"Pois, quem pode saber o que é bom para o homem na vida, durante os dias de sua vã existência, que ele atravessa como uma sombra? Quem poderá dizer ao homem o que acontecerá depois dele debaixo do sol?" - Eclesiastes, 6:12
A
vida grupal humana é organizada por diferentes tipos de acordos. Desde aqueles
relacionados ao comportamento de seus integrantes em relação a si e aos demais
membros da comunidade, até os diferentes tipos de conhecimentos transmitidos e
compartilhados. Tais acordos e ajustes de regras e saberes fazem com que as
sociedade humanas possam se estabelecer e continuar existindo. Mesmo nos grupos
humanos que ainda mantêm um padrão de vida material primitivo, como os povos
originais da América do Sul ou da Nova Guiné, existem regras de diferentes
tipos e, muitas vezes, bastante elaboradas, tanto no aspecto comportamental
quanto cultural-tecnológico.
Em
comparação com os grupos sociais tradicionais, a sociedade contemporânea globalizada
é mais complexa, com número muito superior de regras e saberes, parte deles
diferentes em cada país, sociedade ou grupo cultural. Olhando a sociedade
global, encontramos uma variedade e complexidade de padrões de comportamento;
leis, normas, regras, procedimentos, acordos e conhecimentos variados, para
ordenar e organizar aspectos sociais, econômicos, políticos, jurídicos e
culturais das distintas sociedades. Uma estrutura invisível de princípios e
saberes que fazem com que as sociedades funcionem.
A
grosso modo, podemos admitir que, pelo menos desde a 2ª Grande Guerra
(1939-1945), a sociedade global não vem enfrentando desafios que possam
coloca-la em perigo, como um todo. A Guerra Fria, as dezenas de conflitos
localizados – no Oriente Médio, no Sudeste Asiático, na região dos Balcãs –, os
choques do petróleo (1956, 1973, 1979, 1991) e a introdução de novas
tecnologias (computadores, internet, etc.) não abalaram ou provocaram mudanças
repentinas em toda a orbis. Apesar
dos problemas recorrentes que, apesar de todo o avanço político e tecnológico,
ainda afetam parte significativa da humanidade – a má distribuição de renda, a
fome e a falta de acesso à tecnologia – existe, de certa forma, um equilíbrio e
um lento avanço, apesar de percalços geograficamente localizados.
Este
quadro, no entanto, mudou radicalmente nos últimos meses. “Na segunda década do
século XXI...” – desta forma é que este período provavelmente será lembrado na
história – surge a pandemia do vírus covid-19, o coronavírus. Um fato inédito
em toda a história humana, já que: a) nunca, em toda a história, a humanidade
esteve tão ligada e interdependente, seja em termos econômicos, políticos e
culturais-tecnológicos; e b) em nenhuma época anterior informações, ideias,
mercadorias, pessoas – e pessoas doentes – puderam se deslocar de um país ou
continente para outro tão rapidamente.
Graças
à globalização, em seus diversos aspectos, as fronteiras políticas, econômicas,
tecnológicas e culturais se tornaram mais tênues ao longo dos últimos trinta e
poucos anos. Um acontecimento que afeta uma região ou nação pode, direta ou
indiretamente, afetar territórios adjacentes, ou aqueles com as quais se tenha
relações econômicas, políticas ou religiosas. O isolamento de países não é mais
possível; o mundo se transformou, para o bem ou para o mal, em uma imensa teia
de relações de todos os tipos.
O
vírus corona se dissemina facilmente, de inúmeras maneiras, mas principalmente
pelo contato humano. Assim, afeta este gigantesco e dinâmico sistema de relações
em um de seus aspectos básicos: o contato entre pessoas; seja presencialmente
ou através da manipulação de objetos que serão utilizados por terceiros. O
ponto é que grande partes das atividades humanas básicas, principalmente a
produção e a distribuição das mais diversas mercadorias (alimentos,
medicamentos, bens de consumo, etc), sem as quais a humanidade não pode
sobreviver, só podem ser feitas por pessoas; pessoas em contato com outras. Somente
uma diminuta parte do processo produção/distribuição é automatizado.
É
neste aspecto que esta pequena “coisa”, o vírus, coloca em cheque todo o
sistema mundial (englobando aí todo tipo de atividade humana possível e que
tenha impacto global). Trava-se em grande parte a oferta e a demanda de
produtos e serviços, a base de funcionamento do sistema capitalista global. Mais
do que guerras, carestias, secas, terremotos, explosões vulcânicas, maremotos,
epidemias localizadas, o coronavírus afeta o sistema de uma maneira muito mais
profunda e ampla. Imune (aparentemente) às condições ambientais nas quais vivem
os humanos, o vírus transmite-se através de um processo que a vida desenvolveu
há bilhões de anos: a respiração. Desde as mais primitivas bactérias aeróbicas
até os humanos, todos nós, seres vivos, precisamos incorporar oxigênio e
eliminar gás carbônico pela respiração. E é durante esse processo que o vírus
entra nos organismos humanos.
A
humanidade, com certeza, sobreviverá à pandemia. Mas a que custo? Até que ponto
todo o sistema de produção e distribuição será afetado? Centenas de milhões de
desempregados, dezenas de milhões de empresas sem condições de continuar
produzindo e vendendo. Será possível que a vasta e complexa organização
econômica, o sistema capitalista mundial da forma como o conhecemos, se desestruturará
em seus diversos aspectos, vindo a desabar como um castelo de cartas?
(Imagens: pinturas de John Nash)
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