A evolução da metafísica e a crítica kantiana

sábado, 23 de fevereiro de 2019
"Pensar a ciência como busca da verdade é renovar uma fé mística, a fé de Platão e Agostinho, de que a verdade governa o mundo, de que a verdade é divina."   -   John Gray   -   Cães de palha

Introdução
Origens e evolução da metafísica:         
            A metafísica como disciplina filosófica tem sua origem em Aristóteles, que caracterizava sua “filosofia primeira” como “o estudo do ser enquanto ser”. No livro IV da Metafísica, Aristóteles faz a seguinte afirmação: “Há uma ciência que investiga o ser como ser e as propriedades que lhe são inerentes devido à sua própria natureza” (Aristóteles, 2006).
            As origens da metafísica, no entanto, remontam ao período anterior ao estagirita. Já Parmênides de Eléia estabelece o início da ontologia, afirmando que “o Ser é, o Não-Ser não é”; “o Ser é único e imutável”. Este Ser único e imutável foi posteriormente transformado por Platão no mundo das essências, em contraposição ao mundo sensível, o mundo das aparências. O mito da caverna, famosa metáfora elaborada por Platão e descrita no livro VII da República é uma referência ao mundo das essências, onde se encontram todas as idéias; uma clara referência ao Ser de Parmênides. Escreve Platão: “Quanto a mim, a minha opinião é esta: no mundo inteligível a idéia do bem é a última a ser apreendida, e com dificuldade, mas não se pode apreendê-la sem concluir que ela é a causa de tudo o que de reto e belo existe em todas as coisas; no mundo visível, ela engendrou a luz e o soberano da luz; no mundo inteligível, é ela que é soberana e dispensa a verdade e a inteligência; e é preciso vê-la para se comportar com sabedoria na vida particular e pública.” (Platão, 2004).
            O posicionamento de Aristóteles em relação à filosofia já é diferente de seus antecessores. Não faz distinção entre um mundo sensível e outro inteligível, a exemplo de Platão. A essência das coisas, segundo Aristóteles, está nas próprias coisas e é tarefa da filosofia, mais especificamente da metafísica, conhecê-las. As coisas estão em constante transformação, diz Aristóteles, e através de um constante aperfeiçoamento estas esperam encontrar sua essência divina, equiparando-se assim ao ser divino, o Primeiro Motor Imóvel. A essência ou ousía é a realidade ultima de um ser e é esta – chamada substância – que é o objeto de estudo da metafísica. Explica Aristóteles no livro VII da Metafísica: “Respondemos que se não há uma substância além das que são naturalmente compostas, a física será a ciência primeira; mas se há uma substância que não está sujeita ao movimento, a ciência que estuda essa substância será anterior à física e será a filosofia primeira, e neste sentido, universal, porque é primeira. E caberá a essa ciência investigar o ser enquanto ser – tanto o que é quanto os atributos que lhe pertencem enquanto ser.” (Aristóteles, 2006). 

