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domingo, 31 de maio de 2020

O que foi (e não será mais)

sábado, 30 de maio de 2020
"A História não é feita pelos reis e pelos heróis, mas por esses escuros rebanhos de seres que nós chamamos 'as populaças'".   -   Eça de Queiróz   -   Notas Contemporâneas


Há muito tempo, ainda menino, vi o nível da represa Billings, na região de São Bernardo, baixar até o ponto em que quase estivesse seca. Foi no início da década de 1960, quando a região metropolitana de São Paulo passava por uma longa estiagem. A represa, que era artificial, formada nos baixios do rio Jurubatuba na década de 1930, estava quase sem água. Lembro que o que mais me impressionou, foi a grande quantidade de restos de troncos de árvores que irrompiam do solo lamacento; restos da antiga mata que ocupava os vales.

Aqueles tocos, pedaços de árvores da antiga floresta, me davam a ideia do que foi e já não era mais. Da densa mata, que em alguma época havia estado lá e depois desapareceu, cortada e submergida pela água escura da represa. Agora, com a seca e a diminuição do nível do reservatório, a antiga floresta me lembrava de que, em alguma época passada, teria estado ali. 

Sempre tenho essa impressão toda vez que vejo uma daquelas barragens hidrelétricas construídas através do país, principalmente na Amazônia. Ocorre às vezes que as árvores não são nem derrubadas em sua totalidade, ficando, aqui e ali, o troco seco e apodrecido do vegetal surgindo acima do nível da água.

Mas a impressão é sempre a mesma: aqui havia algo que foi destruído, removido e seu habitat submergido, sufocado. Pela necessidade de gerar energia, para acionamento de máquinas e produção de produtos. Chama-se a isso de progresso e assim justifica-se a derrubada da floresta e a inundação do vale.

À época em que a represa Billings foi construída, a tecnologia e os interesses econômicos indicavam que aquela era a melhor solução e o local mais indicado para a geração de energia para a metrópole, em processo de rápida expansão. O mesmo discurso ou a mesma “avaliação técnica” foram usados para outros empreendimentos Brasil afora, ao longo do século XX e início do XXI.

Qual será o discurso técnico que possa justificar o intenso ritmo de derrubada da floresta amazônica nos anos 2019 e 2020? Já sabemos que não se trata da construção de novas barragens hidrelétricas. Neste caso, tudo indica, é o impulso de ocupar mais terras, acumular capital e especular.

As imagens aéreas de áreas de floresta devastadas nos dão sempre a mesma impressão. Algo que foi e já não é mais e, muito provavelmente, nunca mais voltará a ser.    


(Imagens: pinturas de Jamini Roy)
  

Leituras diárias

sexta-feira, 29 de maio de 2020


“Darwin mostrou, através da seleção natural, que havia outra maneira que não a existência de um Fabricante de Relógios, uma maneira pela qual era possível uma enorme ordem surgir de um mundo natural mais desordenado sem a interferência de nenhum Fabricante de Relógios com inicial maiúscula. Era a seleção natural.” (Sagan, p. 62)


Carl Sagan, Variedades da Experiência Científica – Uma visão pessoal da busca por Deus


Leituras diárias

quinta-feira, 28 de maio de 2020


“E a questão fica ainda mais confusa pelo fato de teólogos proeminentes como Paul Tillich, por exemplo, que proferiu as Palestras Gifford muitos anos atrás, terem negado explicitamente a existência de um Deus, pelo menos como poder sobrenatural. Bem, se um teólogo renomado (e ele não é o único) nega que Deus seja um ser sobrenatural, a questão me parece meio confusa. O espectro de hipóteses seriamente abarcadas pela rubrica ‘Deus’ é imenso. A visão ingênua ocidental de Deus é a de um homem alto, de pele clara, com uma longa barba branca, que fica num trono enorme no céu e que sabe da queda da cada pardalzinho.” (Sagan, p. 169)


Carl Sagan, Variedades da Experiência Científica – Uma visão pessoal da busca por Deus

