"A religião enquanto fonte de consolo é um obstáculo à verdadeira fé, e nesse sentido o ateísmo é uma purificação." - Simone Weil - Cadernos II
Um grande banco lançou recentemente uma nova campanha de comunicação, tendo como tema a série animada de TV “Os Jetsons”. O desenho original foi produzido pela americana Hanna Barbera e veiculado originalmente no Brasil entre os anos 1962 e 1963, sendo posteriormente reprisado ao longo de toda a década. A série retrata uma típica família de classe média branca americana dos anos 1960; pai, mãe, um casal de filhos, a empregada (Rosie, um robô) e o cachorro “Astro”.
A produção
surgiu no mesmo período em que os Estados Unidos lançavam seu programa espacial,
no início dos anos 1960. Os americanos estavam competindo com a então União
Soviética, que em 1961 havia se adiantado, colocando o primeiro astronauta no
espaço. Naves espaciais, viagens interplanetárias, foguetes e a vida num futuro
dominado pela tecnologia, eram temas de filmes, estórias em quadrinhos, romances
de ficção científica. O assunto dominava a cultura de massa americana de tal
maneira, que influenciou a indústria dos brinquedos, dos alimentos para o
público infantil (que surgia naquela época), o setor do lazer e até os seriados
infantis da época.
A
agência de publicidade contratada pelo banco utilizou o tema da família Jetsons
por seu apelo futurista, explicitando e exemplificando de certa forma a
mensagem conceitual de sua campanha anterior, que promovia a “inteligência
artificial” do banco. Analisando a peça publicitária, podemos nos perguntar: o quanto
ela tem a ver com a sociedade brasileira? A maneira de tratar o assunto ainda é
moderna?
De
início vemos que o filmete nada tem a ver com a sociedade brasileira. Trata-se de uma família classe média branca, de
aparência pouco usual para as condições brasileiras. Não que tais tipos humanos
não pudessem absolutamente existir no Brasil. Seriam, todavia, incomuns e não
refletem a média da população brasileira.
Deveríamos
nos perguntar, se no futuro ainda seriam comuns para as famílias os deslocamentos
por transporte individual – pensemos nos países com infraestrutura de
transporte desenvolvida. Será que o trabalho ainda seria realizado
presencialmente, como mostra a animação? A escola frequentada pelo filho ainda
seria presencial? Ainda se usaria dinheiro em espécie, como fazem a mãe e a
filha? Todavia, algo que parece não ter mudado é a caracterização do “robô-doméstica”,
retratada vestindo um uniforme, parecido aos das atuais empregadas domésticas de
famílias ricas. Num futuro tão moderno ainda seria necessário mostrar através
de um uniforme, que o robô exerce a função de “doméstica”?
Além
do mais, é pouco provável que a sociedade americana do futuro ainda seria predominantemente
branca e de classe média. Os Estados Unidos passaram por transformações nas
últimas décadas, que ocorreram em grande parte depois que a série Jetsons foi
criada. Negros, latinos, asiáticos representam atualmente um percentual importante
da população e da classe média americana. Por outro lado, aumentou bastante a
pobreza; 139 milhões de pessoas, 43% da população, são pobres ou vivem com
renda insuficiente para pagar suas contas.
É
apenas um filme, dirão muitos. Sim, mas o filme não parece retratar o futuro –
ou aquilo que se poderia imaginar como talvez sendo as condições do futuro. O
que mostra é o presente projetado num suposto futuro. Ou melhor: o presente
projetado dentro das condições tecnológicas que se imaginam para o futuro. Comparável
a algo como o político e general romano Júlio César, falando ao celular com o
senado romano, reportando as batalhas sangrentas com os gauleses. Como se o
futuro fosse igual ao presente, só que com tecnologia mais moderna.
Assim,
perguntamo-nos se a campanha de comunicação está realmente transmitindo a
mensagem que pretende, “experimente o futuro”? Um olhar atento parece revelar
apenas o “passado no futuro”, com as mesmas mazelas. Mas, não seria isto que
alguns sempre esperam que ocorra? A manutenção das condições sociais, das relações de produção, como diria Marx?
(Imagens: pinturas de Hermann Scherer)