Na perspectiva do paradoxo (IV)

sábado, 29 de agosto de 2020

 
"Sobretudo isto, o abandono. O seringueiro é, obrigatoriamente, profissionalmente, um solitário."   -   Euclides da Cunha   -   À margem da história 


No futuro talvez tentem mudar a história recente da degradação da floresta amazônica. Se empenharão em dizer, quem sabe, que o atual governo muito fez para coibir os crimes ambientais; a invasão de terras devolutas e áreas indígenas, o desmatamento ilegal e o garimpo clandestino. Não é impossível. Não tentam fazer o mesmo com a pandemia do covid, dando outra versão dos fatos e tentando eximir o governo de qualquer responsabilidade em relação à forma leniente como a crise está sendo administrada?

Apenas para que fique registrado e permaneça na memória, reunimos aqui algumas declarações de membros do atual governo sobre a questão da Amazônia e do meio ambiente:


“Só os veganos que comem só vegetais (consideram importante a questão ambiental). Outros países com baía não tão exuberante como a Angra conservam o meio ambiente. Se quiséssemos fazer uma maldade, cometer um crime, nós iriamos à noite ou em um fim de semana qualquer na baía de Angra e cometeríamos um crime ambiental que não tem como fiscalizar.” (Presidente Bolsonaro)

“Com toda a devastação que vocês me acusam de estar fazendo e de ter feito no passado, a Amazônia já teria se extinguido. Inclusive já mandei ver quem está à frente do Inpe, para que venha explicar em Brasília esses dados. Nosso sentimento é que isso não coincide com a verdade, e parece até que está a serviço de alguma ONG.” (Idem)

“É só você deixar de comer menos um pouquinho. Você fala para mim em poluição ambiental. É só você fazer cocô dia sim, dia não, que melhora bastante a nossa vida também.” (Idem)

 


“Não precisamos desmatar para comer, basta aumentar a produtividade” (ministra da agricultura Tereza Cristina)

“Não existe conflito entre o agro e preservação ambiental.” (Idem)

“Devemos estar cientes e preparados para atender as exigências do mercado internacional, por meio da cooperação entre governo e a cadeia produtiva.” (Idem)

“O agronegócio não precisa das terras da Amazônia para expandir sua produção no País.” (Idem)

 

“O pior inimigo do meio ambiente é a pobreza.” (Paulo Guedes, ministro da Economia)

“Vamos proteger o meio ambiente sem cair na armadilha de outros países.” (Idem)

“Sabemos que temos que reduzir os efeitos sobre o meio ambiente. Queremos apoio e compreensão para fazer isso melhor. O Brasil sabe da importância do desenvolvimento sustentável não apenas do ponto de vista fiscal, como do ponto de vista ambiental.” (Idem)

“O Brasil é um país que alimenta o mundo preservando seu ambiente.” (Idem)

 

“A nossa comunicação falhou desde o ano passado. Essa é uma verdade nua e crua, perdemos o controle da narrativa e estamos desde então na defensiva.” (Vice-presidente Hamilton Mourão)

“Precisamos atacar as causas do desmatamento ilegal de modo a permitir que a liberdade econômica possa prosperar em território no marco do Estado de Direito e em conformidade com a legislação ambiental brasileira.” (Idem)

“A reativação do Conselho da Amazônia Legal, em fevereiro de 2020, renovou o compromisso do Brasil para os parâmetros globais de sustentabilidade.” (Idem)

 

“A oportunidade que nós temos, que a imprensa está nos dando um pouco de alívio nos outros temas, é passar as reformas infra legais de desregulamentação, simplificação (...), ir passando a boiada, mudando todo o regramento e simplificando normas.” (Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente)

“Precisamos ir à Europa ouvir as críticas.” (Idem)

“Não temos desenvolvimento sustentável na Amazônia.” (Idem)

“Solução para a Amazônia é monetizá-la.” (Idem)

“Temos que discutir a mineração na Amazônia.” (Idem)

  

(Imagens: ilusões de ótica - várias fontes)

Leituras diárias

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

 



“Para Fichte, Schlegel e Schleiermacher, não pode haver conhecimento conceitual desse chão porque a pura liberdade é pura vacância ou negatividade, o que significa que não existe objeto a ser conhecido. De maneira semelhante, para a teologia judaico-cristã, Deus não pode ser conhecido – não apenas por nossas mentes serem incapazes de compreender uma entidade tão elevada, mas porque, para começo de conversa, ele nem é uma entidade.” (Eagleton, pag. 53)

 

Terry Eagleton, A morte de Deus na cultura


Leituras diárias

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

 


“Nietzsche exorta os chamados ‘homens superiores’ em A gaia ciência. Não adianta empenhar-se em pôr a Razão ao alcance das massas, que sustentam suas crenças sem razão e cujos pontos de vista são, desse modo, imunes à refutação através dela. O populacho ‘descansa eternamente’ e mal será sacudido por um rosário de argumentos racionais. Melhor deixá-lo cozinhar no caldo da própria ignorância. Pelo menos, provavelmente servirá para sufocar a rebeldia.” (Eagleton, pag. 29-30)

 

Terry Eagleton, A morte de Deus na cultura


Leituras diárias

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

 



“As sociedades racionalizadas tendem não só a empobrecer seus recursos simbólicos como a patologizá-lo. Se uma religião enraizada na Razão é morna, uma religião sem tal enraizamento tende a ser tórrida. Aquela corre o risco de ver sua autoridade enfraquecida, enquanto esta talvez desencadeie um ‘entusiasmo’ anárquico nas massas. ‘Deus é puro, ilimitado, livre Sentimento’, empolga-se Ludwig Feuerbach, mas politicamente tais sentimentos podem ser difíceis de controlar.” (Eagleton, pag. 40-41)

 

Terry Eagleton, A morte de Deus na cultura


segunda-feira, 24 de agosto de 2020

 

Notas rápidas (homenagem a C. G. Lichtenberg)

sábado, 22 de agosto de 2020

                                                             

                 



"Um túmulo é sempre a melhor fortaleza contra as tempestades do destino."

