Agora os gafanhotos

sábado, 8 de agosto de 2020
"A natureza compraz-se em um jogo de antíteses."   -   Euclides da Cunha   -   Os Sertões 

Nas últimas semanas a região Sul do país foi constantemente ameaçada pela chegada de nuvens de gafanhotos, vindas da Argentina e formadas no Paraguai. Fato pouco comum no Brasil, segundo registros históricos, a praga é constituída por gafanhotos da espécie Schistocerca cancellata, a maior e mais robusta entre este tipo de inseto. Os machos têm 4 centímetros e as fêmea chegam a 6 cm. Com seu aparelho mastigador composto por diversas estruturas e uma enorme mandíbula, este animal é capaz de devorar um ramo de vegetal em poucos segundos.

Existem sete mil espécies conhecidas de gafanhotos. Destas, cerca de vinte pertencem ao grupo conhecido como espécies gregárias de gafanhotos, aquelas que formarão os enxames, reunindo milhões de indivíduos, que juntos podem se deslocar por até 150 quilômetros em um dia. Alimentando-se de qualquer tipo de planta, estes animais ingerem de 30% a 70% de seu peso diariamente. Estudos da Organização das Nações Unidas para Alimentação e a Agricultura (FAO) indicam que estes insetos, ocupando uma área de 1 km² e perfazendo cerca de 40 milhões de indivíduos, podem ingerir um volume equivalente de vegetais àquele consumido por 35 mil pessoas. No caso das nuvens que rondam a fronteira brasileira, estima-se que sejam compostas por cerca de 40 milhões de espécimes.

Pragas de gafanhotos acompanham a humanidade desde a invenção da agricultura, por volta de 8 mil anos a.C. O flagelo também é mencionado pelos antigos egípcios, na Ilíada de Homero e no texto do livro sagrado hindu Mahabharata. No início do século I, o historiador romano Plínio, o Velho, menciona a morte de 800 mil cidadãos do império, provocada pela destruição das lavouras por pragas de gafanhotos, na região que atualmente inclui a Líbia, a Argélia e a Tunísia. Ao longo da história os relatos se sucedem desde o passado até os mais recentes: Estados Unidos (1874), Egito (2004), México (2006), Israel (2013) e Leste da África (2019/2020). O relato mais famoso que temos do passado é o de Antigo Testamento, onde se lê em Êxodo 10: “Pela manhã, o vento havia trazido os gafanhotos, os quais invadiram todo o Egito e desceram em grande número sobre toda a sua extensão. Nunca antes houve tantos gafanhotos, nem jamais haverá. Eles cobriram toda a face da terra de tal forma que ela escureceu”.

Os gafanhotos, como outras espécies, proliferam em maior número quando a quantidade de seus predadores diminui. A diminuição da biodiversidade de certas regiões através do corte da vegetação original ou da prática extensiva de monocultura, elimina ou afasta os predadores dos gafanhotos: aves, répteis, anfíbios, insetos, aracnídeos, etc. Condições climáticas também favorecem a proliferação desta espécie. Solos secos e clima quente são o habitat de grande parte das espécies de gafanhotos gregários.

Experiências da The Global Locust Initiative (Iniciativa Global do Gafanhoto), programa de estudos mantido pela Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, mostraram, por exemplo, que espécies de gafanhotos gregários podem sobreviver até um mês sem água. Desta forma, enquanto os insetos polinizadores, como as abelhas, borboletas, e besouros terão que lutar para se adaptarem a um planeta em processo de aquecimento, os gafanhotos já contam com esta vantagem competitiva. “Se a mudança do clima acelerar a temperatura e a aridez, como é previsto ocorrer em muitas áreas, é fácil imaginar que certas espécies de gafanhotos vão expandir sua área de atuação, diz Rick Overson, coordenador de pesquisas do The Global Locust Initiative.   

O combate dos enxames de gafanhotos através de inseticidas – mesmo quando feito de maneira controlada, como realizado pela Secretaria de Administração Agropecuária do Rio Grande do Sul – pode causar diversos impactos ao meio ambiente, segundo especialista do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos. Em entrevista à reportagem do G1, o especialista da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Mohamed Habib, comenta que não há inseticida seguro. Restos do produto serão carreados para o lençol freático, para rios e córregos. A vegetação contaminada poderá servir de pasto para animais de criação e selvagens, afetando toda uma cadeia biológica e podendo alcançar os humanos. Além disso, segundo informação da CroLife, entidade que representa as empresas produtoras de pesticidas, não existe defensivo químico ou biológico registrado no Ministério da Agricultura, para combater esta espécie de praga de gafanhotos – pelo fato de ser pouco comum no país. Na falta de um produto eficiente e efetivo, corre-se o risco de combater o gafanhoto com um canhão, ou seja, com um inseticida potente e de amplo espectro, causando mortandade entre outras espécies e provocando grande poluição.

O uso constante de defensivo, segundo especialistas, não resolve o problema. Em entrevista para o site Diálogos do Sul (https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/brasil/65450/para-combater-nuvem-de-gafanhotos-governo-libera-mais-usos-para-agrotoxicos), o professor Marcos Lhano, do Centro de Ciências da Natureza da Universidade Federal de São Carlos, afirma que a aplicação de produtos químicos “é uma solução pontual. A Índia, Egito, Marrocos e outros países da África enfrentam esses problemas há décadas. Quando chega a nuvem ela é recebida com pulverização de inseticidas por aviões, carros adaptados e até manualmente, mas o problema nunca é erradicado. No ano seguinte ele volta”, explica. O professor informa que há outras maneiras de prevenir as pragas de gafanhotos, que além de não serem agressivas previnem a formação de uma nuvem de insetos. “Uma vez que o produtor vê que estão aparecendo muitas ninfas (gafanhotos novos) em uma quantidade maior que o normal, ele deve fazer o controle biológico. Temos uma série de produtos baseados em fungos entomopatogênicos, que causam doenças nos gafanhotos. Esse fungo demora para agir, mas elimina os indivíduos antes que eles atinjam a idade adulta, que é quando eles conseguem formar nuvens”, conta.

Há algo de comum entre o aparecimento das nuvens de gafanhotos e outros fenômenos naturais, envolvendo grande número de organismos de uma mesma espécie, como a maré vermelha (excessiva proliferação de algas tóxicas devido à poluição das águas litorâneas) e o aparecimento de diversos tipos de vírus (coronavírus, por exemplo). Através de nossas atividades econômicas estamos interferindo excessivamente no ambiente, alterando as condições físicas, químicas e biológicas que permitem a sobrevivência de forma razoavelmente equilibrada das diversas espécies e do ecossistemas. Se, através de nossas ações (geralmente ignoramos todas as consequências de nossas ações no meio ambiente) interferimos na sobrevivência de certas espécies – um microrganismo, um inseto ou mamífero, por exemplo – podemos dar início à uma reação em cadeia que pode levar à destruição de várias outras espécies ou, se levar ao surgimento de uma superbactéria ou de vírus desconhecido, de nossa própria extinção.   

(Imagens: pinturas de Kuroda Seiki)

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