Leituras diárias

quarta-feira, 27 de maio de 2020


“Deus evoluiu para o que os franceses chamam de um roi fainéant – um rei que não faz nada –, que cria o universo, estabelece as leis da natureza e aí se aposenta, indo para algum lugar. Isso não está muito distante da ideia aristotélica do primeiro motor imóvel, exceto pelo fato de que Aristóteles tinha dúzias de primeiros motores móveis, e ele achava que se tratava de um argumento a favor do politeísmo, o que hoje é frequentemente negligenciado.” (Sagan, p. 84)


Carl Sagan, Variedades da experiência científica – Uma visão pessoal da busca por Deus

Covid-19, recursos e consumo

sábado, 23 de maio de 2020
"A experiência que temos do tempo e do mundo é essencialmente determinada pelo princípio humano vitorioso. Das outras épocas e idades do mundo não guardamos qualquer informação ou documento filosoficamente determinante."   -   Vicente Ferreira da Silva  -   Dialética das consciências


Ainda estamos em plena crise da covid-19. Aumentam as internações e mortes. Autoridades no assunto garantem que a melhor maneira de impedir a ampliação das contaminações é o isolamento social para todos. Se no começo da pandemia ainda haviam poucas informações, e a “gripinha” supostamente apenas atacava pessoas na terceira idade ou com algum tipo de comorbidade, hoje sabemos que qualquer faixa etária pode ser vitimada pela doença.

Pela experiência de outros países sabemos que o isolamento social reduz a contaminação, dando fôlego à rede de saúde e não sobrecarregando as unidades de terapia intensiva dos hospitais com casos alta gravidade. Pesquisas em vários países já demonstraram definitivamente que o medicamento “cloroquina” não é eficaz no combate ao vírus, podendo causar outros problemas graves ao organismo.

O único recurso com o qual podemos contar no combate ao coronavírus, antes do desenvolvimento de uma vacina, é o isolamento social. Assim, a possibilidade de isolar-se e proteger-se da doença é um direito de todo e qualquer cidadão – de qualquer condição social – que deve ser garantido pelo Estado. Não é possível que o governante exija que a pessoa permaneça em casa, sem dar-lhe condições de assim fazê-lo. Caso não ocorra assim, o cidadão precisaria agir como muitos vêm fazendo: desrespeitando o isolamento social obrigatório, para obter recursos para adquirir alimentos.

É claro, portanto, que o Estado deve garantir a vida do cidadão; sob quaisquer circunstâncias. Para isso é preciso que as autoridades sigam os protocolos internacionais de conduta e procedimentos, que ouçam as conclusões do setor científico e médico, sempre com o objetivo último de proteger a vida acima de tudo. A atividade econômica pode ser recuperada, mas não as vidas humanas. No momento, isto quer dizer que o Estado precisa garantir o direito dos trabalhadores à saúde, disponibilizando recursos para que permaneçam em casa.

Os Estados têm condições de lançarem mão de recursos imobilizados ou alocados em outras áreas para custear despesas de alimentação de sua população (ou parte dela). Exemplos disso vimos acontecer ao longo dos últimos meses, quando países como os Estados Unidos, Alemanha, França, Itália, Argentina e muitos outros, adiantaram ou doaram recursos financeiros para seus habitantes. No Brasil, o governo defendia a liberação de R$ 200,00 e foi somente com a pressão do Congresso que o governo passou a disponibilizar ajuda de R$ 600,00 para aqueles que precisavam – valor ainda bastante baixo. Dentre os beneficiados, muitos não chegaram a receber o auxílio até hoje. 

Em toda esta confusão social e econômica causada pela epidemia, grupos organizados de empresários de diversos setores, solicitam dos governos federal, estadual e municipal que permitam a retomada das atividades econômicas. A atitude é compreensível. Pressionados por compromissos financeiros com credores e funcionários, os empresários tentam reagir, a fim de evitar a bancarrota. Com isso, em algumas regiões onde os índices de contaminação da população caíram, o comércio e as demais atividades econômicas aos poucos começam a retomar suas atividades. Faltam, no entanto, recursos às empresas. O governo, que prometeu emprestar dinheiro aos empresários através dos bancos, diz que disponibilizou esta ajuda ao setor bancário, que aparentemente está postergando o repasse.