(C. G. Lichtenberg, Aforismos)              


Cultura e democracia 


Ao mesmo tempo em que escrevíamos este texto, o governo já havia anunciado que no orçamento da União de 2021 planeja aumentar os recursos do Ministério da Defesa, ao mesmo tempo em que reduzirá as verbas da Educação e da Saúde.

A Reforma Fiscal planejada pelo governo, fará com que os livros, que são isentos de tributos, paguem 12% em impostos. Consultado, o ministro da Economia Paulo Guedes comentou que a atual isenção de impostos para os livros “beneficia quem poderia pagar mais impostos” – como se apenas os ricos fossem leitores.

A Cinemateca Brasileira, localizada em São Paulo e contendo o maior acervo de filmes e imagens da América do Sul está fechada. Não dispõe de recursos nem para a manutenção do prédio e a conservação do material. Os funcionários foram dispensados e o governo federal não assumiu sua administração, ainda que o tenha prometido anteriormente.

Apesar do Estado brasileiro declarar assegurar liberdade religiosa a todo o cidadão desde a Constituição de 1891 (“todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum”), são constantes os atos de desrespeito da Constituição. Tornaram-se comuns os casos de perseguição aos fiéis das religiões afro-brasileiras por parte de membros de cultos cristãos fundamentalistas. Em muitos casos umbandistas e candomblecistas são forçados a esconder sua crença, seja no bairro onde moram ou nas redes sociais, para não serem achincalhados ou hostilizados. No país do “Deus acima de todos”, certo tipo de fiel parece se achar mais perto da divindade do que os de outras religiões. O poder público, quando confrontado com tais fatos, reage apenas quando a agressão chega à imprensa.

A divulgação de fake news, as notícias falsas, são disseminadas por redes de grupos organizados especificamente para este fim: desinformar e confundir parte da população menos esclarecida. Não faltam ataques a políticos e membros do STF, personalidades, artistas; afrontas contra a China e ONGs, a rede Globo e a imprensa em geral. Pululam as falsas terapias para a cura do covid, ataques às vacinas de todos os tipos, e muito mais. Prolifera também a divulgação de supostos projetos governamentais em andamento, baseados em dados e imagens inverídicas. Centrais de disseminação de notícias falsas transformaram as mídias sociais em terra de ninguém, onde grande parte dos relatos são inverídicos, semeando a ignorância e a intolerância.

Recentemente, um grupo de radicais de direita se intitulando religioso, tentou impedir um aborto autorizado pela Justiça, realizado por uma equipe médica em uma menina de dez anos, que havia sido estuprada. Atacando a criança aos gritos na frente do hospital onde estava internada, e tentando invadir o local, os fanáticos foram desalojados por membros do Fórum de Mulheres de Pernambuco. O objetivo político daqueles que estão por trás deste movimento é, evidentemente, criar condições jurídicas e influenciar a opinião pública para que a discussão da descriminalização do aborto não ocorra.

Sinais dos tempos. Parece diminuir a valorização do conhecimento, da cultura, da tolerância, da liberdade e da democracia. Nunca, em nenhum período da história brasileira a aversão à cultura, ao conhecimento, à ciência (e à discussão de suas teorias) foi tão incisiva e até estimulada. Cresce uma visão deturpada do que é a liberdade individual (“por que sou obrigado a usar a máscara contra a covid?”) e a democracia (“posso falar o que quero de quem quero!”), associadas a um moralismo de fachada (“vamos valorizar a família!”) e rigorista.

                

Leituras diárias

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

 


Não admira que a história do design moderno seja contada com tanta frequência como uma sucessão de cadeiras de relativo prestígio e não como uma de carros ou de pistolas ou de tipos de quaisquer outros concorrentes para calibrar o enorme leque de abordagens possíveis ao design, dentro dos parâmetros de um único tipo de objeto.” (Sudjic, pág. 181)

 

Deyan Sudjic, A linguagem das coisas



Leituras diárias

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

 



Uma das ideias fundamentais do modernismo tal como aplicada ao design é que todos os objetos produzidos em massa de uma mesma série são idênticos entre si. Não têm, e de fato nem se pretendia que tivessem, a aura que Walter Benjamin descreveu como uma característica essencial da obra de arte. Em vez disso, oferecem outros consolos: o brilho mágico do feito à máquina e a ilusão de perfeição. Mas apesar do que pretendia fazer e ser, a produção em massa pode rapidamente adotar características análogas às do trabalho artesanal.” (Sudjic, pág. 203)


Deyan Sudjic, A linguagem das coisas


Leituras diárias

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

 

O design, em todas as suas manifestações, é o DNA de uma sociedade industrial – ou pós-industrial, se é isso o que temos hoje. É o código que precisamos explorar se quisermos ter uma chance de entender a natureza do mundo moderno. É um reflexo de nossos sistemas econômicos. E revela a marca da tecnologia com que temos que trabalhar. É um tipo de linguagem, e é reflexo de valores emocionais e culturais.” (Sudjic, pág. 49)

 

Deyan Sudjic, A linguagem das coisas


DIGA NÃO À TRIBUTAÇÃO DOS LIVROS!

