2015 é o Ano Internacional dos Solos

sábado, 25 de abril de 2015
"Agora todos nós nos adaptamos à nova concepção de nossa infinita pequenez, considerando-nos menos que zero no Universo, com todas as nossa belas descobertas e invenções; então, que valor o senhor quer que tenham as notícias, já não digo das nossas misérias particulares, mas até mesmo das calamidades gerais?"  -  Luigi Pirandello  -  O finado Marias Pascal

A ONU através da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) declarou o ano de 2015 como o "Ano Internacional dos Solos". O dia 5 de dezembro de 2015 será celebrado em todo o mundo como o "Dia Internacional dos Solos". A data foi instituída, segundo a FAO, para aumentar a consciência sobre a importância dos solos na vida humana. Com esta iniciativa a FAO pretende educar a população sobre o papel crucial dos solos na segurança alimentar e a eliminação da pobreza, além de promover a proteção ao meio ambiente. A organização internacional também deverá apoiar políticas, investimentos, pesquisas e demais iniciativas que visem um melhor conhecimento e proteção dos solos em todo o planeta.
O solo como fonte de alimento e vida torna-se mais importante a cada geração. Se, no passado, havia sempre mais uma fronteira por ocupar e explorar, atualmente é cada vez mais difícil encontrar solo virgem e pronto para a agricultura. Isto porque, as grandes áreas de solo agricultável já foram ocupadas em quase todo o mundo e terras que no passado eram muito férteis já dão mostras de desgaste. Segundo levantamento feito pela FAO em 2011, cerca de 25% dos solos destinados à atividade agrícola estão parcialmente degradados devido a práticas que causam a erosão hídrica e eólica, a perda da matéria orgânica, a compactação, a salinização, a perda de nutrientes e a poluição do solo. 
O norte e o nordeste da África e certas regiões da Ásia - partes da Índia, Paquistão e China - são as regiões do mundo mais afetadas por este gradual processo de destruição da terra fértil. No entanto, em proporções menores, a contínua perda de solo agricultável ocorre em todos os países. Segundo Luc Gnacadja, secretário executivo da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação (UNCCD), o planeta perde por ano cerca de 12 milhões hectares de solo fértil - área equivalente a aproximadamente a 11 milhões de campos de futebol. Estes dados são muito preocupantes, pois um solo propício para a produção de alimentos, com alguns centímetros de espessura, pode levar milhares de anos para se formar. É por esta razão que é considerado um recurso natural não renovável.
O Brasil perde anualmente cerca de 286 milhões de toneladas de solo agricultável, segundo o Ministério do Meio Ambiente. Esta perda é provocada em parte por práticas agrícolas que não levam em conta as características do solo, da cultura a ser plantada, além de serem utilizadas tecnologias ultrapassadas. Outro aspecto é que a remoção da vegetação original pode comprometer a qualidade do solo definitivamente, como ocorre com as terras ocupadas pela floresta amazônica. Estes solos, que nas décadas de 1950 e 1960 eram tidos como o futuro celeiro do mundo, provaram ter uma constituição pouco propícia para a agricultura extensiva, sendo mais indicados para o plantio agroflorestal, que associa culturas agrícolas com culturas florestais.

A demanda por alimentos deverá aumentar em até 25% nos próximos trinta anos. Nestas condições, serão nações com vasta extensão agricultável como o Brasil, que terão um papel estratégico na segurança alimentar de todo o planeta. Se o mundo não adotar, ainda hoje, técnicas que contribuam para a conservação e recuperação de vastas áreas propícias ao plantio de alimentos, amanhã poderá se defrontar com o aumento dos preços dos alimentos. Os maiores prejudicados serão, como sempre, as nações pobres, que não terão recursos para abastecer suas populações  por terem solos pouco propícios à agricultura, e não disporem de suficientes recursos para compra de alimentos no mercado internacional.
(Imagens: fotografias de Robert Doisneau)