Onde o comércio volta a abrir, chama a atenção a quantidade de pessoas que voltam às compras. Mas não procuram o básico; alimentos, medicamentos ou produtos essenciais. Há, parece, uma quantidade considerável de indivíduos que por disporem de recursos, sentem-se como que compelidos ao consumo de bens desnecessários na atual fase. Não conseguem se controlar e assim que surge uma loja, ou melhor, um shopping center aberto, partem logo para as compras. Aquele sapato social de marca (que evidentemente não poderá ser usado durante a quarentena por falta de oportunidade), aquela calça social, o vestido de festa, o relógio de marca. “Não dá pra esperar! Precisa ser hoje, agora! Coloco uma máscara e vou!” Vimos há pouco, um shopping center ser invadido por uma legião de compradores, de todas as idades, ávidos por ver as novidades, as pechinchas e oportunidades disponíveis nas lojas.

Olhando a situação toda sob uma perspectiva mais ampla, nos perguntamos até que ponto todos estão sendo afetados pela pandemia e por suas consequências sociais e econômicas. O país e o mundo enfrentarão uma imensa recessão, milhões de pessoas perderão seus empregos, empresas encerrarão suas atividades. Países serão obrigados a reformularem suas políticas econômicas e sociais, setores da economia desaparecerão, a cultura e costumes vão mudar.
E você se preocupa com o sapato, de gosto duvidoso, que está uma pechincha?

(Imagens: fotografias de choques de partículas subatômicas)
  

Leituras diárias

sexta-feira, 22 de maio de 2020


“Eis uma questão que os objetos perceptíveis não podem revelar-nos, sendo que todas as proposições que enunciamos nesse campo não possuem sentido teórico controlável. Apesar de estarmos orgulhosos de poder distinguir, num caso concreto, o que vem a ser ‘presença’ e o que vem a ser ‘ausência’ de desígnio, podemos constatar a inanidade de todo o nosso esforço, no problema que analisamos. O Universo permanece silencioso, não podendo responder a essa classe de interrogações.” (da Silva, p. 42)

Vicente Ferreira da Silva, Lógica Simbólica  

HOJE 10 ANOS!

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Blog "DA NATUREZA E DA CULTURA"

Meio ambiente e cultura

 Desde 21/05/2010


(imagem: Revista Pesquisa Fapesp)

Leituras diárias



“A lógica clássica e mesmo a moderna são o resultado de uma esquematização do mundo. Foi traçado no universo um sistema de coordenadas, e as classes e as relações delimitaram e estabilizaram a torrente da realidade.” (da Silva, p. 71)


Vicente Ferreira da Silva, Lógica simbólica   

Leituras diárias

quarta-feira, 20 de maio de 2020


“De um certo plano de pensamento, podemos licitamente afirmar que o universo é um sistema de objetos desiguais, diferentes heterogêneos, um sistema que exclui o sinal de igualdade. O singular, o único, é que forma o fundo próprio da realidade, sendo os universais meros instrumentos criados pela nossa mente, a fim de poder vencer a pluralidade infinita das manifestações da natureza.” (Da Silva, p. 95)

Vicente Ferreira da Silva, Lógica simbólica

Nova economia e empregos verdes

sábado, 16 de maio de 2020
"Os homens, como os outros seres, não passam de uma parte da natureza, e ignoro como cada uma dessas partes combina-se com o todo, como ela se liga às outras."   -   Baruch Espinosa   -   Cartas XXX 


A pandemia do coronavírus ainda não é página virada, estamos longe disso. Na opinião dos especialistas nos encontramos provavelmente a meio caminho, tendo acumulado alguma experiência e à espera de uma vacina ou terapia para a doença. Após isso, será necessário imunizar a maior parte da população mundial. Ninguém sabe ainda como isto será possível e quanto tempo demandará. Até lá será necessário que governos saibam administrar o isolamento social e, na medida do possível, reduzir os danos inevitáveis à economia.