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

 

DIA DO FILÓSOFO

domingo, 16 de agosto de 2020

Pandemia e fome

sábado, 15 de agosto de 2020

 

"Da fome, da peste e da guerra livrai-nos Senhor!"

(Oração da ladainha de Todos os Santos, Portugal no século XIV)


A pandemia do coronavírus mostra o quanto a sociedade brasileira continua sendo excludente em suas relações econômicas. Dados demonstram que mesmo colocado entre as dez nações mais industrializadas do mundo e sendo a nona maior economia no planeta, com um PIB de US$ 1,9 trilhão em 2019, o Brasil mantêm quase um terço de sua população – cerca de 70 milhões segundo dados recentes – vivendo na pobreza e abaixo da linha da pobreza. A exclusão social fica ainda mais patente, quando estudos recentes mostram que a parcela da população vivendo na extrema pobreza caiu para os níveis mais baixos dos últimos quarenta anos, exatamente por conta dos mecanismos de transferência de renda, criados por causa da crise econômica gerada pela pandemia. Situação paradoxal: a pandemia ameaça a manutenção de relações de exploração, beneficiando os pobres e miseráveis.    

A riqueza no Brasil, historicamente constituída pela posse de grandes extensões de terra, o latifúndio, sempre esteve nas mãos de poucos. Este é um forte motivo pelo qual o país, que até a década de 1950 tinha uma economia baseada na agricultura, até hoje nunca chegou a implantar uma verdadeira reforma agrária. Durante parte do período imperial até a primeira república, a diminuta classe média urbana era formada por pequenos empresários, funcionários do comércio e do serviço público; tipos sociais retratados nos romances de Lima Barreto e Machado de Assis. Remediados, pobres, miseráveis e, até 1888, os escravizados, constituíam a maior parte da população. 

A partir dos anos 1930 e mais acentuadamente com o início da industrialização na década de 1950, surge uma classe média industrial, formada por trabalhadores das indústrias e de setores econômicos ligados às suas cadeias produtivas. Ao longo das décadas de 1970, 1980 e 1990, crises econômicas externas e internas tolheram de diversas maneiras o desenvolvimento da economia, limitando a criação de empregos, comprimindo salários e gerando desemprego. Tais fatores, associados às incipientes políticas públicas nas áreas sociais e de infraestrutura, contribuíram para que a renda se concentrasse e o número de pobres e miseráveis crescesse gradativamente, acompanhando o crescimento populacional.

A situação econômica e a redução da miséria teve pequena melhora quando da criação do “Plano Real”; conjunto de medidas que estancaram a persistente inflação inercial, implantado em 1994 no final do governo de Itamar Franco. Com a relativa estabilização da economia, o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) diminuiu o percentual da população extremamente pobre de 20,3% para 15,2%. Extremamente pobres, segundo padrões adotados pelo Banco Mundial, são os indivíduos que ganham menos de US$ 67,- (cerca de R$ 367,- em agosto de 2020) por mês.

Significativa mudança ocorreu no governo de Lula da Silva (2003-2010), graças a fatores da economia mundial e da adoção de políticas internas de geração de renda. Assim foi possível, pela primeira vez na história do país, diminuir o número de pobres e miseráveis de 15,2% para 5,3% da população. Programas sociais e a criação de postos de trabalho no setor privado contribuíram para que 35 milhões de pessoas pudessem se integrar à classe média (classes C e D, de acordo com o padrão de consumo). A expansão da economia e a incorporação de milhões de cidadãos ao consumo, principalmente no período 2006-2010, fez com a economista Laura Carvalho criasse a expressão “milagrinho econômico”, referindo-se a este período em seu livro Valsa Brasileira: do boom ao caos econômico. A expressão é uma alusão ao chamado “milagre econômico brasileiro”, ocorrido entre 1968 e 1973, quando o PIB do país alcançou um crescimento anual de 11%.

No final do primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff (2014) a economia brasileira começou a entrar em crise. O processo de impedimento da presidente (2016), somado ao aumento das dificuldades econômicas pelas quais passava o país, ajudaram a desacelerar ainda mais a economia, gerando uma grande crise de desemprego e, consequentemente, o aumento da pobreza e da miséria. A anomia econômica que se acentuou no quadriênio 2016-2019 fez com o índice dos extremamente pobres chegasse a 6,7% da população – cerca de 13,8 milhões de pessoas – no final de 2019. A instabilidade se aprofundaria ainda mais com recessão econômica mundial, causada pela pandemia a partir de fevereiro de 2020.  

Com a crise do coronavírus a atividade econômica mundial, que ainda não havia se recuperado totalmente da crise de 2008, sofreu um novo baque. Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), a economia da União Europeia deverá sofrer uma queda de 7,5% em seu PIB em 2020. A maior economia da Europa, a alemã, encolherá 7,0%, enquanto que a dos Estados Unidos cairá 5,9%, a do Japão 5,2%. Exceções são a Índia, que crescerá 1,9% e a China, com 1,2%. Os dados ainda não são definitivos e muito provavelmente serão revistos ainda algumas vezes durante o ano. Com relação à economia brasileira previa-se uma queda de 6% no PIB em 2020. Agora, início de agosto, a previsão é de que haja uma retração de 4,8% na atividade econômica.