Cidade, a grande invenção humana

sábado, 18 de abril de 2015
"No fundo, culto é sempre e apenas aquele que se esforça em sua busca por cultura, isto é, que simplesmente procura ser culto, porque, de fato, isso não é nada fácil."  -  Robert Walser  - Absolutamente nada e outras histórias

A cidade foi uma das maiores invenções da humanidade, há cerca de sete ou oito mil anos. De um modo geral, o surgimento das primeiras aglomerações humanas está ligado à prática da agricultura. Esta atividade começou a se difundir em toda a região do Crescente Fértil, área que engloba os atuais Iraque, Síria, Líbano, Egito, Israel, Jordânia, parte da Turquia e Irã. Sob a influência dos rios Nilo, Tigre e Eufrates, a população local desenvolveu a cultura de plantas que passariam a ser incorporados ao cardápio da posteridade, como a cevada, trigo, aveia, ervilha, lentilha, cebola; frutas como o figo, a tâmara, o pêssego e a ameixa.
O excedente de alimentos produzido pela agricultura, associado à criação de gado, à pesca e eventual caça, permitiu com que um numero cada vez maior de pessoas se fixasse nas áreas urbanas, exercendo atividades tipicamente citadinas, como artesãos, ferreiros, prestadores de serviços, sacerdotes, etc. Assim, a cidade sumeriana de Tell Brak, localizada na atual Síria, já tinha uma população estimada em 4 mil pessoas por volta de 5.000 A.C.; as vizinhas Uruk e Larak tinham respectivamente 5 e 10 mil habitantes por volta de 4.000 A.C., sendo que a primeira alcançaria a impressionante população de 50 mil habitantes por volta de 2.500 A.C.. A título de comparação, a cidade de São Paulo tinha pouco mais de 30 mil habitantes em 1872 e alcançou a cifra de 65 mil moradores somente em 1890.
Foi no espaço das cidades de todo o mundo que se desenvolveram outras grandes criações humanas: o Estado, as religiões organizadas, a escrita e o cálculo, a ciência e a tecnologia. No entanto, apesar de serem as capitais dos impérios, os centros administrativos, religiosos e comerciais, as cidades tinham uma importância relativa, já que a maior parte da população vivia no campo de forma autossuficiente  e necessariamente não precisava frequentar a cidade. Muitas pessoas, até o fim do período medieval, visitavam a vila ou aldeia mais próxima somente algumas vezes em suas vidas.

A partir dos séculos XIII e XIV ocorreram diversas mudanças econômicas, sociais e culturais na Europa, que fizeram com que as cidades passassem definitivamente a ser o centro das principais atividades humanas. O campo ainda produzia alimentos e matérias primas, mas os centros urbanos agora é que ditavam os destinos das nações; eram as sede dos governos, do comércio, dos bancos, das universidades, da administração de impérios ultramarinos e da vida cultural. As metrópoles foram os focos irradiadores das novas ideias religiosas e políticas. A partir da segunda metade do século XVIII, as cidades também se tornaram o local das atividades industriais e da pesquisa científica.
A cidade foi uma invenção tão bem sucedida que atualmente cerca de 55% da população mundial vive em metrópoles - no Brasil já são mais de 80% da população. Mas, como toda invenção humana, a cidade está sujeita a melhorias e adaptações, já que é o local onde se concentram inúmeras atividades humanas, sujeitas às condições históricas e ambientais do local onde ocorrem.
A cidade, seja de que tamanho for, é a amostra de como funciona um país. De como  atende às necessidades da população através da arquitetura, transporte, saneamento, segurança, lazer, condições de saúde, educação e cultura. É uma construção coletiva, da qual todos participam e devem se beneficiar.
(Imagens: fotografias de Ricardo E. Rose)

