"A natureza compraz-se em um jogo de antíteses." - Euclides da Cunha - Os Sertões
Nas
últimas semanas a região Sul do país foi constantemente ameaçada pela chegada
de nuvens de gafanhotos, vindas da Argentina e formadas no Paraguai. Fato pouco
comum no Brasil, segundo registros históricos, a praga é constituída por
gafanhotos da espécie Schistocerca
cancellata, a maior e mais robusta entre este tipo de inseto. Os machos têm
4 centímetros e as fêmea chegam a 6 cm. Com seu aparelho mastigador composto
por diversas estruturas e uma enorme mandíbula, este animal é capaz de devorar
um ramo de vegetal em poucos segundos.
Existem
sete mil espécies conhecidas de gafanhotos. Destas, cerca de vinte pertencem ao
grupo conhecido como espécies gregárias de gafanhotos, aquelas que formarão os
enxames, reunindo milhões de indivíduos, que juntos podem se deslocar por até
150 quilômetros em um dia. Alimentando-se de qualquer tipo de planta, estes
animais ingerem de 30% a 70% de seu peso diariamente. Estudos da Organização
das Nações Unidas para Alimentação e a Agricultura (FAO) indicam que estes
insetos, ocupando uma área de 1 km² e perfazendo cerca de 40 milhões de
indivíduos, podem ingerir um volume equivalente de vegetais àquele consumido
por 35 mil pessoas. No caso das nuvens que rondam a fronteira brasileira,
estima-se que sejam compostas por cerca de 40 milhões de espécimes.
Pragas
de gafanhotos acompanham a humanidade desde a invenção da agricultura, por
volta de 8 mil anos a.C. O flagelo também é mencionado pelos antigos egípcios,
na Ilíada de Homero e no texto do livro sagrado hindu Mahabharata. No início do
século I, o historiador romano Plínio, o Velho, menciona a morte de 800 mil
cidadãos do império, provocada pela destruição das lavouras por pragas de
gafanhotos, na região que atualmente inclui a Líbia, a Argélia e a Tunísia. Ao
longo da história os relatos se sucedem desde o passado até os mais recentes:
Estados Unidos (1874), Egito (2004), México (2006), Israel (2013) e Leste da
África (2019/2020). O relato mais famoso que temos do passado é o de Antigo
Testamento, onde se lê em Êxodo 10: “Pela manhã, o vento havia trazido os
gafanhotos, os quais invadiram todo o Egito e desceram em grande número
sobre toda a sua extensão. Nunca antes houve tantos gafanhotos, nem jamais
haverá. Eles cobriram toda a face da terra de tal forma que ela
escureceu”.
Os gafanhotos,
como outras espécies, proliferam em maior número quando a quantidade de seus
predadores diminui. A diminuição da biodiversidade de certas regiões através do
corte da vegetação original ou da prática extensiva de monocultura, elimina ou
afasta os predadores dos gafanhotos: aves, répteis, anfíbios, insetos,
aracnídeos, etc. Condições climáticas também favorecem a proliferação desta
espécie. Solos secos e clima quente são o habitat de grande parte das espécies
de gafanhotos gregários.
Experiências
da The Global Locust Initiative
(Iniciativa Global do Gafanhoto), programa de estudos mantido pela Universidade
do Arizona, nos Estados Unidos, mostraram, por exemplo, que espécies de
gafanhotos gregários podem sobreviver até um mês sem água. Desta forma,
enquanto os insetos polinizadores, como as abelhas, borboletas, e
besouros terão que lutar para se adaptarem a um planeta em processo de
aquecimento, os gafanhotos já contam com esta vantagem competitiva. “Se a
mudança do clima acelerar a temperatura e a aridez, como é previsto ocorrer em
muitas áreas, é fácil imaginar que certas espécies de gafanhotos vão expandir
sua área de atuação, diz Rick Overson, coordenador de pesquisas do The Global Locust Initiative.
O
combate dos enxames de gafanhotos através de inseticidas – mesmo quando feito
de maneira controlada, como realizado pela Secretaria de Administração
Agropecuária do Rio Grande do Sul – pode causar diversos impactos ao meio
ambiente, segundo especialista do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos
Agrotóxicos. Em entrevista à reportagem do G1, o especialista da Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP), Mohamed Habib, comenta que não há inseticida
seguro. Restos do produto serão carreados para o lençol freático, para rios e
córregos. A vegetação contaminada poderá servir de pasto para animais de
criação e selvagens, afetando toda uma cadeia biológica e podendo alcançar os
humanos. Além disso, segundo informação da CroLife, entidade que representa as
empresas produtoras de pesticidas, não existe defensivo químico ou biológico
registrado no Ministério da Agricultura, para combater esta espécie de praga de
gafanhotos – pelo fato de ser pouco comum no país. Na falta de um produto
eficiente e efetivo, corre-se o risco de combater o gafanhoto com um canhão, ou
seja, com um inseticida potente e de amplo espectro, causando mortandade entre
outras espécies e provocando grande poluição.
O
uso constante de defensivo, segundo especialistas, não resolve o problema. Em
entrevista para o site Diálogos do Sul (https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/brasil/65450/para-combater-nuvem-de-gafanhotos-governo-libera-mais-usos-para-agrotoxicos), o
professor Marcos Lhano, do Centro de Ciências da Natureza da Universidade
Federal de São Carlos, afirma que a aplicação de produtos químicos “é uma
solução pontual. A Índia, Egito, Marrocos e outros países da África enfrentam
esses problemas há décadas. Quando chega a nuvem ela é recebida com
pulverização de inseticidas por aviões, carros adaptados e até manualmente, mas
o problema nunca é erradicado. No ano seguinte ele volta”, explica. O professor
informa que há outras maneiras de prevenir as pragas de gafanhotos, que além de
não serem agressivas previnem a formação de uma nuvem de insetos. “Uma vez que
o produtor vê que estão aparecendo muitas ninfas (gafanhotos novos) em uma
quantidade maior que o normal, ele deve fazer o controle biológico. Temos uma
série de produtos baseados em fungos entomopatogênicos, que causam doenças nos
gafanhotos. Esse fungo demora para agir, mas elimina os indivíduos antes que
eles atinjam a idade adulta, que é quando eles conseguem formar nuvens”, conta.
Há
algo de comum entre o aparecimento das nuvens de gafanhotos e outros fenômenos
naturais, envolvendo grande número de organismos de uma mesma espécie, como a
maré vermelha (excessiva proliferação de algas tóxicas devido à poluição das
águas litorâneas) e o aparecimento de diversos tipos de vírus (coronavírus, por
exemplo). Através de nossas atividades econômicas estamos interferindo
excessivamente no ambiente, alterando as condições físicas, químicas e
biológicas que permitem a sobrevivência de forma razoavelmente equilibrada das
diversas espécies e do ecossistemas. Se, através de nossas ações (geralmente ignoramos todas as consequências de nossas ações no meio ambiente) interferimos na
sobrevivência de certas espécies – um microrganismo, um inseto ou mamífero, por
exemplo – podemos dar início à uma reação em cadeia que pode levar à destruição
de várias outras espécies ou, se levar ao surgimento de uma superbactéria ou de
vírus desconhecido, de nossa própria extinção.
(Imagens: pinturas de Kuroda Seiki)
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