A contração da economia ocorre através do fechamento temporário ou definitivo de empresas e gera o aumento no número de desempregados. Além disso, com a crise, até os trabalhadores avulsos e informais estão impossibilitados de obterem renda. Segundo dados pesquisados pela Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil deve encerrar o ano de 2020 com 9,5% de sua população – cerca de 20 milhões de pessoas – na condição de extrema pobreza. O estudo da ONU também prevê que o número de pobres, os que ganham menos de US$ 140,- (R$ 765,-) por mês segundo critérios do Banco Mundial, também aumentará de 20% (2019) para 26,5% em 2020.

Através dos programas de auxílio emergencial que até agosto de 2020 beneficiaram 64 milhões de pessoas, os pobres e extremamente pobres, que não dispunham de outro tipo de rendimento – salário fixo, seguro-desemprego, aposentadoria, pensão – puderam garantir sua sobrevivência em níveis extremamente básicos. Um estudo realizado em junho de 2020 pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV), baseado em dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio COVID 19 (Pnad Covid-19), mostra que entre maio e junho de 2020 a extrema pobreza no Brasil foi a menor em 40 anos. A pesquisa demonstra que a parcela da população na faixa da extrema pobreza caiu de 4,2% da população (8,8 milhões de pessoas) para 3,3% (6,9 milhões de pessoas), entre os meses de maio e junho deste ano (o auxílio emergencial começou a ser pago em abril). Da mesma forma, a faixa da população considerada pobre, diminuiu de 23,8% para 21,7%. Segundo o estudo citado, esta redução no número dos extremamente pobres coincide com o aumento da cobertura de auxílio emergencial, que entre maio e junho passou de 45% para 50% da população (29,4 milhões de domicílios, nos quais vivem 49,5% da população).

(Observação: as diferentes estatísticas que consultamos mostram discrepância com relação à parcela da população situada na faixa da extrema pobreza. Em 2019 o IBGE informou que 6,7% da população estava nesta situação. A pesquisa do Ibre/FGV parte de 4,2% em maio de 2020. Terá havido uma redução de 2,5% na população dos extremamente pobres em apenas algumas semanas, entre abril e maio de 2020? Não conseguimos encontrar uma resposta para esta diferença na estatística oficial. Esta incongruência, no entanto, não compromete a proposta deste texto).

O auxílio emergencial não foi aprovado com facilidade. O Ministério da Economia afirmava de início que não dispunha de recursos para tais dispêndios, que ultrapassariam as metas do orçamento da União. Os fatos se precipitaram e o governo anuiu um auxílio mensal de R$ 200,-. Foi somente com a mobilização do Congresso que o governo foi convencido a fixar o valor do auxílio emergencial em R$ 600,-. Assim, pessoas que durante a maior parte de suas vidas nunca tiveram uma renda regular, num valor minimamente aceitável (o valor de um salário mínimo é de R$ 1.045,-), começaram a dispor de recursos para adquirirem o básico, talvez até com um pequeno gasto maior do que o usual.

O Bolsa Família atende cerca de 14 milhões de famílias e estimam os técnicos que 3,6 milhões de famílias precisam mas ainda não recebem este benefício. No entanto, mesmo se o recebessem, seus recursos não seriam suficientes para socorrer as famílias nesta situação de necessidade extrema. Milhões de brasileiros que no início da crise econômica em 2014 tinham perdido o emprego e acabaram caindo na informalidade, agora, com a suspensão total e imediata de todas as atividades econômicas, não têm mais o “bico”, ganho eventual que completava a renda do Bolsa Família. Para todos estes o auxílio emergencial foi a única alternativa contra a fome.    

A situação colocou a nu, mais uma vez, a forma como se dão as relações econômicas e sociais na sociedade brasileira. Enquanto grandes empresas recebem empréstimos subsidiados e isenções fiscais, grandes rendas e fortunas são pouco taxadas, somente uma grande crise econômica pôde fazer com que parte das imensas riquezas que circulam entre poucos, fossem divididas com aqueles que mais precisavam – 30% da população, aproximadamente.

O governo prevê que existem fundos disponíveis para manter a ajuda emergencial até setembro de 2020. Mas, e depois, de onde virão os recursos? O programa de ajuda, certamente, não poderá ser suspenso, sob pena de aumentarmos a anomia social que existe no país, ou talvez coisa pior. Especialistas e o Congresso vêm discutindo um programa de renda básica universal, que a equipe do Ministério da Economia planeja lançar no âmbito do programa “Renda Brasil”. O custo desta iniciativa seria de aproximadamente R$ 50 bilhões ao ano, superior aos gastos do Bolsa Família, de cerca de R$ 30 bilhões ao ano. A proposta prevê uma renda básica permanente, uma continuação do auxílio emergencial de R$ 600,-, que substituiria o Bolsa Família. Dados da Caixa Econômica Federal indicam que 59 milhões de brasileiros são considerados elegíveis para receberem este suporte público.