            A metafísica aristotélica e o platonismo serão posteriormente incorporados à filosofia cristã, dando origem à metafísica cristã. Pelo lado da filosofia grega foram importantes três escolas de pensamento distintas: o neoplatonismo, o estoicismo e o gnosticismo. O neoplatonismo era uma filosofia baseada em Platão, mas com fortes tendências místicas. Criou uma dicotomia bastante forte entre matéria e espírito – mundo sensível e mundo inteligível – que foi de grande influência na doutrina e filosofia cristã posterior. Do estoicismo a filosofia cristã absorveu o conceito da Razão Universal, que governa toda a realidade de acordo com um plano e à qual os estóicos davam o nome de Providência. O gnosticismo, por sua vez, era um dualismo metafísico, afirmando a existência de dois princípios – Bem e Mal – que governavam o universo e estavam constantemente em luta. Para o gnosticismo era possível alcançar a Verdade e o Bem intelectualmente. “Para eles, o contato com a divindade é um assunto pessoal e direto e intransferível; isto é, não se precisa nem nunca se precisou da intermediação de uma casta sacerdotal. E se para eles a origem de todos os males está na matéria, o mal maior não é o pecado herdado do casal original, Adão e Eva, e sim a profunda ignorância em que estamos mergulhados, e que corrompe nossa existência.” (Fiorillo, 2008).
            O cristianismo fez um amálgama com estas escolas filosófico-religiosas – afora outras que indiretamente também contribuíram para o cristianismo primitivo, como a filosofia cínica e cética, o maniqueísmo, o mitraísmo – e formou o que posteriormente veio a ser conhecido como a filosofia cristã e metafísica cristã. Evidentemente que se trata de assunto para especialistas, mas valeria a pena um estudo da influência de todas estas filosofias e doutrinas religiosas na formação da metafísica cristã, incorporando os conceitos de um Deus criador, pessoal, trinitário; da alma imortal; da criação do mundo ex nihilo; da não-contradição entre a liberdade humana – o livre arbítrio – e a onipotência e onisciência de Deus. Assim serão estas as idéias que balizarão toda a metafísica ocidental, desde o pensamento patrístico de Agostinho, passando pela escolástica com Tomás de Aquino, até o início da era moderna, quando então diversos conceitos metafísicos passam a perder a credibilidade.
            A partir de Descartes a filosofia passa por uma reestruturação, principalmente a metafísica. Diferentemente da tradição até então vigente, que dizia haver tantas substâncias quanto havia gêneros e espécies, os modernos filósofos falavam em três substâncias: a pensante (o homem); a extensa (os corpos) e a infinita (Deus). Com estes conceitos, os empiristas e racionalistas elaboraram diferentes visões da metafísica, que basicamente se apoiavam nos conceitos de substância pensante, extensa e infinita.       
  
Desenvolvimento
A crítica da metafísica:
            A metafísica, de uma maneira ou de outra, já vinha sofrendo críticas desde o início da Era Moderna. Estes detratores, vivendo em um ambiente cultural ainda dominado pela igreja católica – sempre apoiada na ação da Inquisição –, eram perseguidos e atacados, muitas vezes classificados como ímpios e ateus. Em relação a este período relata o historiador Georges Minois: “Quando Voltaire acusa Descartes de influenciar o ateísmo, claro, não estava inteiramente errado. Na origem das idéias mais evidentes, na origem do cogito, está a dúvida metódica, de que não se sai tão facilmente como o filósofo julga.” (Minois, 2004).

            A metafísica clássica ou moderna desde Descartes vinha se apoiando na idéia de que o pensamento humano possui a capacidade de conhecer a realidade como ela é em si mesma (conhecer “o ser do ser”). Isto significa, em outras palavras, que as idéias correspondem à realidade e esta correspondência era garantida por um Ser infinito (Deus). Esta relação era sustentada por três princípios básicos da filosofia, desde Aristóteles: a) o princípio de identidade; b) o princípio da não-contradição; c) o princípio de causalidade.
            Na Inglaterra do século XVIII surge o filósofo empirista David Hume, que coloca em questão todos estes princípios da metafísica ao afirmar que tais pressupostos não existiam – e consequentemente não eram idéias que tínhamos “impressas” em nossas mentes – tratando-se apenas de hábitos mentais, resultado de repetições constantes, que observamos na natureza. Assim também os conceitos metafísicos de substância, alma, matéria, causa-efeito, forma, etc., seriam apenas conceitos que povoam nossas mentes, fruto da associação de idéias (resultantes de percepções) e sem nenhum fundamento real. Sobre a posição indefensável da metafísica, Hume escreve: “Esta é, na verdade, a objeção mais justa e mais aceitável contra uma parte considerável da metafísica que não forma propriamente uma ciência, mas brota tanto pelos esforços estéreis da vaidade humana que queira penetrar em recintos totalmente inacessíveis à inteligência humana, como pelos artifícios das superstições populares que, incapazes de se defenderem lealmente, arquitetam essas sarças emaranhadas, para cobrir e proteger suas fraquezas” (Hume 2007). Depois de Hume a metafísica não poderia mais ser a mesma, como vinha sendo praticada desde os gregos.

