"Da fome, da peste e da guerra livrai-nos Senhor!"
(Oração da ladainha de Todos os Santos, Portugal no século XIV)
A
pandemia do coronavírus mostra o quanto a sociedade brasileira continua sendo excludente
em suas relações econômicas. Dados demonstram que mesmo colocado entre as dez
nações mais industrializadas do mundo e sendo a nona maior economia no planeta,
com um PIB de US$ 1,9 trilhão em 2019, o Brasil mantêm quase um terço de sua
população – cerca de 70 milhões segundo dados recentes – vivendo na pobreza e abaixo
da linha da pobreza. A exclusão social fica ainda mais patente, quando estudos
recentes mostram que a parcela da população vivendo na extrema pobreza caiu
para os níveis mais baixos dos últimos quarenta anos, exatamente por conta dos
mecanismos de transferência de renda, criados por causa da crise econômica
gerada pela pandemia. Situação paradoxal: a pandemia ameaça a manutenção de
relações de exploração, beneficiando os pobres e miseráveis.
A
riqueza no Brasil, historicamente constituída pela posse de grandes extensões
de terra, o latifúndio, sempre esteve nas mãos de poucos. Este é um forte
motivo pelo qual o país, que até a década de 1950 tinha uma economia baseada na
agricultura, até hoje nunca chegou a implantar uma verdadeira reforma agrária. Durante
parte do período imperial até a primeira república, a diminuta classe média
urbana era formada por pequenos empresários, funcionários do comércio e do
serviço público; tipos sociais retratados nos romances de Lima Barreto e Machado
de Assis. Remediados, pobres, miseráveis e, até 1888, os escravizados,
constituíam a maior parte da população.
A
partir dos anos 1930 e mais acentuadamente com o início da industrialização na
década de 1950, surge uma classe média industrial, formada por trabalhadores das
indústrias e de setores econômicos ligados às suas cadeias produtivas. Ao longo
das décadas de 1970, 1980 e 1990, crises econômicas externas e internas
tolheram de diversas maneiras o desenvolvimento da economia, limitando a
criação de empregos, comprimindo salários e gerando desemprego. Tais fatores,
associados às incipientes políticas públicas nas áreas sociais e de
infraestrutura, contribuíram para que a renda se concentrasse e o número de
pobres e miseráveis crescesse gradativamente, acompanhando o crescimento
populacional.
A
situação econômica e a redução da miséria teve pequena melhora quando da criação
do “Plano Real”; conjunto de medidas que estancaram a persistente inflação
inercial, implantado em 1994 no final do governo de Itamar Franco. Com a
relativa estabilização da economia, o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002)
diminuiu o percentual da população extremamente pobre de 20,3% para 15,2%. Extremamente
pobres, segundo padrões adotados pelo Banco Mundial, são os indivíduos que
ganham menos de US$ 67,- (cerca de R$ 367,- em agosto de 2020) por mês.
Significativa
mudança ocorreu no governo de Lula da Silva (2003-2010), graças a fatores da
economia mundial e da adoção de políticas internas de geração de renda. Assim foi
possível, pela primeira vez na história do país, diminuir o número de pobres e
miseráveis de 15,2% para 5,3% da população. Programas sociais e a criação de
postos de trabalho no setor privado contribuíram para que 35 milhões de pessoas
pudessem se integrar à classe média (classes C e D, de acordo com o padrão de
consumo). A expansão da economia e a incorporação de milhões de cidadãos ao
consumo, principalmente no período 2006-2010, fez com a economista Laura
Carvalho criasse a expressão “milagrinho econômico”, referindo-se a este período
em seu livro Valsa Brasileira: do boom ao
caos econômico. A expressão é uma alusão ao chamado “milagre econômico
brasileiro”, ocorrido entre 1968 e 1973, quando o PIB do país alcançou um
crescimento anual de 11%.
No
final do primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff (2014) a economia brasileira
começou a entrar em crise. O processo de impedimento da presidente (2016),
somado ao aumento das dificuldades econômicas pelas quais passava o país, ajudaram
a desacelerar ainda mais a economia, gerando uma grande crise de desemprego e,
consequentemente, o aumento da pobreza e da miséria. A anomia econômica que se
acentuou no quadriênio 2016-2019 fez com o índice dos extremamente pobres chegasse
a 6,7% da população – cerca de 13,8 milhões de pessoas – no final de 2019. A
instabilidade se aprofundaria ainda mais com recessão econômica mundial, causada
pela pandemia a partir de fevereiro de 2020.
Com
a crise do coronavírus a atividade econômica mundial, que ainda não havia se
recuperado totalmente da crise de 2008, sofreu um novo baque. Segundo o Fundo
Monetário Internacional (FMI), a economia da União Europeia deverá sofrer uma
queda de 7,5% em seu PIB em 2020. A maior economia da Europa, a alemã, encolherá
7,0%, enquanto que a dos Estados Unidos cairá 5,9%, a do Japão 5,2%. Exceções
são a Índia, que crescerá 1,9% e a China, com 1,2%. Os dados ainda não são
definitivos e muito provavelmente serão revistos ainda algumas vezes durante o
ano. Com relação à economia brasileira previa-se uma queda de 6% no PIB em 2020.
