Acima de tudo e de todos

sábado, 19 de junho de 2021

 

"Pornografia é tudo aquilo que excita os moralistas."   -   Millôr Fernandes   -   A Bíblia do caos    


O Brasil viveu poucos períodos em sua história comparáveis ao que estamos passando no momento. O país nunca foi rico, apesar de dispor de muitas riquezas, exploradas por poucos que se beneficiaram delas. Todavia, a partir de certo período de nossa história no século XX, principalmente após a Segunda Guerra, a sociedade brasileira começou a criar metas; projetos nacionais como um horizonte a ser alcançado. Expansão da infraestrutura, criação de mais empregos, melhora do nível de vida da população, ampliação e diversificação da indústria, crescimento das cidades, a “marcha para o Oeste”, com a construção de Brasília, a ampliação da fronteira agrícola e a ocupação de extensas áreas desabitadas no interior do país, incluindo a Amazônia.

Bem ou mal, aos trancos e barrancos, o povo brasileiro conseguiu modernizar o país ao longo das últimas seis ou sete décadas, colocando-o no rol das grandes nações do planeta. Não somente por sua extensão territorial, abundância de recursos naturais e resiliência de seu povo. Mas também por ter criado uma vasta e variada cultura popular e ter contribuído para enriquecer a cultura acadêmica mundial. Desenvolvemos tecnologias em diversas áreas – agricultura, aeronáutica, medicina, máquinas, tecnologias e diversos setores do conhecimento – e chegamos a ser a sexta maior economia do planeta.

Não resta dúvida de que este grande esforço – consciente para alguns e inconsciente para a maioria – de construir uma sociedade melhor, mais humana e justa, não chegou a beneficiar suficientemente a maior parte do povo brasileiro. A verdade é que os frutos destes grandes avanços ocorridos em todas as áreas, materiais e imateriais, não foram igualitariamente distribuídos. Não porque pessoas e alguns grupos sociais fossem mais capazes ou tivessem mais sorte, mas porque estruturas sociais, ideologias e – em casos extremos – o uso da força, fizeram com que em muitos aspectos a sociedade brasileira permanecesse o que foi de há muito: autoritária e excludente. Desde os tempos da Colônia, do Império, passando pela Primeira República até hoje, certas relações econômicas e sociais não mudaram; sucederam-se os personagens, mas o enredo permaneceu o mesmo.

A maioria dos brasileiros nunca chegou a se dar conta desta forma de arranjo da sociedade e, ainda hoje, grande parte da população o ignora. Em seu último livro O povo brasileiro (1995), o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997), referindo-se aos engenhos de açúcar do Nordeste dos séculos XVI e XVII, dizia que eram “máquinas de moer gente”. A expressão de certa forma pode ser aplicada a toda história do Brasil, se considerarmos a parte do povo sempre esquecida na hora de compartilhar as imensas riquezas que o país produziu de diversas formas, nas diversas regiões, ao longo de sua história.

No atual momento da história brasileira recrudesce-se este processo. Se, por uma lado, devido a diversas razões, aumentou o tamanho da “máquina de moer gente”, por outro também cresceu o número daqueles que foram e estão sendo colocados à parte; a gente que está sendo moída. Se até há alguns anos existia, de certo modo, um consenso na sociedade brasileira, quanto às políticas que deveriam ser implantadas para que o país pudesse oferecer uma vida melhor a todos, principalmente para àqueles que até então haviam sido ignorados, hoje isto mudou.

Se antes se procurava pelo menos amenizar as dificuldades nas quais vivem 60% da população do país, hoje estes impasses são simplesmente ignorados. Formou-se um estranho consenso, como se as dezenas de milhões de brasileiros na miséria, os 500 mil mortos da Covid-19, os milhões de desempregados, desalentados e subempregados, a ausência de perspectivas para os jovens pobres da periferia, as péssimas condições de moradia, o baixo nível do ensino e várias outras mazelas, fossem aceitáveis ou nem existissem. Não existem, e aqueles que tentarem discutir tais problemas são taxados de estraga prazeres (leia-se “comunistas”, “petistas”, “socialistas”, etc., etc.)

Para uma pequena parte da população, os operadores das “máquinas de moer gente” e seus servidores, a situação do país parece estar bem, com tendência crescente de melhora. Tomaram a decisão de garantir e aumentar os seus ganhos e para isso conseguiram aprovar uma série de medidas protetivas – para eles. Desta forma, para “tornar as empresas mais competitivas e criar empregos”, fizeram com que fossem aprovadas mudanças na legislação trabalhista. Para garantirem seus rendimentos financeiros foi necessário “reduzir os custos do Estado”, e assim instituíram o teto de gastos além de encaminharem diversas reformas - previdenciária, administrativa e fiscal - que tiram ainda mais direitos do cidadão e restringem a capacidade de ação do Estado; os investimentos sociais chamados por eles  de “custos”.

Aparentemente, não há mais grandes objetivos coletivos a serem alcançados pela sociedade brasileira. Está praticamente tudo resolvido ou encaminhado. Será? Triste Brasil, como chegamos a este ponto de alienação?


(Imagens: pinturas de Joseph Amedokpo)

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