A posição de Kant:
            O primeiro filósofo a levar a sério a crítica de Hume ao pensamento metafísico foi Immanuel Kant. Segundo ele mesmo declara, Hume o havia acordado de seu “sono dogmático”, forçando-o a repensar toda a validade do conhecimento e refazendo, assim, a filosofia ocidental. Kant assume a tarefa de colocar a filosofia sobre bases mais sólidas, interrogando-se sobre as próprias possibilidades da razão. Segundo Georges Pascal, Kant levanta duas grandes questões: 1) Como é possível explicar a existência de conhecimentos certos e racionais na matemática e na física ?; e 2) É possível que exista tal conhecimento na metafísica? A resposta à primeira pergunta proporcionaria a solução da segunda, “pois é pela reflexão sobre como a matemática e a física chegaram a certezas a priori que descobriremos as possibilidades da razão”. (Pascal, 2007).       
            A grande “revolução copernicana” de Kant, a reestruturação que dá à filosofia, é na realidade a substituição, em teoria do conhecimento, de uma hipótese idealista por outra realista. O realismo admite que a realidade nos é dada através das impressões, fazendo com que o espírito tenha uma atitude passiva. Esta é a posição epistemológica criticada por Hume. O idealismo parte do pressuposto de que o espírito intervém na elaboração do conhecimento e que a realidade é resultado desta construção. Os objetos assim como os conhecemos são em parte elaboração nossa e é por isso que podemos ter um conhecimento a priori. Assim, Kant conclui que nosso saber sobre a realidade “longe de coincidir com a verdade absoluta das coisas, é todo ele travejado por elementos inscritos na nossa faculdade de conhecer, cuja estrutura antecede a experiência e determina os parâmetros no interior dos quais ela se torna possível” (Figueiredo, 2005).
            No entanto, apesar de partir da crítica humeana, Kant, todavia, não adere totalmente as suas teses, por serem demasiadamente céticas. Para Kant trata-se de reformar a filosofia, estabelecer os limites da metafísica, mas manter o primado da razão. Hume com sua filosofia colocava em risco mesmo o conhecimento da natureza, que, segundo ele, baseava-se na indução e não na razão. Cabia, então, achar um novo caminho para estruturar a possibilidade do conhecimento. Essa iniciativa de Kant parte de uma posição idealista: a razão não depende das coisas e nem é regulada por elas; mas são as coisas que dependem da razão e por ela são condicionadas. Assim, o filósofo faz a distinção entre as duas formas de conhecimento: o que depende do objeto e constitui a matéria do conhecimento; e o que depende do sujeito e constitui a forma de conhecimento. Com relação a este ponto escreve Kant na “Crítica da Razão Pura”: “Sensação é o efeito que um objeto causa na capacidade de representação, quando o mesmo objeto nos afeta. A intuição é chamada de empírica quando, mediante sensação, refere-se ao objeto. Fenômeno é o objeto indeterminado de uma intuição empírica. Matéria é o que no fenômeno corresponde à sensação. Forma é o que o múltiplo do fenômeno, em determinadas relações, deve ser ordenado.” (Kant, 2007).

            Segundo Kant, apesar de possuirmos conhecimento a priori, como das proposições matemáticas, nem todo conhecimento a priori tem o mesmo valor. Para explanar bem a diferença entre certo tipo de conhecimento, Kant faz a distinção entre juízos analíticos e juízos sintéticos. O primeiro extrai conhecimento do próprio sujeito, por simples análise. Como exemplo, Kant cita o fato de que todos os corpos são extensos. O conceito, neste caso, está no próprio sujeito – todo corpo tem extensão. O juízo sintético é aquele cujo predicado acrescenta alguma coisa ao sujeito, por exemplo: todos os corpos são pesados. É através dos juízos que as coisas passam a existir para nós, por se tornarem objeto de nosso conhecimento. Uma coisa passa então a existir quando pode tornar-se objeto de conhecimento de uma estrutura a priori universal da razão humana, aquilo que Kant denominou como Sujeito Transcendental.
            Para Kant existem dois tipos de realidade. A primeira, aquela que recebemos através da sensibilidade e das categorias e que se transforma em fenômeno. A segunda, que não se oferece à experiência e não recebe formas e categorias, permanece sendo o noumeno, a coisa-em-sí, inapreensível e misteriosa ao conhecimento humano. A metafísica – pela definição filosófica – era aquele conhecimento que se ocupava de entes que eram dados ao pensamento sem qualquer relação com a experiência. No entanto, de acordo com Kant só podemos conhecer aquilo que apreendemos no tempo e no espaço, segundo as formas do conhecimento. O que extrapolava disso, o que estava fora desta classificação, era o noumeno, o objeto da metafísica, impossível ao nosso conhecimento. Desta forma, todos os conceitos anteriores da metafísica, como: ser imaterial, Deus, alma, infinito, etc., não tinham mais nenhum fundamento racional, já que não eram objeto da percepção e, desta forma não eram mais objeto de estudo da filosofia.