Agora, início de agosto, a previsão é de que haja uma retração de 4,8% na
atividade econômica.
A contração
da economia ocorre através do fechamento temporário ou definitivo de empresas e
gera o aumento no número de desempregados. Além disso, com a crise, até os
trabalhadores avulsos e informais estão impossibilitados de obterem renda.
Segundo dados pesquisados pela Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil
deve encerrar o ano de 2020 com 9,5% de sua população – cerca de 20 milhões de
pessoas – na condição de extrema pobreza. O estudo da ONU também prevê que o
número de pobres, os que ganham menos de US$ 140,- (R$ 765,-) por mês segundo critérios
do Banco Mundial, também aumentará de 20% (2019) para 26,5% em 2020.
Através
dos programas de auxílio emergencial que até agosto de 2020 beneficiaram 64
milhões de pessoas, os pobres e extremamente pobres, que não dispunham de outro
tipo de rendimento – salário fixo, seguro-desemprego, aposentadoria, pensão –
puderam garantir sua sobrevivência em níveis extremamente básicos. Um estudo
realizado em junho de 2020 pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação
Getúlio Vargas (Ibre/FGV), baseado em dados da Pesquisa Nacional por Amostras
de Domicílio COVID 19 (Pnad Covid-19), mostra que entre maio e junho de 2020 a
extrema pobreza no Brasil foi a menor em 40 anos. A pesquisa demonstra que a
parcela da população na faixa da extrema pobreza caiu de 4,2% da população (8,8
milhões de pessoas) para 3,3% (6,9 milhões de pessoas), entre os meses de maio
e junho deste ano (o auxílio emergencial começou a ser pago em abril). Da mesma
forma, a faixa da população considerada pobre, diminuiu de 23,8% para 21,7%. Segundo
o estudo citado, esta redução no número dos extremamente pobres coincide com o
aumento da cobertura de auxílio emergencial, que entre maio e junho passou de
45% para 50% da população (29,4 milhões de domicílios, nos quais vivem 49,5% da
população).
(Observação:
as diferentes estatísticas que consultamos mostram discrepância com relação à parcela
da população situada na faixa da extrema pobreza. Em 2019 o IBGE informou que 6,7%
da população estava nesta situação. A pesquisa do Ibre/FGV parte de 4,2% em
maio de 2020. Terá havido uma redução de 2,5% na população dos extremamente
pobres em apenas algumas semanas, entre abril e maio de 2020? Não conseguimos encontrar
uma resposta para esta diferença na estatística oficial. Esta incongruência, no
entanto, não compromete a proposta deste texto).
O
auxílio emergencial não foi aprovado com facilidade. O Ministério da Economia afirmava
de início que não dispunha de recursos para tais dispêndios, que
ultrapassariam as metas do orçamento da União. Os fatos se precipitaram e o
governo anuiu um auxílio mensal de R$ 200,-. Foi somente com a mobilização do
Congresso que o governo foi convencido a fixar o valor do auxílio emergencial
em R$ 600,-. Assim, pessoas que durante a maior parte de suas vidas nunca
tiveram uma renda regular, num valor minimamente aceitável (o valor de um
salário mínimo é de R$ 1.045,-), começaram a dispor de recursos para adquirirem
o básico, talvez até com um pequeno gasto maior do que o usual.
O
Bolsa Família atende cerca de 14 milhões de famílias e estimam os técnicos que
3,6 milhões de famílias precisam mas ainda não recebem este benefício. No
entanto, mesmo se o recebessem, seus recursos não seriam suficientes para
socorrer as famílias nesta situação de necessidade extrema. Milhões de
brasileiros que no início da crise econômica em 2014 tinham perdido o emprego e
acabaram caindo na informalidade, agora, com a suspensão total e imediata de
todas as atividades econômicas, não têm mais o “bico”, ganho eventual que
completava a renda do Bolsa Família. Para todos estes o auxílio emergencial foi
a única alternativa contra a fome.
A
situação colocou a nu, mais uma vez, a forma como se dão as relações econômicas e
sociais na sociedade brasileira. Enquanto grandes empresas recebem empréstimos
subsidiados e isenções fiscais, grandes rendas e fortunas são pouco taxadas, somente
uma grande crise econômica pôde fazer com que parte das imensas riquezas que
circulam entre poucos, fossem divididas com aqueles que mais precisavam – 30%
da população, aproximadamente.