Já são numerosos os indícios que indicam uma mudança muito grande na economia. Países levarão anos até que recuperem a situação econômica que detinham antes da crise. Muitos setores serão abalados e outros talvez até deixem de existir ao longo dos próximos anos. Tudo, porém, ainda é uma grande incógnita. O que se sabe, todavia, é que a economia mundial não poderá continuar operando da mesma maneira como vinha fazendo até agora. Excesso de consumo e geração de resíduos – sólidos, líquidos e gasosos – vêm envenenando o planeta e extinguindo a biodiversidade – situação oportuna para o aparecimento de doenças.  

Órgãos internacionais, institutos de pesquisa, grandes empresas e lideranças políticas de todo o planeta, concordam que esta talvez seja a última grande oportunidade dada à humanidade para mudar seu relacionamento com a natureza e, talvez, seu próprio destino. Várias evidências colhidas ao longo dos últimos anos mostram que a economia, da maneira como vem sendo conduzida, levará à gradual exaustão dos mais importantes recursos naturais. Escreve o físico e professor inglês Martin Rees em seu livro “Hora final – alerta de um cientista”: “As espécies estão morrendo cem ou até mesmo mil vezes mais do que a taxa normal. Antes que o Homo sapiens entrasse em cena, aproximadamente uma espécie em um milhão se extinguia a cada ano; agora a taxa está mais perto de uma espécie em mil. Algumas espécies estão sendo mortas diretamente; porém a maior parte das extinções se deve a desdobramentos involuntários de mudanças provocadas pelos humanos no habitat, ou à introdução de espécies não nativas em um ecossistema.” (Rees, p. 114)

Além da depleção dos recursos naturais existe o grande tema da crise climática, devido ao aquecimento da atmosfera provocada pelas emissões de gases de efeito estufa. Será oportuno e necessário, portanto, mudar a maneira como produzimos e consumimos, pensando sempre nos milhões de trabalhadores que estão perdendo seus empregos na pandemia – só nos Estados Unidos foram 20 milhões até abril de 2020. A proposta já defendida por muitos especialistas há décadas é a gradual mudança para uma economia mais sustentável, com menos uso de recursos. Nesta nova economia as empresas incorporam metas de redução de insumos e energia, diminuem emissões de todos os tipos, promovem o consumo responsável de seus produtos, atuam de maneira socialmente responsável, entre outros pontos.

O potencial de geração de empregos em uma economia mais sustentável é maior do que na convencional. Além dos empregos já existentes, a nova economia demandará um maior número de profissionais, voltados às áreas da sustentabilidade. São os “empregos verdes”; postos de trabalho em áreas como:

- Agricultura com baixo impacto ambiental;
- Produção e manejo florestal;
-Geração e distribuição de energias renováveis (solar, eólica, biomassa, biogás, hidrogênio);
- Planejamento e gestão de resíduos (reuso, reciclagem, incineração, disposição);
- Atividades de medição, monitoramento e controle;
- Medidas de eficiência energética e de eficiência na produção; entre outras.

Os empregos verdes, segundo a classificação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEP) são, de maneira ampla, atividades na agricultura, manufatura, pesquisa e desenvolvimento, administração e atividades de serviços, que contribuem substancialmente para a preservação ou recuperação da qualidade ambiental. Incluem também atividades que ajudem na proteção a ecossistemas e à biodiversidade, redução do consumo de energia, água e materiais, através de estratégias diversas. Ocupações que concorram para a redução das emissões de carbono nas atividades econômicas e que diminuam a geração de resíduos.

Considerando somente o setor das energias renováveis, cuja utilização é cada vez maior em todo o mundo, o potencial já é bastante elevado. Nos Estados Unidos, por exemplo, antes da crise, a estimativa de crescimento do número de empregos no mercado da energia fotovoltaica era de 63% e na de energia eólica 57%. Um estudo do Political Economy Research Institute (Instituto de Pesquisa de Política Econômica) de 2019, informa que a cada U$ 1 milhão investido em atividades relacionadas com combustíveis fósseis, são gerados 2,65 empregos. O mesmo valor investido em energias renováveis ou eficiência energética, gera respectivamente 7,49 e 7,72 empregos. Segundo dados da Agência Internacional de Energia Renovável (IREA), existem atualmente 10,3 milhões de trabalhadores em todo o mundo atuando no setor de energias renováveis.