Conclusão e comentário:
Eliminando assim a possibilidade de conhecer os entes metafísicos, Kant acaba com a fatuidade de uma metafísica. Na dialética transcendental o filósofo mostra que as provas da existência de Deus – a cosmológica, a ontológica e a teológica – tão valorizadas pela metafísica tradicional, não tem fundamento racional. “A grande originalidade de Kant consiste provavelmente em ter tido a audácia de colocar uma pergunta que aflorava constantemente nos discursos filosóficos referentes à verdade desde Platão, mas que jamais, creio, nenhum pensador havia radicalizado verdadeiramente. Kant, em suma, tem a audácia excepcional de colocar a pergunta: Como é possível a verdade? Desde sempre os filósofos, em particular os grandes metafísicos clássicos – Descartes, Spinoza, Malebranche, Leibniz – tinham como evidente que a verdade existia.” (Châtelet, 1993). No entanto, apesar de provar a impossibilidade da metafísica e de seus pressupostos, Kant foi sempre um entusiasta da disciplina e tentou mais tarde – na Crítica da Razão Prática – retomar as provas metafísicas baseado nos argumentos morais, com fundamento na liberdade. Assim, a ética tornou-se o grande tema da metafísica, como estudo da Razão Prática.
            A metafísica depois de Kant nunca mais foi a mesma de antes. Com seu sistema filosófico Kant acabou transformando a teoria do conhecimento em metafísica, afirmando que esta investiga possibilidade de um conhecimento universal e necessário. Outro aspecto importante é que o filósofo mostrou que o sujeito do conhecimento é uma estrutura universal, compartilhada por todos os seres humanos; a razão ou Sujeito Transcendental. A realidade é assim estruturada pelas idéias, produzidas pelo sujeito. Com isso a metafísica torna-se uma exteriorização das idéias do sujeito, isto é, torna-se idealista. “Kant mostrou que pensamos “legitimamente” os objetos metafísicos, sem cair em contradição conosco. Mas Kant mostrou que do ponto de vista teórico esta correspondência (entre nossas idéias e a existência de entes metafísicos) necessariamente não é verdadeira. Mas, por outro lado, a filosofia de Kant também demonstrou que se por um lado não é possível provar os conceitos metafísicos, por outro lado também não é possível provar sua inexistência.” (Bento Prado Jr., s/d).      
Bibliografia
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Verbete “metafísica”. São Paulo. Martins Fontes: 2007, 1.210 pgs.
ARISTÓTELES. A metafísica. São Paulo. Edições Profissionais: 2006: 363 pgs.
CHÂTELET, François. Uma historia de la razon – Conversaciones com Emile Noel. Buenos Aires. Ediciones Nueva Visión: 1993, 191 pgs.
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo. Editora Ática: 2006, 424 pgs.
FIGUEIREDO, Vinicius de. Kant & A crítica da razão pura. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor: 2005, 74 pgs.
FIORILLO, Marilia. O Deus exilado – breve história de uma heresia. Rio de Janeiro. Editora Civilização Brasileira: 2008, 303 pgs.
GRAY, John. Cachorros de palha. Rio de Janeiro. Record Editora: 2006, 255 pgs.
HUME, David. Investigações sobre o entendimento humano. São Paulo. Editora Escala: 2007, 173 pgs.
JR. BENTO, Prado. Curso sobre Heidegger: Kant e o problema da metafísica. http://www.conciencia.org/heideggerkantcursabento1.shtml
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KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo. Ícone Editora: 2007, 541 pgs.
MINOIS, Georges. História do Ateísmo. Lisboa. Editorial Teorema: 2004, 739 pgs.  
PASCAL, Georges. Compreender Kant. Rio de Janeiro. Vozes Editora: 2007, 206 pgs.
PLATÃO. A República. São Paulo. Editora Nova Cultural: 2004, 352 pgs.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario, História da Filosofia – Vol II. São Paulo. Paulus Editora: 1990, 956 pgs.
SEVERINO, Joaquim Antonio. Metodologia do Trabalho Científico. São Paulo. Cortez Editora: 2006, 335 pgs.


(Imagens: pinturas de Atsuko Tanaka) 

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