O mundo sensível e ideal em Platão

sábado, 11 de abril de 2015
"No oitavo livro da Odisséia, lê-se que os deuses tecem desgraças para que às futuras gerações não falte o que cantar; a afirmação de Mallarmé 'O mundo existe para chegar a um livro' parece repetir, uns trinta séculos depois, o mesmo conceito de uma justificação estética dos males."  -  Jorge Luis Borges  -  Outras Inquisições

O princípio das coisas sensíveis, segundo Platão, tem origem no antagonismo entre o pensamento de Heráclito de Éfeso e Parmênides de Eléia. Cada um dos dois pensadores, a seu modo, procurou dar uma explicação para o problema do ser.
Enquanto os filósofos cosmológicos como Tales de Mileto, Anaxímenes e Anaximandro, buscavam um princípio do ser na própria physis, na natureza,  Heráclito de Éfeso colocou como princípio de todo o ser a mudança. “Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos”, escrevia Heráclito. Todo o ser estava sujeito ao devir e em constante alteração cíclica. No final, todo o ser (a physis, a natureza) será destruído pelo fogo e então o processo começará novamente: “Por fogo se trocam todas (as coisas) e fogo por todas, tal como por ouro mercadorias e por mercadorias ouro.” (Heráclito, 1996).
Já Parmênides parte do princípio (talvez influenciado pelo pensamento de Pitágoras) de que o mundo das mudanças e das aparências é ilusório e é sobre ele que formamos as nossas opiniões, diferentes do conhecimento. A este quadro permanentemente mutável Parmênides contrapõe o Ser – to on, on – aquilo que é e não muda; é sempre idêntico a si mesmo, eterno, imperecível e invisível aos nossos olhos. A este Ser imutável, o filósofo contrapôs o Não-Ser, o qual declarou não existir efetivamente, apenas nas aparências.
Parte da obra de Platão foi dedicada a resolver este antagonismo entre a filosofia de Heráclito e a de Parmênides. Por um lado, Platão é influenciado pelo pensamento de Heráclito no que se refere à natureza impermanente e imperfeita do mundo material, sempre em mutação. Por outro, o pensador ateniense concorda com o filósofo eleata de que para verdadeiramente conhecer o “Ser das coisas” a filosofia deveria abandonar o mundo sensível – da aparência, da mutabilidade, dos contrários – para se dedicar à esfera do Ser, do imutável. Nesta última imperam a verdade, o conhecimento puro e a imutabilidade. O primeiro mundo, vislumbrado por Heráclito, é a realidade sensível, é o reino das coisas, o mundo do Não-Ser. O segundo, é o mundo das ideias ou das essências verdadeiras, o mundo do Ser, como imaginado por Parmênides.
A diferença básica entre Parmênides e Platão é que para o primeiro o mundo sensível é o do Não-Ser em sentido efetivo, sem nenhuma realidade. Para Platão o mundo do Não-Ser é um mundo real, mas que apenas é uma cópia daquele do Ser, das Ideias ou Ideais. Este um dos principais aspectos do pensamento platônico: para resolver a dicotomia entre o fluxo heraclitiano (o mundo da realidade sensível) e a imutabilidade parmediana (o mundo da imutabilidade do Ser). Platão introduziu o conceito das Ideias, que irá influenciar toda a filosofia ocidental, notadamente a metafísica. Dentro desta visão, as coisas têm então dois princípios: um sensível, sujeito à mutação e a desintegração e o outro inteligível (as ideias) imutável perfeito e modelo para toda a realidade sensível. A partir do século III o nascente cristianismo, influenciado pelo neoplatonismo, construirá os alicerces de sua teologia com estas ideias elaboradas por Platão.
Mais tarde, Aristóteles, discípulo de Platão, fará em sua obra "Metafísica" uma crítica das posições dos cosmologistas, de Heráclito e de Parmênides, sem, inclusive poupar o conceitos das ideias de seu mestre. Aristóteles introduzirá um novo conceito do ser. Mas isto já é história para um próximo texto.
Bibliografia:
Chauí, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo. Editora Ática: 2006, 424 p.
Souza, José Cavalcante. Os Pré-Socráticos. São Paulo. Editora Nova Cultural: 1996, 319 p.
(Imagens: poesia concreta de Augusto de Campos)