Propostas para a criação e o financiamento de um programa de renda básica não faltam. O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), por exemplo, sugere uma renda no valor de meio salário mínimo mensal, mais um quarto de salário por criança ou adolescente menor de 18 anos. Segundo o professor da Escola de Negócios da PUCRS, o economista Ely José Mattos, o projeto da renda básica poderia ser custeado pelos recursos financeiros parados em fundos públicos, e através de uma reforma tributária de matriz progressiva, que desonerasse os mais pobres.

Doutor em Ciências Econômicas e professor da Faculdade de Economia da Universidade de Barcelona, o espanhol Daniel Raventós é autor de diversos artigos e livros tratando da renda básica. Este professor sugere que o programa seja implantado através de uma redistribuição de renda dos 20% mais ricos ao resto da população. No Brasil esta faixa dos mais ricos talvez estivesse limitada a 2% a 3% da população. Em junho deste ano o governo espanhol aprovou um projeto de renda básica, destinado à parte da população com baixa receita, para fazer frente ao impacto na economia criado pela pandemia do COVID 19. No âmbito deste projeto cada cidadão receberá € 462,- (cerca de R$ 2,7 mil reais).

A economista Laura Carvalho, em seu livro Valsa Brasileira: do boom ao caos econômico, escreve que “[...] tributar os mais ricos e gastar o mesmo valor com políticas que elevam a renda dos mais pobres direta ou indiretamente tem alto efeito multiplicador. Isso porque enquanto os mais ricos consomem uma parte relativamente pequena da sua renda, os mais pobres consomem tudo ou quase tudo daquilo que ganham, o que contribui para dinamizar a economia. Em outras palavras, uma reforma tributária progressiva deve elevar a tributação sobre a renda e o patrimônio dos mais ricos – o Brasil também taxa relativamente pouco as grandes heranças e propriedades – e reduzir a tributação sobre o consumo, a produção e os lucros reinvestidos nas empresas.” A economista ainda comenta que “se fosse cobrada uma alíquota maior de IRPF (35%) para rendas muito elevadas, a arrecadação aumentaria em pelo menos 90 bilhões – mais da metade do déficit primário do governo federal em 2016.”

Desde o início do regime republicano brasileiro e, mais acentuadamente, com o início da industrialização e a dinamização do processo econômico, estava implícito nas políticas econômicas dos sucessivos governos – pelo menos nas declarações – o objetivo de melhorar as condições de vida das parcelas mais pobres da população. Desde o término da Guerra Fria, “liberdade e prosperidade” é a promessa da maioria das democracia liberais por todo o mundo, acompanhando a expansão da economia de mercado. Grande parte delas, no entanto, arrefecido o entusiasmo com os supostos mecanismos de distribuição de riqueza através da “mão invisível do mercado”, acabou oferecendo mais liberdade do que prosperidade. Na ausência de programas sociais eficientes e de mecanismos de taxação e distribuição das riquezas, partes significativas das populações permanecem em condições de pobreza e miséria, situação da qual a América Latina é um exemplo típico.

Agora o país encontra-se em uma encruzilhada. O Brasil, especialmente, se tornou um caso exemplar de conjunção de políticas de proteção social ineficientes – muitas sendo reduzidas pelo atual governo – e permanente concentração de renda – 1% dos brasileiros concentram 30% da renda total do país e 10% dos mais ricos possuem 43% das riquezas. Esta talvez seja a última oportunidade para a sociedade brasileira: implantar reformas e, aos poucos, juntar-se às nações desenvolvidas e relativamente harmoniosas sob ponto de vista econômico, social e cultural. Ou manter as relações econômicas e sociais da maneira como estão, colocando-se no rol das sociedades sempre sujeitas a crises, nas quais, segundo o filósofo Thomas Hobbes, a vida se torna “solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta, na qual cada um é o lobo para o outro, em guerra de todos contra todos.”


(Imagens: pinturas de Robert Colescott)

Leituras diárias

sexta-feira, 14 de agosto de 2020


“Exceto por uma minoria insignificante, nunca antes esses 3 bilhões de indivíduos haviam tido a possibilidade de competir, colaborar, por viverem em economias em grande parte fechadas, com estruturas econômicas e políticas muito verticais e hierarquizadas. Refiro-me à população da China, Índia, Rússia, Leste Europeu, América Latina e Ásia Central.” (Friedman, 210)


Thomas L. Friedman, O mundo é plano – Uma breve história do século XXI


Leituras diárias

quinta-feira, 13 de agosto de 2020


“Marx foi um dos primeiros a vislumbrar a possibilidade do mundo como um mercado global, sem entrave das divisões de nacionalidade – explica Sandel. Embora fosse o mais ferrenho crítico do capitalismo, ficava boquiaberto diante de seu ímpeto para derrubar obstáculos e criar um sistema mundial de produção e consumo. No Manifesto Comunista, ele descreve o capitalismo como uma força fadada a dissolver todas as identidades feudais, nacionais e religiosas e dar origem a uma civilização universal, regida pelos imperativos do mercado.” (Friedman, 233)


Thomas L. Friedman, O mundo é plano – Uma breve história do século XXI

Leituras diárias

quarta-feira, 12 de agosto de 2020


“Sei, diz você, mas por que então foi só nos últimos anos que se começou a ver, nos Estados Unidos, as grandes explosões de produtividade que deveriam acompanhar tamanho salto tecnológico (a criação da web)? Muito simples: porque sempre demora para todas as tecnologias associadas, bem como processos e hábitos empresariais necessários para aproveitá-las ao máximo, convergirem e gerarem o próximo surto de produtividade.

