Em 313 da era atual, com a promulgação do Édito de Milão, os cristãos obtiveram liberdade de culto. Com a cessação das perseguições os cristãos passam a ter outras preocupações, já que na ausência de uma pressão externa – a perseguição do império romano – apareceram as dissensões internas: as heresias. Para estruturar a doutrina e combater as correntes de pensamento deviantes, organizam-se os Concílios. Os principais Concílios da igreja nascente foram os de Nicéia (325), que estabeleceu a divindade de Cristo; o de Éfeso (431), que definiu que em Cristo há duas naturezas e que a Virgem Maria é verdadeiramente a mãe de Deus; e o concílio de Calcedônia (451), que estabeleceu que Cristo tivesse uma só personalidade, que ora agia como Deus, ora como homem.
Ao mesmo tempo em que se expande, utilizando-se de todas as vantagens que a infra-estrutura do império romano oferecia (estradas, serviço de correios, inexistência de fronteiras, difusão do latim como língua oficial do império), o cristianismo concorria com outras religiões (maniqueísmo, gnosticismo, mitraísmo, entre várias outras) e com a filosofia. O problema da fé e da razão refere-se ao embate do cristianismo com a filosofia.
Este choque entre crença e pensamento, remonta aos primeiros tempos do estabelecimento da religião cristã. O apóstolo Paulo já é um exemplo emblemático, quando tenta converter os gregos, aproximando-se de sua filosofia. Posteriormente, em uma outra fase de sua atividade apostólica, o primeiro pregador do cristianismo entre os gentios ataca a filosofia, considerando-a um conhecimento que não leva ao Cristo. Esta atitude de por um lado tentar uma composição com a filosofia e por outro lado confrontá-la, estará presente em toda a história medieval da Igreja.
Um dos primeiros cristãos a valer-se de expressões originárias da filosofia em suas pregações e escritos religiosos foi Clemente de Alexandria (150-215). Este bispo utilizou-se, por exemplo, da expressão gnosis (conhecimento), o que influenciou a formação de uma seita cristã conhecida como gnósticos. Outros membros da Igreja, como Tertuliano, Cipriano, Hilário de Poitiers e Ambrósio, mais tarde chamados de “padres da Igreja” por terem contribuído para estruturar sua doutrina, também se ocuparam da filosofia. Todavia, o maior expoente desta época, que mais tarde foi chamado de período da filosofia patrística (referente à época dos “pais” da Igreja), foi o filósofo e teólogo Agostinho de Hipona (354-430).
Se a filosofia Patrística representa, desde o seu início, o esforço de unir a filosofia (razão) à fé (cristianismo), Agostinho foi o pensador que mais se destacou neste esforço. O período em que vive é caracterizado na história da filosofia como uma época em que domina o pensamento cético. De uma maneira geral, a filosofia está em uma fase de baixa criatividade e a única exceção é a filosofia de Plotino. Foi Agostinho quem, dentro da filosofia, restaurou a certeza da razão, utilizando-se da certeza oferecida pela fé. O filósofo parte do pressuposto bastante aceito pelo pensamento da época de que o homem e seu intelecto, sendo mutáveis, não podiam ser critérios últimos para o estabelecimento da verdade. A verdade, segundo Agostinho, só pode ser garantida por algo acima dos homens e das coisas: Deus. Por isso a razão, para encontrar a certeza, deve render-se à fé, que permite resgatar a dignidade da razão: “compreender para crer, crer para compreender”, é o famoso argumento do bispo de Hipona. Agostinho influenciou todo o pensamento medieval, através das diversas obras que escreveu, dentre as quais se destacam “As Confissões” (397) e a “Cidade de Deus” (413-427).
Cronológicamente, depois de Agostinho, o pensador medieval de maior destaque foi Escoto Eurígena, que fez uma síntese do pensamento filosófico de seu tempo (século X), sendo fortemente influenciado pelos escritos do Pseudo-Dionísio, autor místico que escreveu por volta do século V. Eurígena abole toda a distinção entre fé e razão, ao afirmar: “A verdadeira filosofia outra coisa não é do que religião e, inversamente, a verdadeira religião, outra coisa não é do que verdadeira filosofia” (Reale, Antiseri, 1999).
Avançando mais no tempo, Anselmo de Aosta ou de Canterbury é outro filósofo medieval que se preocupa com a questão da fé e da razão. Em sua obra Poslogion, Anselmo elabora um argumento que sozinho pudesse fornecer provas adequadas sobre aquilo que o cristão crê, no que diz respeito à substância divina. Anselmo parte de um dado da fé e procura exclusivamente através da razão provar que esta pressuposição dada pela fé corresponde à verdade. O argumento de Anselmo é que deve haver um ser maior do que qualquer coisa imaginável em todos os aspectos, sendo este ser existente também na realidade. De sua argumentação Anselmo conclui que deve haver “um ser sobre o qual não se pode pensar nada maior.” Este argumento é conhecido como “argumento ontológico”. Mas, a tese de Anselmo não permaneceu sem críticas. Muitos autores argumentaram que não bastava ter uma idéia de Deus – o ser sobre o qual não se pode pensar nada de maior – para se poder afirmar sua realidade objetiva. Foi Anselmo quem deu a fórmula definitiva da primazia da fé sobre a razão, porque se a razão quer ser plenamente racional, se ela quer se satisfazer como razão, o único método seguro para a razão consiste em escutar a racionalidade da fé. Anselmo, por sua atuação na filosofia e no uso que fez da razão, foi considerado o iniciador do pensamento escolástico.
