Cidades e planejamento

sábado, 21 de março de 2020
"Desse modo, a ficção do Ser é derivada da ficção do eu. O mesmo princípio de individuação atua tanto no campo microscópico da pessoa quanto no campo macroscópico do mundo inteiro."   -   Antoine Panaïoti   -   Nietzsche e a filosofia budista


A cidade é uma das maiores invenções da humanidade. Este espaço geográfico urbanizado e humanizado surgiu no período Neolítico, por volta de oito mil anos atrás. As primeiras aglomerações urbanas provavelmente apareceram por causa da praticidade. O templo era estabelecido em um lugar estratégico de uma região, e em seu entorno se fixavam os artesãos – o ferreiro, o padeiro, o oleiro –, cujos produtos eram comprados pelos camponeses das redondezas. Aos poucos esta pequena vila vai atraindo mais pessoas, sua organização social se torna mais complexa, até se transformar em centro comercial e político. A mesma evolução ainda pode ser observada nos dias atuais, em regiões como o Norte e o Centro-Oeste do Brasil.  
  
O surgimento e o crescimento das cidade na maior parte dos casos, ocorre de forma espontânea. São raras as cidade planejadas, já que a maior parte é resultado de um longo desenvolvimento histórico, no qual as intervenções feitas em determinada época, são anuladas por sucessivas mudanças ocorridas posteriormente. A cidade de Roma, por exemplo, fundada por volta de 800 A.C., chegou a ter um milhão de habitantes no 1º século de nossa era. Por volta do século V entrou em um período de extrema decadência, com a queda do império romano, abrigando 35 mil habitantes por volta do ano 800 e 15 mil no ano 1084.

A primeira cidade planejada no Brasil foi Salvador, fundada em 1549 pelo primeiro governador-geral da colônia, Tomé de Souza. O objetivo da coroa portuguesa era fazer do núcleo urbano a capital, o centro administrativo e fortaleza militar, tendo para isso contratado o arquiteto militar lisboeta Luís Dias (1505-1542). Outra cidade planejada na mesma época foi Olinda, no Pernambuco. No século XIX temos como exemplo de cidades planejadas Teresina, capital do Piauí (1852) e Aracajú, capital do Sergipe (1854). Em 1897 foi fundada a cidade planejada de Belo Horizonte, que deveria substituir a antiga capital Ouro Preto. Durante o projeto de ocupação do interior do Brasil no governo de Getúlio Vargas, chamado de “Marcha para o Oeste”, foi fundada a cidade de Goiânia (1930). Um dos mais famosos projetos no mundo de urbe planejada, foi o da cidade de Brasília (1960), elaborado pelos arquitetos e urbanistas Lúcio Costa e Oscar Niemeyer.

Mesmo tendo sido preparadas como “local humano de viver” em sua origem, as cidades planejadas, em sua maior parte, não mantêm suas características, já que não há um acompanhamento e adaptação constante de seu desenvolvimento. Cidades, assim como a economia de um país, a bolsa ou o clima, são sistemas complexos, sujeitos a uma infinidade de mudanças pequenas ou maiores, que se influenciam reciprocamente, provocando ao longo do tempo mudanças imprevisíveis. Povoações ou metrópoles estão sujeitos às mais diversas intervenções – clima, migrações, desenvolvimentos tecnológicos, leis, fatores econômicos, etc., – que em sua maior parte fogem completamente ao controle daqueles que teriam a função de manter ou desenvolver o planejamento urbano.

Isto, no entanto, não quer dizer que as cidades não são administráveis. O que ocorre, é que efetivamente é necessário que as administrações municipais invistam recursos para poder manter a cidade em relativo funcionamento, sendo capazes de prever evoluções futuras (enchentes, especulação imobiliária, demanda por transporte e equipamentos públicos). Para isso são necessárias políticas públicas, especialistas, equipamentos e recursos financeiros. No entanto, em grande parte dos municípios brasileiros, este tipo de gasto não está previsto nas despesas correntes.

No aspecto das políticas públicas, aquelas que deveria estabelecer as linhas mestras do planejamento das cidades, as condições também não são propícias no Brasil. O Estatuto das Cidades, criado através da Lei federal 10.257/01 em 2001, estabelece uma série de políticas para as cidades brasileiras – elaboração de um Plano Diretor, função da propriedade, criação de políticas de cunho social, entre outras. A lei ainda é pouco utilizada como instrumento de planejamento do crescimento sustentável das cidades. Na própria administração federal, diminuiu a preocupação com o desenvolvimento urbano do país, já que o Ministério das Cidades, que se ocupava de temas como a moradia, o saneamento e o transporte, foi incorporado ao Ministério do Desenvolvimento Regional.

Como implantar um programa nacional de planejamento urbano, visando reorganizar a maior parte das cidades brasileiras e melhorar o padrão de vida de seus habitantes? Como priorizar uma agenda social, voltada para a maior parte da população – principalmente a pobre – e não permitir que as administrações continuem privilegiando interesses de grupos econômicos e da especulação imobiliária? São algumas das perguntas a serem respondidas pelas próximas gerações de políticos e administradores públicos.

(Imagens: pinturas de Carl Heidenreich)

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