A introdução de uma nova tecnologia, por si só, nunca é suficiente. As grandes irrupções de produtividade ocorrem quando a nova tecnologia se combina com novas maneiras de atuar.” (Friedman, 205)


Thomas L. Friedman, O mundo é plano – Uma breve história do século XXI


Leia, leia leia

terça-feira, 11 de agosto de 2020

 

Agora os gafanhotos

sábado, 8 de agosto de 2020
"A natureza compraz-se em um jogo de antíteses."   -   Euclides da Cunha   -   Os Sertões 

Nas últimas semanas a região Sul do país foi constantemente ameaçada pela chegada de nuvens de gafanhotos, vindas da Argentina e formadas no Paraguai. Fato pouco comum no Brasil, segundo registros históricos, a praga é constituída por gafanhotos da espécie Schistocerca cancellata, a maior e mais robusta entre este tipo de inseto. Os machos têm 4 centímetros e as fêmea chegam a 6 cm. Com seu aparelho mastigador composto por diversas estruturas e uma enorme mandíbula, este animal é capaz de devorar um ramo de vegetal em poucos segundos.

Existem sete mil espécies conhecidas de gafanhotos. Destas, cerca de vinte pertencem ao grupo conhecido como espécies gregárias de gafanhotos, aquelas que formarão os enxames, reunindo milhões de indivíduos, que juntos podem se deslocar por até 150 quilômetros em um dia. Alimentando-se de qualquer tipo de planta, estes animais ingerem de 30% a 70% de seu peso diariamente. Estudos da Organização das Nações Unidas para Alimentação e a Agricultura (FAO) indicam que estes insetos, ocupando uma área de 1 km² e perfazendo cerca de 40 milhões de indivíduos, podem ingerir um volume equivalente de vegetais àquele consumido por 35 mil pessoas. No caso das nuvens que rondam a fronteira brasileira, estima-se que sejam compostas por cerca de 40 milhões de espécimes.

Pragas de gafanhotos acompanham a humanidade desde a invenção da agricultura, por volta de 8 mil anos a.C. O flagelo também é mencionado pelos antigos egípcios, na Ilíada de Homero e no texto do livro sagrado hindu Mahabharata. No início do século I, o historiador romano Plínio, o Velho, menciona a morte de 800 mil cidadãos do império, provocada pela destruição das lavouras por pragas de gafanhotos, na região que atualmente inclui a Líbia, a Argélia e a Tunísia. Ao longo da história os relatos se sucedem desde o passado até os mais recentes: Estados Unidos (1874), Egito (2004), México (2006), Israel (2013) e Leste da África (2019/2020). O relato mais famoso que temos do passado é o de Antigo Testamento, onde se lê em Êxodo 10: “Pela manhã, o vento havia trazido os gafanhotos, os quais invadiram todo o Egito e desceram em grande número sobre toda a sua extensão. Nunca antes houve tantos gafanhotos, nem jamais haverá. Eles cobriram toda a face da terra de tal forma que ela escureceu”.

Os gafanhotos, como outras espécies, proliferam em maior número quando a quantidade de seus predadores diminui. A diminuição da biodiversidade de certas regiões através do corte da vegetação original ou da prática extensiva de monocultura, elimina ou afasta os predadores dos gafanhotos: aves, répteis, anfíbios, insetos, aracnídeos, etc. Condições climáticas também favorecem a proliferação desta espécie. Solos secos e clima quente são o habitat de grande parte das espécies de gafanhotos gregários.

Experiências da The Global Locust Initiative (Iniciativa Global do Gafanhoto), programa de estudos mantido pela Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, mostraram, por exemplo, que espécies de gafanhotos gregários podem sobreviver até um mês sem água. Desta forma, enquanto os insetos polinizadores, como as abelhas, borboletas, e besouros terão que lutar para se adaptarem a um planeta em processo de aquecimento, os gafanhotos já contam com esta vantagem competitiva. “Se a mudança do clima acelerar a temperatura e a aridez, como é previsto ocorrer em muitas áreas, é fácil imaginar que certas espécies de gafanhotos vão expandir sua área de atuação, diz Rick Overson, coordenador de pesquisas do The Global Locust Initiative.   

O combate dos enxames de gafanhotos através de inseticidas – mesmo quando feito de maneira controlada, como realizado pela Secretaria de Administração Agropecuária do Rio Grande do Sul – pode causar diversos impactos ao meio ambiente, segundo especialista do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos. Em entrevista à reportagem do G1, o especialista da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Mohamed Habib, comenta que não há inseticida seguro. Restos do produto serão carreados para o lençol freático, para rios e córregos. A vegetação contaminada poderá servir de pasto para animais de criação e selvagens, afetando toda uma cadeia biológica e podendo alcançar os humanos. Além disso, segundo informação da CroLife, entidade que representa as empresas produtoras de pesticidas, não existe defensivo químico ou biológico registrado no Ministério da Agricultura, para combater esta espécie de praga de gafanhotos – pelo fato de ser pouco comum no país. Na falta de um produto eficiente e efetivo, corre-se o risco de combater o gafanhoto com um canhão, ou seja, com um inseticida potente e de amplo espectro, causando mortandade entre outras espécies e provocando grande poluição.

