"Não há loteria que acabe com pobreza de espírito." - Millôr Fernandes - A Bíblia do caos
É
bastante provável que em nenhum momento da história brasileira as mazelas do
povo tivessem sido expostas de forma mais evidente do que agora. Não que elas
não existissem antes, evidentemente. Mas uma soma de acontecimentos provocados
pela crise do vírus corona, fez com que se tornassem perceptíveis de maneira
escancarada.
A
inesperada e imediata interrupção de quase todas as atividades econômicas, colocou
em cheque a maneira como a maior parte dos brasileiros foi forçada a sobreviver
ao longo das últimas décadas – sob certa ótica, ao longo de toda a história. Com
empregos mal remunerados, subempregados ou trabalhadores informais, todos com
pouco ou nenhum amparo da legislação trabalhista, grande parte destas pessoas não
dispõe de reservas financeiras para poder viver algumas semanas, quiçá alguns
dias, sem receber pagamento. Para muitos a situação se tornou desesperadora, já
que falta até a comida para preparar o almoço ou a janta.
A
questão do perigo de contágio pelo vírus também mostrou as péssimas condições
em que parte da sociedade é colocada para viver. Favelas com pouco espaço,
residências sem isolamento e água potável, falta de tratamento de esgoto e
coleta regular de resíduos domésticos. Enfim, o ambiente ideal para uma rápida
propagação da virose, como tem ocorrido em várias localidades, especialmente em
Manaus e Recife, onde as condições da população ainda são piores do que em
outros lugares.
Quando
se trata de casos de saúde, todas estas pessoas dependem do Sistema Único de
Saúde (SUS), o qual, nos últimos anos – e especialmente durante o governo
Bolsonaro – foi submetido a um processo de lento sucateamento. A intenção
última dos administradores do sistema de saúde era gradualmente transferi-lo ao
setor privado. Mas, no caminho da privatização surgiu a crise do covid-19.
Criou-se
o cenário para a pior situação possível: crise econômica reduzindo
drasticamente o emprego formal e informal, aliada a uma pandemia que
sobrecarrega o único sistema de saúde capaz de atender 70% da população
brasileira, que não dispõem de convênios médicos privados (os quais, aliás,
também estão operando no limite).
Os
recursos liberados pelo governo para ajudar esta parte da população serão,
talvez, suficientes para cobrir despesas de alimentação e um ou outro gasto
inadiável, apenas isso. Muitos, no entanto, devido a uma série de empecilhos, estão
encontrando dificuldades em sacar o dinheiro. Acesso a caixas eletrônicos, baixar
programas de aplicativo para o celular, abrir contas em bancos ou solicitar CPF
na Receita Federal, acessar sites e outros procedimentos, não fazem parte do
dia a dia da maior parte destes brasileiros. Não porque não quisessem. Mas
porque nunca lhes foram dadas as oportunidades de estudar, ter uma ocupação
melhor, renda mais alta; ter tempo para se ocupar de outras coisas além de
lutar pela sobrevivência – praticamente pela comida do dia seguinte.
Os
acontecimentos trágicos mostram agora as condições nas quais vivem todos os
dias, ao longo de 50, 60 ou talvez 70 anos, cerca de 50% ou 60% da população
brasileira – 110 a 130 milhões de pessoas. Uma história terrível para um país
grande e rico em recursos como o Brasil. Por isso, a crise terá sido em vão se
continuarmos a manter o mesmo sistema político e econômico excludente, que
alija mais da metade dos brasileiros dos benefícios da moderna civilização,
para a qual contribuem tanto quanto os outros cidadãos. Acesso à moradia,
educação, renda, alimentação e saúde deve ser para todos. E recursos para isso
existem, basta procurar.
(Imagens: fotografias de Albert Renger-Patzsch)
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