vanguarda paulista abraçou as duas coisas: queria o desenvolvimento industrial,
a energia elétrica e o avião, mas também a valorização da cultura popular e 'primitiva'
do Brasil. Muito antes de 1922, a figura do índigena já havia sido utilizada
por diversos artistas como símbolo da identidade nacional. Autores românticos, como
Gonçalves Dias e José de Alencar, povoaram nossa literatura com 'bons selvagens',
ingênuos e sensuais. Esses índios tão europeizados, já consagrados em pinturas
e óperas, pareciam aos modernistas tolices de uma falsa brasilidade.”
(Cordeiro, pág. 214).
André Cordeiro, Para entender a Semana de 22: 100 anos em 100 tópicos: Os dias mais agitados do modernismo no Brasil, de Abaporu a Zina Aita