Pedro Abelardo (1079 – 1142) também foi um dos pensadores medievais preocupados com a questão da fé e da razão. O filósofo jamais pôs em dúvida que a revelação seja fundamento das verdades divinas, mas afirmava constantemente que a verdade da fé pode ser entendida também por intermédio da razão.
Para Tomás de Aquino, o maior filósofo da Baixa Idade Média, não há conflito entre a fé e a razão, a tal ponto, que lhe é possível tentar demonstrar a existência de Deus. Tomás fez isto através de uma linha de argumentação, cujos cinco pontos principais são:
a) O caminho da mutação: tudo o que muda, deve ter mudado por causas anteriores. A causa imutável, origem de todas as mudanças é Deus.
b) O caminho da causa eficiente: cada coisa tem uma causa, a causa eficiente, origem de tudo, é Deus.
c) O caminho da contingência: as coisas podem ser e não ser, pois aparecem e desaparecem. Deve haver um ser não sujeito a este devir, e este é Deus.
d) O caminho dos graus de perfeição: todos os seres são mais ou menos perfeitos. Deve existir um ser que totalmente perfeito e este ser é Deus.
e) O caminho do finalismo: tudo caminha para um determinado fim, mesmo sem conhecê-lo. O fim último de toda a criação é Deus.
Tomás de Aquino tornou-se o maior filósofo na questão da razão e da fé, por elaborar os pressupostos racionais da fé. Sua filosofia, o tomismo, permaneceu como referência durante toda a Idade Média, tendo influenciado a filosofia moderna. Descartes em sua argumentação para provar a existência de Deus, utiliza-se também da filosofia de Tomás de Aquino.
A Idade Média ainda apresentou outras formas de abordagem da relação entre a fé e a razão. Siger de Brabante (1240-1284), por exemplo, separou a questão da razão e da fé. Brabante afirma que ambas podem ser separadas sem qualquer conflito, já que caso a razão concluísse coisas que conflitassem com a fé, deveria se optar pela fé.
A independência da fé em relação à razão ocorre com Guilherme de Ockham (1280-1349). O pensamento medieval – depois de tantas elaborações argumentativas – havia chegado a um ponto em que Ockham conclui que a fé e a razão não são conciliáveis e que os artigos de fé não podem ser provados pelo intelecto.
O problema da fé e da razão surgiu na Antigüidade, nos primórdios do cristianismo, quando era necessário conciliar a fé de origem judaica com o pensamento racional grego. Havia muitos intelectuais que foram convertidos à nova fé e que tentaram a síntese entre fé e razão, visando dar uma explicação completa do mundo e do homem. A tarefa foi terminada por Agostinho, que baseou sua argumentação a fé.
Posteriormente, todavia, a filosofia sofreu influência do pensamento árabe, que trouxe o pensamento de Aristóteles ao conhecimento dos filósofos europeus. Tornava-se necessário fazer uma nova síntese entre fé e razão, desta vez provando que o pressuposto da fé, ou seja, Deus, efetivamente era verdadeiro. Esta obra foi iniciada por Anselmo e definitivamente estruturada por Tomás de Aquino.
Finalmente, no final da Idade Média, chega-se aos poucos à conclusão de que os fundamentos da fé não podem ser provados pela razão, o que eliminava a possibilidade de uma síntese entre ambos. A partir deste período então, para a maioria dos filósofos, a fé e a razão passaram a ser irreconciliáveis, até definitivamente se separarem na filosofia de Kant.
Bibliografia
ABRÃO, Bernadette Siqueira. História da Filosofia. São Paulo. Editora Nova Cultural: 1999, 470p.
BENMAKHLOUF, Ali. Averróis. São Paulo. Estação Liberdade: 2006, 223 p.
CUNHA, Eliel Silveira; FLORIDO, Jaice. Grande Filósofos – Biografia e Obras. São Paulo. Editora Nova Cultural: 2005, 280 p.
GILSON, Etienne. O Espírito da Filosofia Medieval. São Paulo. Martins Fontes: 2006, 581 p.
GRACIOSO, Joel. As relações entre fé e razão – Biblioteca de Livros – Santa Filosofia. São Paulo. Duetto Editorial: 2007, 97 p.
OS PENSADORES. Anselmo e Abelardo. São Paulo. Abril Cultural: 1973, 282 p.
REALE; ANTISERI. História da Filosofia, Vol. I e Vol. II. São Paulo. Paulus: 1999, 683 p.
SCHLESINGER, Hugo, PORTO, Humberto. Dicionário Enciclopédico das Religiões – Volume I. Petrópolis. Editora Vozes: 1995, 1486 p.
VON NATZMER, Gert. Weisheit der Welt (Sabedoria do mundo). Berlin. Deutsche Buchgemeischaft: 1954, 367 p.
1 comments:
Olá Ricardo!
Precisei pesquisar sobre Razão e Fé na Idade Média e nele encontrei, da forma que melhor atendeu a minha capacidade de compreender, o conteúdo que eu procurava.
Usei as informações para um trabalho na faculdade. Citei seu nome e o endereço do blog.
Muito obrigada,
Suely
www.suelymonteiro.blogspot.com
Postar um comentário