A nova economia tem grande potencial para geração de riqueza e de postos de trabalho. Somente nos Estados Unidos a economia verde movimentou 1,3 trilhões de dólares (cerca de R$ 7,5 trilhões em maio de 2020) e empregou 9,5 milhões de pessoas em 2019. No Brasil a economia verde empregava 2,6 milhões de trabalhadores (dados de 2012), segundo relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O relatório também mostrou que à época cerca de 7% dos empregos formais estavam ligados à sustentabilidade e que a oferta de vagas nesta área estava crescendo cerca de 2% ao ano. Prova disso é o mercado de energia eólica. Apresentando um rápido crescimento ao longo da última década, este setor continuou em expansão mesmo durante a crise econômica que se iniciou em 2014, terminando o ano de 2019 com cerca de 200 mil postos de trabalho e em crescimento.

Estão em desenvolvimento diversos mecanismos que deverão contribuir para que a economia se torne mais sustentável. Governos da Europa, por exemplo, criaram o EU Green New Deal, (Novo Acordo Verde da União Europeia), sistema através do qual os países exigirão contrapartidas em investimentos “verdes”, das empresas que receberem ajuda financeira dos governos por conta da atual crise econômica. O Banco Mundial (WB) está elaborando propostas para direcionar as intervenções na economia, com o objetivo de recuperar a economia mundial em bases ambientalmente sustentáveis e com geração de empregos.

A retomada do crescimento, baseada em novos parâmetros, poderá trazer uma nova era de progresso e modernização tecnológica para a economia mundial. Mas isto exigirá determinação e sacrifício, tanto de governos quanto de empresas, pois é sempre mais fácil voltar às práticas antigas, o “business as usual”, como dizem os organismos internacionais. O Brasil poderá voltar a desempenhar um importante papel nesta nova economia, dado o potencial do país para as energias renováveis, a moderna atividade agrícola e a biodiversidade. No entanto, caso mantenha a mesma política em relação ao meio ambiente praticada pelo atual governo, o país não terá condições de participar desta nova economia.    


(Imagens: pinturas de Qi Baishi)  

Leituras diárias

sexta-feira, 15 de maio de 2020


“No século XVII, viajantes costumavam afirmar que era preferível ser roubado por piratas em alto-mar a aportar no Brasil, onde teriam que pagar uma série de taxas sobre a mercadoria comercializada, além de serem obrigados a adular os administradores e grandes proprietários com todo tipo de presente.” (Schwarcz, p. 91)


Lilia Moritz Schwarcz, Sobre o autoritarismo brasileiro

Pupi (2003-14/05/2020)

quinta-feira, 14 de maio de 2020



"Os cães são o nosso elo com o paraíso. Eles não conhecem a maldade, a inveja ou o descontentamento. Sentar-se com um cão ao pé de uma colina numa linda tarde é voltar ao Éden onde ficar sem fazer nada não era tédio, era paz."

Milan Kundera, escritor




Nossa amiga e companheira Pupi (também "Maloque", "Vovó") se foi.
Nunca vamos te esquecer!

Leituras diárias




“Naturalizar a desigualdade, evadir-se do passado, é característica de governos autoritários que, não raro, lançam mão de narrativas edulcoradas como forma de promoção do Estado e de manutenção do poder. Mas é também fórmula aplicada, com relativo sucesso, entre nós, brasileiros. Além da metáfora falaciosa das três raças, estamos acostumados a desfazer da imensa desigualdade existente no país e a transformar, sem muita dificuldade, um cotidiano condicionado por grandes poderes centralizados nas figuras dos senhores de terra em provas derradeiras de um passado aristocrático.” (Schwarcz, p. 19)


Lilia Moritz Schwarcz, Sobre o autoritarismo brasileiro

Leituras diárias

quarta-feira, 13 de maio de 2020


"A Coroa (portuguesa) simplesmente fechava um dos olhos para as práticas de enriquecimento cometidas por seus agentes, desde que não atentassem contra as receitas régias e, de preferência, realizassem tais expedientes de maneira discreta, através de testas de ferro escolhidos, em geral, entre os criados ou comerciantes locais.” (Schwarcz, p. 93)