Os rios e o espaço urbano

sábado, 4 de abril de 2015
"'Experiência de vida' não é muito, e mesmo que não existisse vida, poderia ser aprendida somente por meio dos romances, de Balzac, por exemplo."  -  Elias Canetti  -  Sobre os escritores

Nos dias quentes do verão suíço, milhares de pessoas tomam banho no rio Limmat, que liga o lago Zurique ao rio Aare. Até aí nada de especial. Milhões de pessoas tomam banho em milhares de rios no mundo inteiro. O detalhe é que esta cena se passa no centro financeiro da cidade de Zurique, a mais populosa cidade da Suíça com mais de 400 mil habitantes. Muitos dos banhistas são pessoas que trabalham no bairro central da metrópole e que usam parte de sua hora de almoço para dar um mergulho no rio de águas límpidas.
Em Seoul, capital da Coréia do Sul, a população de um dos bairros mais populosos da cidade tem uma nova área de lazer. Ladeado por avenidas e prédios corre o rio Cheonggyecheon, em cujas margens existem pequenos jardins e áreas de passeio, muito utilizados pela população. O rio, limpo e habitado por diversas espécies de peixes, se estende por mais de cinco quilômetros pela cidade, por vezes interrompido por cascatas e atravessado por pequenas pontes. Um ambiente idílico em plena área urbana, em região onde até o início da década passada se erguia um elevado, percorrido diariamente por milhares de automóveis. 
Dois exemplos de como é possível conviver com os cursos d'água em plena área urbana, mesmo em grande metrópoles. Seoul, por exemplo, tem uma população de 10,1 milhões de habitantes concentrada em uma área de 605 km²; pouco mais de um terço da área da cidade de São Paulo (1.522 km²) para uma população quase equivalente (São Paulo tem 12 milhões de habitantes). Assim, quando aqui no Brasil invadimos as áreas de várzea, ocupando as baixas dos rios com avenidas e obras urbanas, não se trata absolutamente de falta de espaço.
Isto ocorre porque em grande parte das administrações municipais ainda persiste uma visão urbanística que tem origens no passado. Segundo este tipo de pensamento, muito em voga entre os urbanistas e planejadores no final do século XIX e início do XX, as regiões baixas das várzeas e dos rios continham miasmas, "ares ou vapores" que podiam transmitir doenças como o cólera. O médico inglês William Farr, responsável pelo censo populacional de Londres em 1851, foi um ferrenho defensor e propagador desta teoria. O argumento também foi usado para que o arquiteto francês Hausmann pudesse promover a reurbanização da capital francesa, desalojando milhares de pessoas pobres que viviam em prédios antigos, localizados perto do rio Sena.
Apesar de partir do incorreto pressuposto dos miasmas, a teoria acertava no fato de que áreas de várzea e rios podiam ser foco de doenças, por serem habitat de mosquitos, ratos, baratas e outros tipos de vetores transmissores. A teoria errava quando assumia que estas áreas deveriam ser simplesmente aterradas, transformadas em avenidas, ter os rios canalizados; por serem estas áreas "sujas" e "não urbanas", que não deveriam nem poderiam ser incorporadas ao espaço urbano.
Este tipo de visão influenciou muitos urbanistas e administradores, responsáveis pela modernização dos centros urbanos durante o século XX. No entanto, em muitas cidades o processo foi revertido, fazendo com que várzeas e rios fossem inteligentemente incorporados ao dia a dia da cidade, propiciando bem estar, lazer e contato com a natureza. No Brasil, ainda aguardamos pela recuperação de rios como o Tietê, Tamanduateí, Pinheiros, Aricanduva e outros país afora, e sua  inserção ao espaço urbano.
(Imagens: fotografias de Ricardo E. Rose)