O uso constante de defensivo, segundo especialistas, não resolve o problema. Em entrevista para o site Diálogos do Sul (https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/brasil/65450/para-combater-nuvem-de-gafanhotos-governo-libera-mais-usos-para-agrotoxicos), o professor Marcos Lhano, do Centro de Ciências da Natureza da Universidade Federal de São Carlos, afirma que a aplicação de produtos químicos “é uma solução pontual. A Índia, Egito, Marrocos e outros países da África enfrentam esses problemas há décadas. Quando chega a nuvem ela é recebida com pulverização de inseticidas por aviões, carros adaptados e até manualmente, mas o problema nunca é erradicado. No ano seguinte ele volta”, explica. O professor informa que há outras maneiras de prevenir as pragas de gafanhotos, que além de não serem agressivas previnem a formação de uma nuvem de insetos. “Uma vez que o produtor vê que estão aparecendo muitas ninfas (gafanhotos novos) em uma quantidade maior que o normal, ele deve fazer o controle biológico. Temos uma série de produtos baseados em fungos entomopatogênicos, que causam doenças nos gafanhotos. Esse fungo demora para agir, mas elimina os indivíduos antes que eles atinjam a idade adulta, que é quando eles conseguem formar nuvens”, conta.

Há algo de comum entre o aparecimento das nuvens de gafanhotos e outros fenômenos naturais, envolvendo grande número de organismos de uma mesma espécie, como a maré vermelha (excessiva proliferação de algas tóxicas devido à poluição das águas litorâneas) e o aparecimento de diversos tipos de vírus (coronavírus, por exemplo). Através de nossas atividades econômicas estamos interferindo excessivamente no ambiente, alterando as condições físicas, químicas e biológicas que permitem a sobrevivência de forma razoavelmente equilibrada das diversas espécies e do ecossistemas. Se, através de nossas ações (geralmente ignoramos todas as consequências de nossas ações no meio ambiente) interferimos na sobrevivência de certas espécies – um microrganismo, um inseto ou mamífero, por exemplo – podemos dar início à uma reação em cadeia que pode levar à destruição de várias outras espécies ou, se levar ao surgimento de uma superbactéria ou de vírus desconhecido, de nossa própria extinção.   

(Imagens: pinturas de Kuroda Seiki)

Leituras diárias

sexta-feira, 7 de agosto de 2020


“Alguns micróbios podem mesmo se comunicar entre si gerando componentes que influenciem o comportamento de outros micróbios. As interações predador-presa entre micróbios quase sempre envolveram dicas moleculares, seja para manter à distância predadores potenciais, seja para servir como atrativo para seduzir a presa. Talvez sinais como esses tenham sido precursores dos tipos de sinal que nossas próprias células utilizam para trocar informações a fim de manter intactos o nosso corpo” (Shubin, pág 117)


Neil Shubin, A história de quando éramos peixes

Leituras diárias

quinta-feira, 6 de agosto de 2020


“Isso gera um quebra-cabeça extraordinário. No registro fóssil nada vemos, salvo micróbios, durante os primeiros 3,5 bilhões de anos da história da Terra. Então, de repente, no espaço talvez de 40 milhões de anos, apareceram todos os tipos de corpos: corpos de plantas, de fungos, de animais; corpos por todo lado. Os corpos foram uma verdadeira coqueluche. Mas, se levarmos ao pé da letra o trabalho de Nicole (Nicole King, pesquisadora da Universidade de Berkeley), o potencial para construir corpos já existia muito antes dos corpos surgirem em cena. Por que a ânsia por corpos após tanto tempo sem corpo algum?” (Shubin, pág 116)


Neil Shubin, A história de quando éramos peixes

Leituras diárias

quarta-feira, 5 de agosto de 2020


“Algumas análises chegaram a sugerir que mais de oitocentos tipos de moléculas são encontradas unicamente em animais dotados de corpo. Ao que tudo indica, isso sustentaria a noção de que os genes que ajudam as células a se unir para fabricar corpos sugiram juntamente com a origem dos corpos. E à primeira vista, parece fazer sentido que as ferramentas para a construção de corpos surgissem em conjunto com os próprios corpos.” (Shubin, pág 114)


Neil Shubin, A história de quando éramos peixes

Áreas verdes nas cidades

sábado, 1 de agosto de 2020
"Não há meio mais eficaz para dominar a multidão do que a superstição."   -   Baruch Espinosa


Se até há algumas décadas a maior parte da população mundial vivia no campo, hoje a população urbana já ultrapassou a rural. No Brasil, o processo de migração das áreas campestres para as cidades ocorreu de maneira bastante rápida a partir dos anos 1940, quando se iniciou o processo de industrialização do país. Atualmente, as cidades brasileiras abrigam cerca de 85% da população. O rápido crescimento dos municípios, trouxe consigo outros aspectos relacionados com a urbanização. Neste artigo trataremos especialmente das áreas verdes e da arborização urbana.  