Lilia Moritz Schwarcz, Sobre o autoritarismo brasileiro



Evitar a próxima pandemia

sábado, 9 de maio de 2020
"Todas as grandes tragédias têm um final feliz. Mas quem as suportaria até o final?"   -   Stanislaw Jerzy Lec   -   Últimos pensamentos desarrumados 



Deste que surgiu, a pandemia do coronavírus tem afetado todas as áreas das atividades humanas. Estas pequenas “partículas infecciosas”, invisíveis a olho nu, tornaram-se o maior fator de mudanças econômicas, sociais e culturais na nossa civilização globalizada. Todas as atividades humanas, atuais e futuras, estão sendo influenciadas por esta estranha criatura que, segundo a biologia, nem pode ser classificada como um ser vivo.

Sabe-se hoje, definitivamente, de que a pandemia teve início quando o vírus, que tinha o seu habitat em animais selvagens sem prejudica-los, se adaptou ao organismo de animais domésticos e desses passou para o homem. O processo é conhecido e ocorreu de modo similar com outros vírus, ocasionando, por exemplo, a Gripe Espanhola de 1918/19. Bactérias e vírus ainda desconhecidos se estabelecem nos organismos de seres humanos quando estes, através de atividades como desmatamento, caça, comércio ilegal e criação de animais selvagens, entram em contato direto ou indireto com estes microrganismos.   

Na área ambiental a pandemia provocou um efeito imediato. Bilhões de pessoas foram forçadas a permanecer em casa, ou pelo menos reduzir sensivelmente seus deslocamentos, o que rapidamente diminuiu as emissões de gases poluentes gerados por automóveis, transporte público, aviões, trens e navios. Durante a crise financeira de 2008, que também teve um forte impacto na economia mundial, as emissões mundiais de gases de efeito estufa (GEE) caíram 1,3% ao longo daquele ano. Este ano prevê-se uma redução de cerca de 5% nas emissões de GEE globais. Somente a China, o maio emissor de GEE do planeta, já teve uma queda de 25% no primeiro trimestre do ano, com redução de 40% no consumo de carvão usado para acionar seis de suas maiores termelétricas. Através de imagens de satélites é possível detectar a diminuição das manchas de poluição atmosférica na Ásia, Europa e Estados Unidos. No Brasil, as fotografias aéreas também mostram a diminuição da nuvem de poluição que constantemente paira sobre a região metropolitana de São Paulo, a mais carregada de GEE do país.
  
Com a queda na frequência dos transportes e da distribuição de produtos, caiu igualmente a demanda por combustíveis fósseis. Segundo relatório recente da Agência Internacional de Energia (IEA), dados indicam que haverá uma queda de 20% na demanda global de petróleo durante 2020, o que já fez com que o preço do barril de petróleo diminuísse de US$ 70,00 em meados de 2019, para US$ 33,00 em março deste ano.

A pandemia também provocou a paralização do setor industrial em todo o mundo – na China e em alguns países da Europa a atividade industrial está recomeçando lentamente.  No Brasil, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) reportou, através de um relatório publicado no mês de março de 2020, que 79% das indústrias pesquisadas notaram uma redução nos pedidos e 53% informam que a queda foi intensa. Essa situação reduziu a demanda por matérias primas, insumos e componentes. Por outro lado, com a interrupção das atividades fabris houve um abrandamento dos impactos ao meio ambiente, ao longo da cadeia de produção dos produtos.

A queda brusca nas atividade econômicas aumentou o desemprego em todo o mundo, que já vinha crescendo principalmente nas economias periféricas, como a do Brasil. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (IWO) cerca de 1,6 bilhão de trabalhadores estão com as rendas de subsistência comprometidas, devido à crise econômica. A onda de desemprego mundial, no entanto, ainda não se fez notar com toda a sua força, dado que muitos governos estão liberando empréstimos para empresas e trabalhadores, caso dos países europeus, os Estados Unidos e também do Brasil. Nessa situação, trabalhadores de todo o planeta serão forçados a reduzir seu consumo de bens.

