"Onde se formam indivíduos que criam e não indivíduos que aprendem?" (...) Onde está a instituição que se propõe por objetivo liberar o homem e não se limitar a cultivá-lo?" Max Stirner - O falso princípio da nossa educação
Nos textos dos pensadores pré-socráticos não encontramos nenhuma referência clara à educação, pelo menos nos termos como a conhecemos hoje. Todavia, dos escritos se depreende que os filósofos (físicos, como eram chamados) formaram escolas de pensamento, nas quais as idéias de um filósofo principal eram transmitidas a discípulos. Estes, tanto podiam ser alunos que aprendiam com o mestre ou outros pensadores, que convencidos pelas idéias do pensador mais criativo e perspicaz, incorporavam suas noções básicas ao seu próprio sistema de pensamento. Exemplo mais provável deste processo é a tríade Tales de Mileto (625 a.C. – 558 a.C.), Anaximandro (610-547) e Anaxímenes (588-524). Qualquer um dos três pôde ter tido outros seguidores ou alunos, que no entanto não foram mencionados pelos estudiosos e assim não puderam exercer influência na história da filosofia.
Xenófanes (570-460) foi, segundo a tradição, provavelmente mestre de Parmênides de Eléia (530-460). Neste caso o discípulo tornou-se mais famoso do que o próprio tutor. Parmênides, por sua vez, foi professor de Zenão de Eléia (495-430). O que se percebe é que as idéias dos mestres são transmutadas, dando origem a novas correntes de pensamento, que muitas vezes se cruzam. Dois pensadores únicos, que segundo a tradição não tiveram seguidores, foram Heráclito de Éfeso (540-470) e Empédocles de Agrigento (490-430). Ambos tinham personalidades sombrias, marcadas pela visão trágica do processo de criação e destruição do universo e, talvez por isso, apesar de terem tido discípulos, não fizeram sucessores. Heráclito afastou-se do convívio humano e foi viver nas montanhas da Jônia (região onde se localiza a atual Turquia), de onde só voltou para morrer. Empédocles, convencido de que era um deus, atirou-se na cratera do Etna e desapareceu para sempre.
Evidentemente, em todas estas seqüências de gerações de pensadores, houve contato do mestre com os discípulos, o que permite falar em um sistema organizado de transmissão do conhecimento filosófico. Se os textos ou as idéias chegaram a nós – pelo menos em parte através de doxógrafos – deve ter existido uma estrutura organizada de alunos, que anotavam ou copiavam as palavras ou as obras dos seus professores e as guardavam para a posteridade. Disso se depreende que existiam locais e pessoas específicas, incumbidas de anotar e assim transmitir o conhecimento filosófico. A preservação e transmissão do pensamento dos mestres: os primórdios de um sistema educacional.
O pitagorismo talvez tenha sido a linha filosófica que mais se caracterizou como uma escola. Pitágoras de Samos (570-496) era um verdadeiro mestre, líder de muitos discípulos, formando uma organização quase comparável a uma seita religiosa. Tanto que muitos ensinamentos do filósofo eram transmitidos somente aos discípulos que pertenciam ao grupo mais próximo do mestre; conhecimentos sobre os quais deveriam manter segredo. No caso dos pitagóricos se observam ainda resquícios da fase mítico-religiosa do ensino. Na religião o ensinamento sagrado era transmitido pelos sacerdotes aos discípulos, que deviam manter segredo sobre o ensinamento e não passá-lo aos leigos. São famosos os casos dos ensinamentos esotéricos (internos à seita e exclusivos dos discípulos diletos do mestre) e os conhecimentos exotéricos (externos e de livre acesso para os leigos) mencionados ainda com relação às escolas de Platão (Academia) e de Aristóteles (o Liceu), por exemplo. Talvez, para se eximir de tal tipo de acusação – de ser um fundador ou mestre de uma seita religiosa secreta – Sócrates dizia em seu julgamento que seus ensinamentos eram públicos e que os transmitia na presença de todos, conversando com o povo nas ruas de Atenas. Outro filósofo, que além de Pitágoras também é mencionado nos textos dos pré-socráticos como tendo aberto uma escola de filosofia, foi o pensador jônico Anaxágoras de Clazômenas (500–428), que se estabeleceu em Atenas, a convite de Péricles.
Ponto importante no desenvolvimento da educação foi, no caso dos pré-socráticos, a desvinculação do pensamento mítico. Pela primeira vez na história surgia uma classe de pessoas que pensava o universo, a phyisis, a partir de dados empíricos e do raciocínio, sem recorrer aos mitos religiosos. Esta atitude dá origem, pela primeira vez, a um conhecimento leigo, transmitido por leigos, sem ligação – e às vezes até em conflito – com as religiões. A oposição à crença às vezes era tanta, que alguns filósofos como Anaxágoras, foram perseguidos por supostamente terem negado a existência dos deuses. Trata-se, enfim, da vitória do pensamento racional, transmitido através das escolas filosóficas, ou pelos ensinamentos de mestres itinerantes, como Xenófanes de Colofão (570-460).
Os filósofos pré-socráticos foram provavelmente os primeiros professores leigos da história do pensamento ocidental, seguidos pelos sofistas. A partir destes mestres, a transmissão do conhecimento deixou de ser exclusividade de sacerdotes e de se limitar à interpretação mítico-religiosa do mundo. Ao mesmo tempo em que os pensadores gregos estabeleciam as bases do que viria a ser a filosofia e depois as ciências da nossa civilização, a Índia também passava por um processo semelhante. No século V a.C. os filósofos da escola Çarvaka, leigos e críticos da religião, também ensinavam uma nova visão do mundo, baseada na experiência e no raciocínio, combatendo dogmas profundamente arraigados na civilização indiana.
Cerca de duzentos depois, por ocasião das campanhas de Alexandre Magno (356-323), filósofos das duas civilizações se encontrariam. Esta aproximação de culturas, apesar de curta e esporádica, trouxe alguns frutos. Na Índia, a tradição budista – notadamente a estatuária – seria fortemente influenciada pela escultura grega. Na Grécia, Pirro de Elis, que acompanhou a campanha de Alexandre e na Índia conheceu os sábios gymnosofistas, os “filósofos nus”, seria o iniciador do pirronismo, a primeira forma de ceticismo. Mas isto é uma outra estória, que fica para uma próxima vez.
(imagens: Claude Monet)
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