O
governo prevê que existem fundos disponíveis para manter a ajuda emergencial
até setembro de 2020. Mas, e depois, de onde virão os recursos? O programa de
ajuda, certamente, não poderá ser suspenso, sob pena de aumentarmos a anomia
social que existe no país, ou talvez coisa pior. Especialistas e o Congresso vêm discutindo um
programa de renda básica universal, que a equipe do Ministério da Economia planeja
lançar no âmbito do programa “Renda Brasil”. O custo desta iniciativa seria de
aproximadamente R$ 50 bilhões ao ano, superior aos gastos do Bolsa Família, de
cerca de R$ 30 bilhões ao ano. A proposta prevê uma renda básica permanente,
uma continuação do auxílio emergencial de R$ 600,-, que substituiria o Bolsa Família. Dados da Caixa Econômica
Federal indicam que 59 milhões de brasileiros são considerados elegíveis para
receberem este suporte público.
Propostas
para a criação e o financiamento de um programa de renda básica não faltam. O
senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), por exemplo, sugere uma renda no valor de
meio salário mínimo mensal, mais um quarto de salário por criança ou
adolescente menor de 18 anos. Segundo o professor da Escola de Negócios da
PUCRS, o economista Ely José Mattos, o projeto da renda básica poderia ser
custeado pelos recursos financeiros parados em fundos públicos, e através de
uma reforma tributária de matriz progressiva, que desonerasse os mais pobres.
Doutor em Ciências Econômicas e professor da Faculdade de Economia da
Universidade de Barcelona, o espanhol Daniel Raventós é autor de diversos
artigos e livros tratando da renda básica. Este professor sugere que o programa seja
implantado através de uma redistribuição de renda dos 20% mais ricos ao resto da
população. No Brasil esta faixa dos mais ricos talvez estivesse limitada a 2% a
3% da população. Em junho deste ano o governo espanhol aprovou um projeto de
renda básica, destinado à parte da população com baixa receita, para fazer
frente ao impacto na economia criado pela pandemia do COVID 19. No âmbito deste
projeto cada cidadão receberá € 462,- (cerca de R$ 2,7 mil reais).
A
economista Laura Carvalho, em seu livro Valsa
Brasileira: do boom ao caos econômico, escreve que “[...] tributar os mais ricos e gastar o mesmo
valor com políticas que elevam a renda dos mais pobres direta ou indiretamente
tem alto efeito multiplicador. Isso porque enquanto os mais ricos consomem uma parte
relativamente pequena da sua renda, os mais pobres consomem tudo ou quase tudo
daquilo que ganham, o que contribui para dinamizar a economia. Em outras
palavras, uma reforma tributária progressiva deve elevar a tributação sobre a
renda e o patrimônio dos mais ricos – o Brasil também taxa relativamente pouco
as grandes heranças e propriedades – e reduzir a tributação sobre o consumo, a
produção e os lucros reinvestidos nas empresas.” A economista ainda comenta
que “se fosse cobrada uma alíquota maior
de IRPF (35%) para rendas muito elevadas, a arrecadação aumentaria em pelo
menos 90 bilhões – mais da metade do déficit primário do governo federal em
2016.”
Desde
o início do regime republicano brasileiro e, mais acentuadamente, com o início da
industrialização e a dinamização do processo econômico, estava implícito nas
políticas econômicas dos sucessivos governos – pelo menos nas declarações – o
objetivo de melhorar as condições de vida das parcelas mais pobres da população.
Desde o término da Guerra Fria, “liberdade e prosperidade” é a promessa da
maioria das democracia liberais por todo o mundo, acompanhando a expansão da
economia de mercado. Grande parte delas, no entanto, arrefecido o entusiasmo com
os supostos mecanismos de distribuição de riqueza através da “mão invisível do
mercado”, acabou oferecendo mais liberdade do que prosperidade. Na ausência
de programas sociais eficientes e de mecanismos de taxação e distribuição das
riquezas, partes significativas das populações permanecem em condições de
pobreza e miséria, situação da qual a América Latina é um exemplo típico.
Agora
o país encontra-se em uma encruzilhada. O Brasil, especialmente, se tornou um
caso exemplar de conjunção de políticas de proteção social ineficientes –
muitas sendo reduzidas pelo atual governo – e permanente concentração de renda
– 1% dos brasileiros concentram 30% da renda total do país e 10% dos mais ricos
possuem 43% das riquezas. Esta talvez seja a última oportunidade para a
sociedade brasileira: implantar reformas e, aos poucos, juntar-se às nações
desenvolvidas e relativamente harmoniosas sob ponto de vista econômico, social
e cultural. Ou manter as relações econômicas e sociais da maneira como estão,
colocando-se no rol das sociedades sempre sujeitas a crises, nas quais, segundo
o filósofo Thomas Hobbes, a vida se torna “solitária,
pobre, sórdida, embrutecida e curta, na qual cada um é o lobo para o outro, em
guerra de todos contra todos.”
(Imagens: pinturas de Robert Colescott)
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