A quantidade mínima de área verde nas cidades, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), é de 12 m²/h (metros quadrados por habitante); o ideal seriam 36 m²/h. Das grandes cidades brasileiras, a que mantêm a maior área verde por habitante é Goiânia, com 94 m²/h. Vitória (91 m²/h) e Curitiba (64,5 m²/h) são outras duas metrópoles bastante arborizadas. São Paulo, com cerca de 12 milhões de habitantes, tem aproximadamente 16 m²/h, enquanto que Nova York, cidade com perfil parecido ao da capital paulista, com 8 milhões de habitantes, dispõe de 23,10 m²/h de área verde por habitante. Há que se observar que na maioria das cidades a distribuição das áreas verdes é desigual: regiões com poder aquisitivo mais baixo e as periferias geralmente são menos arborizadas, possuindo poucos parques públicos arborizados. Bairros que concentram populações com maior poder aquisitivo, historicamente tiveram melhor planejamento urbano, dispondo de avenidas e parques arborizados. A cidade de São Paulo é um exemplo típico deste fato.

Áreas verdes são importantes no espaço urbano. A ideia de equipar as povoações com áreas verdes para o lazer e deleite de sua população, remonta à Antiguidade. Ficaram famosos na história os relatos do historiador grego Heródoto (485–425 a.C.) sobre os jardins suspensos da Babilônia, considerados uma das sete maravilhas do mundo antigo. Concretamente, descobriu-se vestígios de tais jardins na ruínas da cidade de Nínive, construídas pelo rei assírio Senaqueribe (704-681 a.C.). Na história moderna foi Napoleão (1769-1821), imperador da França, quem no início do século XIX introduziu a arborização nas avenidas e nos jardins púbicos de Paris, prática mais tarde disseminada em todo o mundo, inclusive no Brasil, a começar pela então capital, Rio de Janeiro. Ainda no século XIX, em sua segunda metade, começaram a ser construídos parques públicos destinados principalmente ao lazer dos operários. Estes viviam em condições bastante ruins em bairros industriais de cidades como Londres e Nova York e os parques era a melhor opção de lazer ao ar livre que tinham. 
    
Para muitos administradores públicos, a arborização e os parques ainda são considerados ornamentos urbanos relativamente caros, por necessitarem de cuidados regulares, e porque parte da população não exige sua implantação. No entanto, está cientificamente provado, que as árvores têm importante papel na saúde física e mental dos habitantes. Uma cobertura vegetal planejada, pode reduzir a temperatura média de uma cidade, dependendo do relevo, entre 2º C e 8º C. Todos nós sabemos a diferença em precisar caminhar uma longa distância no verão, sob sol forte, através de uma rua arborizada, e por outra sem árvores. Quando plantada perto de edifícios, a vegetação chega a reduzir o uso do ar condicionado em até 30%.

A influência da cobertura vegetal no clima da cidade e nos microclimas dos diferentes bairros também é muito grande. Medições constataram que na cidade de São Paulo, a diferença de temperatura entre os bairros pode variar em até 14º C. Ao longo dos últimos 60 anos, com a remoção de parte da cobertura vegetal na zona urbana e em seu entorno, a umidade da metrópole caiu e a temperatura média subiu. Medições indicam que atualmente a umidade do ar da cidade é 7% menor do que na década de 1930. Já faz muito tempo que São Paulo deixou de ser chamada de “a capital da garoa”, como era conhecida até o começo dos anos 1970.  

No que se refere à melhoria da qualidade do ar, uma árvore de porte pode absorver anualmente até 150 kg de dióxido de carbono. No site LastTrop (http://esalqlastrop.com.br/capa.asp?pi=calculadora_emissoes) encontra-se uma tabela, através da qual é possível calcular o número de árvores que deveriam ser plantadas, para compensar as emissões anuais de diversos tipos de veículos automotores. Além de incorporar o dióxido de carbono, as árvores também filtram o ar retendo poluentes, inclusive particulados liberados pela queima do diesel.

Pesquisas realizadas nas últimas décadas revelaram que em áreas arborizadas moradores e transeuntes sofrem menos de ansiedade. Inconscientemente, segundo os psicólogos, o ser humano se sente inseguro em largos espaços livres sem árvores, como são certas praças das nossas cidades. Nossos antepassados distantes, caçadores e coletores, davam preferência às paisagens com árvores, onde encontravam abrigo contra predadores, alimento e água. Estudos realizados em cidades americanas constataram que, em geral, bairros mais arborizados têm um índice de violência mais baixo, em comparação com outras áreas urbanas com pouca vegetação. 

Outro detalhe, muitas vezes esquecido por empresas incorporadoras, imobiliárias e planejadores urbanos, é que terrenos e casas localizados em áreas arborizadas, alcançam um valor de venda mais alto. Administrações públicas deveriam sensibilizar proprietários e usuários de imóveis em áreas centrais, para que valorizem e protejam as árvores plantadas em seus bairros, muitas vezes em frente aos seus prédios de apartamentos residenciais e suas lojas.

A crise climática provocada pelo gradual aquecimento da atmosfera aumentará inevitavelmente ao longo das próximas décadas, segundo os cientistas. No momento, pelo menos no Brasil, o tema não está sendo tratado, por causa da crise gerada pela pandemia do coronavírus e devido ao negacionismo climático do atual governo. Mas, sabemos que ambos passarão e em pouco tempo teremos que voltar a nos ocupar mais intensamente com o fenômeno climático.

A Organização da Nações Unidas (ONU) afirma que há necessidade de plantio de cerca de um trilhão de árvores em todo o planeta, ao longo dos próximos anos, a fim de compensar em parte o efeito das emissões de gases. Assim, toda a cidade, em qualquer parte do mundo, será convocada a dar sua contribuição, aumentando o número de parques e ampliando a arborização urbana.  

(Imagens: pinturas de Hans Hofmann)