Mesmo assim, em termos gerais, pode-se dizer que a redução da atividade industrial e comercial, em todo o globo, trouxe visíveis benefícios ao meio ambiente. O que muitos cientistas se perguntam, é como fazer com que mesmo com a retomada da economia, estas melhorias – como a redução das emissões, da exploração dos recursos naturais, da geração de resíduos, da poluição do solo e dos recursos hídricos –, possam ser mantidas. As respostas a essa pergunta passam em grande parte por soluções que já são conhecidas há anos. O principal incentivo para que agora efetivamente sejam utilizadas, está na possibilidade de ocorrer uma nova pandemia, com impactos e letalidade ainda maiores. Algumas destas soluções englobam:

- Segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEP), há alguns aspectos a serem observados daqui em diante, para evitar o aparecimento de novas epidemias, entre os quais: a) reduzir o desmatamento e a ocupação desnecessária de áreas virgens; b) proibir o comércio ilegal e a caça de animais selvagens; c) evitar a criação intensa (concentrada em pouca área) de animais; c) evitar o uso de antibióticos na criação de animais, a fim de impedir o surgimento da resistência aos antibióticos; d) estancar as mudanças do clima, que podem forçar  o deslocamento de espécies para outras regiões (inclusive bactérias e vírus);

- A Agencia Internacional de Energia (IEA) sugere que sejam feitos grandes investimentos em fontes de energia renovável, com o apoio financeiro de governos e instituições internacionais. A dependência dos combustíveis fósseis deve ser gradualmente reduzida a praticamente zero até por volta de 2050. Já há uma tendência nos países ricos em se tornarem cada vez menos dependentes desta fonte energética. Na Alemanha, as grandes empresas do setor privado solicitaram recentemente ao governo Merkel, de que condicione qualquer ajuda financeira do governo ao setor privado às ações de redução de emissões de GEE;

- Nos países pobres e menos desenvolvidos será necessário implantar uma rígida agenda de melhoria da infraestrutura; principalmente no que se refere à questão do saneamento, condições de moradia, transporte público e saúde. Na atual pandemia ficou patente que as populações mais pobres são as mais afetadas pelas consequências sanitárias e econômicas da crise;

- Além dessas, há uma série de outras iniciativas sendo discutidas, para as quais governos e ONGs estão criando estratégias de atuação, envolvendo: consumo consciente, extensos programas de redução na geração de resíduos e de agricultura orgânica.


(Imagens: mosaicos bizantinos)


      

Leituras diárias

sexta-feira, 8 de maio de 2020


“A dura realidade é que a maioria das pessoas que estão nas camadas de cima da pirâmide social têm conhecimento, habilidade e esforço ‘médios’: são medíocres. Se, num passe de mágica, todos virassem pobres e tivessem de começar a vida do zero, a avassaladora maioria permaneceria pobre até o resto de seus dias, sem conseguir escapar das camadas mais baixas do cruel funil do capitalismo. Não tentem me convencer, portanto, de que esse sistema é meritocrático. A não ser que nascer rico seja um grande mérito.” (Moreira, p. 42)

Eduardo Moreira, O que os donos do poder não querem que você saiba

Leituras diárias

quinta-feira, 7 de maio de 2020


"As pessoas foram divididas entre conservadoras ou revolucionárias. Petralhas e coxinhas. Garotos de condomínio ou marginais. E, curiosamente, num ótimo exemplo de profecia autorrealizável, acabaram realmente se tornando aquilo que lhes foi rotulado pela sociedade. É essa, aliás, a intenção de criar rótulos: controlar como as pessoas vão se comportar, pensar e reagir aos fatos para manter a ordem existente." (Moreira, p.85)

