É possível a neutralidade do pensamento científico?

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011
"Algo determina nossos atos: nós ou algo externo a nós. A verdadeira questão no problema da liberdade é, novamente, o caráter fundamental da organização biológica. O que é que estabelece mecanismos auto-regulatórios em um ser vivo e, finalmente, no sistema nervoso do homem e, assim, cria objetivos e lhe dá entendimento pela ação? A resposta consiste na concepção de que o homem é este sistema organizado, com tudo o que isso implica."  -  Helio Jaguaribe  -  O posto do homem no cosmos
Usualmente divide-se a ciência em naturais, que incluem todas as ciências físicas e biológicas; e ciências humanas, aquelas que se dedicam ao estudo das atividades humanas. Até há cerca de quarenta anos, era comum o conceito de que as ciências naturais tinham condições de oferecer uma maior previsibilidade do que as ciências humanas. Por essa razão, ainda se classificava as ciências em exatas, relativas àquelas que faziam uso de processos verificáveis e, principalmente, matematicamente calculáveis; biológicas, relativas a todas as ciências que envolviam o estudo dos seres vivos, inclusive a medicina; e as ciências humanas. A origem desta classificação remota ao século XIX, quando as ciências físicas e biológicas apresentaram um grande desenvolvimento e a pesquisa científica passou a basear-se em experiências que podiam ser repetidas, criando-se o conceito da repetitibilidade. Uma hipótese só poderia ser admitida como teoria, caso pudesse ser comprovada por experiências controladas, que repetidas nas mesmas condições, sempre dariam o mesmo resultado. Através da indução, a ciência afirmar que o que acontece na experiência – repetidas inúmeras vezes – acontecerá sempre. Assim, por um raciocínio, elabora-se uma lei universal. O método dedutivo, largamente utilizado pela ciência tem muitos críticos na filosofia, como David Hume (1711-1776), Karl Popper (1902-1994) e Paul Feyerabend (1924-1994).
Todavia, o conceito de “ciências exatas” já passa por uma crise na década de 1930, quando o físico alemão Werner Heisenberg (1901-1976) desenvolve o conceito de “princípio de indeterminação” na física atômica. Básicamente, o conceito diz que não se pode determinar a posição de uma partícula (no caso o elétron) na estrutura do átomo. Isto porque, a partir do momento em que procurássemos identificar a posição da partícula através de luz ou radiação, o fóton emitido por nosso equipamento deslocaria o elétron de sua posição original. Deste modo, só podemos saber estatisticamente, probabilisticamente a posição de uma partícula. Escreve Werner Heisenberg: “Na física clássica a ciência partia da crença – ou devemos dizer da ilusão? – de que podíamos descrever o mundo em suas menores partes, sem alguma referência a nós mesmos” (Heisenberg, 2007 – tradução nossa). Esta teoria abalou a certeza do processo da repetitibilidade na física, colocando em cheque todo o conceito de “ciência exata”.
A descoberta também influenciou a filosofia. Pensadores como Popper e Feyerabend passaram a encarar a ciência em geral como uma maneira especial de enxergar o funcionamento da natureza; uma maneira de interpretá-la. A ciência não era um retrato fidedigno da natureza, apenas a nossa interpretação desta. Escolas pos-modernas de pensamento (como Derrida e Baudrillard) vão mais longe: negam a neutralidade do pensamento científico, argumentando de que as teorias científicas são influenciadas pela posição ideológica do cientista (ou de grupos financiadores) e que justificavam e validavam determinada posição de classe ou grupos dominantes.
A história tem demonstrado que determinadas ideologias podem influenciar a ciência, tirando-lhe a neutralidade. Este tipo de manipulação da ciência por regimes ou grupos ocorre, pelo menos em sua forma mais violenta, em regimes autoritários – basta lembrar da Inquisição e do que já ocorreu, por exemplo, na antiga União Soviética stalinista, com a influência do materialismo dialético sobre as pesquisas genéticas. Todavia, dado o próprio desenvolvimento da ciência, através da constante pesquisa, é improvável que sempre haja interferência ideológica no pensamento científico. A ciência é dinâmica e baseia-se, principalmente no princípio da verificabilidade. Caso um grupo de cientistas falseie um resultado, visando certos interesses, outro grupo cedo ou tarde descobrirá o embuste. O que limita a ciência são principalmente os nossos instrumentos, que foram desenvolvidos baseados em nossos sentidos.
Assim, a neutralidade do pensamento científico poderá ser atingida na maior parte das vezes, já que as teorias serão sempre testadas por diversos agentes. Por outro lado, admitindo-se a teoria de que a ciência nunca poderá apresentar neutralidade, qual é a garantia que temos de que esta mesma teoria tem neutralidade? É um falso dilema.
É importante lembrar de que, todavia, a ciência não é uma “verdade”. Trata-se apenas de uma interpretação da natureza, limitada pelos recursos de pesquisa e pelo conhecimento geral disponível em um determinado período histórico. Escreveu sobre isso o pensador Milton Vargas: “Em princípio, é possível fazer teoria sobre tudo o que se encontra e tal como se o encontra. Isto é, sobre a realidade. É, entretanto, de se lembrar, que uma teoria sobre a realidade já é, em si, outra realidade.” (Vargas, 1994).
Bibliografia:
HEISENBERG, Werner. Physics and philosophy. New York. HarperCollins Publishers: 2007, 201 p.
VARGAS, Milton. Para uma filosofia da tecnologia. São Paulo. Editora Alfa –Ômega: 1994, 285 p.
(imagens: Jean-Baptiste Debret)

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