Como um castelo de cartas

sábado, 25 de abril de 2020
"Pois, quem pode saber o que é bom para o homem na vida, durante os dias de sua vã existência, que ele atravessa como uma sombra? Quem poderá dizer ao homem o que acontecerá depois dele debaixo do sol?"   -   Eclesiastes, 6:12


A vida grupal humana é organizada por diferentes tipos de acordos. Desde aqueles relacionados ao comportamento de seus integrantes em relação a si e aos demais membros da comunidade, até os diferentes tipos de conhecimentos transmitidos e compartilhados. Tais acordos e ajustes de regras e saberes fazem com que as sociedade humanas possam se estabelecer e continuar existindo. Mesmo nos grupos humanos que ainda mantêm um padrão de vida material primitivo, como os povos originais da América do Sul ou da Nova Guiné, existem regras de diferentes tipos e, muitas vezes, bastante elaboradas, tanto no aspecto comportamental quanto cultural-tecnológico.

Em comparação com os grupos sociais tradicionais, a sociedade contemporânea globalizada é mais complexa, com número muito superior de regras e saberes, parte deles diferentes em cada país, sociedade ou grupo cultural. Olhando a sociedade global, encontramos uma variedade e complexidade de padrões de comportamento; leis, normas, regras, procedimentos, acordos e conhecimentos variados, para ordenar e organizar aspectos sociais, econômicos, políticos, jurídicos e culturais das distintas sociedades. Uma estrutura invisível de princípios e saberes que fazem com que as sociedades funcionem.

A grosso modo, podemos admitir que, pelo menos desde a 2ª Grande Guerra (1939-1945), a sociedade global não vem enfrentando desafios que possam coloca-la em perigo, como um todo. A Guerra Fria, as dezenas de conflitos localizados – no Oriente Médio, no Sudeste Asiático, na região dos Balcãs –, os choques do petróleo (1956, 1973, 1979, 1991) e a introdução de novas tecnologias (computadores, internet, etc.) não abalaram ou provocaram mudanças repentinas em toda a orbis. Apesar dos problemas recorrentes que, apesar de todo o avanço político e tecnológico, ainda afetam parte significativa da humanidade – a má distribuição de renda, a fome e a falta de acesso à tecnologia – existe, de certa forma, um equilíbrio e um lento avanço, apesar de percalços geograficamente localizados. 

Este quadro, no entanto, mudou radicalmente nos últimos meses. “Na segunda década do século XXI...” – desta forma é que este período provavelmente será lembrado na história – surge a pandemia do vírus covid-19, o coronavírus. Um fato inédito em toda a história humana, já que: a) nunca, em toda a história, a humanidade esteve tão ligada e interdependente, seja em termos econômicos, políticos e culturais-tecnológicos; e b) em nenhuma época anterior informações, ideias, mercadorias, pessoas – e pessoas doentes – puderam se deslocar de um país ou continente para outro tão rapidamente.

Graças à globalização, em seus diversos aspectos, as fronteiras políticas, econômicas, tecnológicas e culturais se tornaram mais tênues ao longo dos últimos trinta e poucos anos. Um acontecimento que afeta uma região ou nação pode, direta ou indiretamente, afetar territórios adjacentes, ou aqueles com as quais se tenha relações econômicas, políticas ou religiosas. O isolamento de países não é mais possível; o mundo se transformou, para o bem ou para o mal, em uma imensa teia de relações de todos os tipos.

O vírus corona se dissemina facilmente, de inúmeras maneiras, mas principalmente pelo contato humano. Assim, afeta este gigantesco e dinâmico sistema de relações em um de seus aspectos básicos: o contato entre pessoas; seja presencialmente ou através da manipulação de objetos que serão utilizados por terceiros. O ponto é que grande partes das atividades humanas básicas, principalmente a produção e a distribuição das mais diversas mercadorias (alimentos, medicamentos, bens de consumo, etc), sem as quais a humanidade não pode sobreviver, só podem ser feitas por pessoas; pessoas em contato com outras. Somente uma diminuta parte do processo produção/distribuição é automatizado.

É neste aspecto que esta pequena “coisa”, o vírus, coloca em cheque todo o sistema mundial (englobando aí todo tipo de atividade humana possível e que tenha impacto global). Trava-se em grande parte a oferta e a demanda de produtos e serviços, a base de funcionamento do sistema capitalista global. Mais do que guerras, carestias, secas, terremotos, explosões vulcânicas, maremotos, epidemias localizadas, o coronavírus afeta o sistema de uma maneira muito mais profunda e ampla. Imune (aparentemente) às condições ambientais nas quais vivem os humanos, o vírus transmite-se através de um processo que a vida desenvolveu há bilhões de anos: a respiração. Desde as mais primitivas bactérias aeróbicas até os humanos, todos nós, seres vivos, precisamos incorporar oxigênio e eliminar gás carbônico pela respiração. E é durante esse processo que o vírus entra nos organismos humanos.  

A humanidade, com certeza, sobreviverá à pandemia. Mas a que custo? Até que ponto todo o sistema de produção e distribuição será afetado? Centenas de milhões de desempregados, dezenas de milhões de empresas sem condições de continuar produzindo e vendendo. Será possível que a vasta e complexa organização econômica, o sistema capitalista mundial da forma como o conhecemos, se desestruturará em seus diversos aspectos, vindo a desabar como um castelo de cartas? 

(Imagens: pinturas de John Nash)

  

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