Eduardo Moreira, O que os donos do poder não querem que você saiba

Leituras diárias

quarta-feira, 6 de maio de 2020


"Só existem dois tipos de investimentos! Na verdade, todas as opções que você acha que tem à disposição resumem-se somente a uma destas duas, como já disse: ações ou dívidas. Claro, elas recebem dos bancos diversas embalagens diferentes para parecer que você tem dezenas de alternativas e numa delas deve residir o cálice sagrado para deixar você rico da noite para o dia. A rigor, ou você está comprando um título de dívida, ou está comprando uma participação societária em uma empresa, as ações." (Moreira, p.35)

Eduardo Moreira, O que os donos do poder não querem que você saiba 

Tem que mudar

sábado, 2 de maio de 2020
"Não há loteria que acabe com pobreza de espírito."   -   Millôr Fernandes   -   A Bíblia do caos


É bastante provável que em nenhum momento da história brasileira as mazelas do povo tivessem sido expostas de forma mais evidente do que agora. Não que elas não existissem antes, evidentemente. Mas uma soma de acontecimentos provocados pela crise do vírus corona, fez com que se tornassem perceptíveis de maneira escancarada.

A inesperada e imediata interrupção de quase todas as atividades econômicas, colocou em cheque a maneira como a maior parte dos brasileiros foi forçada a sobreviver ao longo das últimas décadas – sob certa ótica, ao longo de toda a história. Com empregos mal remunerados, subempregados ou trabalhadores informais, todos com pouco ou nenhum amparo da legislação trabalhista, grande parte destas pessoas não dispõe de reservas financeiras para poder viver algumas semanas, quiçá alguns dias, sem receber pagamento. Para muitos a situação se tornou desesperadora, já que falta até a comida para preparar o almoço ou a janta.

A questão do perigo de contágio pelo vírus também mostrou as péssimas condições em que parte da sociedade é colocada para viver. Favelas com pouco espaço, residências sem isolamento e água potável, falta de tratamento de esgoto e coleta regular de resíduos domésticos. Enfim, o ambiente ideal para uma rápida propagação da virose, como tem ocorrido em várias localidades, especialmente em Manaus e Recife, onde as condições da população ainda são piores do que em outros lugares.

Quando se trata de casos de saúde, todas estas pessoas dependem do Sistema Único de Saúde (SUS), o qual, nos últimos anos – e especialmente durante o governo Bolsonaro – foi submetido a um processo de lento sucateamento. A intenção última dos administradores do sistema de saúde era gradualmente transferi-lo ao setor privado. Mas, no caminho da privatização surgiu a crise do covid-19.

Criou-se o cenário para a pior situação possível: crise econômica reduzindo drasticamente o emprego formal e informal, aliada a uma pandemia que sobrecarrega o único sistema de saúde capaz de atender 70% da população brasileira, que não dispõem de convênios médicos privados (os quais, aliás, também estão operando no limite).

Os recursos liberados pelo governo para ajudar esta parte da população serão, talvez, suficientes para cobrir despesas de alimentação e um ou outro gasto inadiável, apenas isso. Muitos, no entanto, devido a uma série de empecilhos, estão encontrando dificuldades em sacar o dinheiro. Acesso a caixas eletrônicos, baixar programas de aplicativo para o celular, abrir contas em bancos ou solicitar CPF na Receita Federal, acessar sites e outros procedimentos, não fazem parte do dia a dia da maior parte destes brasileiros. Não porque não quisessem. Mas porque nunca lhes foram dadas as oportunidades de estudar, ter uma ocupação melhor, renda mais alta; ter tempo para se ocupar de outras coisas além de lutar pela sobrevivência – praticamente pela comida do dia seguinte.

Os acontecimentos trágicos mostram agora as condições nas quais vivem todos os dias, ao longo de 50, 60 ou talvez 70 anos, cerca de 50% ou 60% da população brasileira – 110 a 130 milhões de pessoas. Uma história terrível para um país grande e rico em recursos como o Brasil. Por isso, a crise terá sido em vão se continuarmos a manter o mesmo sistema político e econômico excludente, que alija mais da metade dos brasileiros dos benefícios da moderna civilização, para a qual contribuem tanto quanto os outros cidadãos. Acesso à moradia, educação, renda, alimentação e saúde deve ser para todos. E recursos para isso existem, basta procurar.          


(Imagens: fotografias de Albert Renger-Patzsch)