“Os
personagens trágicos, na Antiguidade, eram deuses, heróis da mitologia, reis e
príncipes; o que lhes acontecia era amiúde terrível, mas cumpria que
permanecesse no quadro do sublime; o realismo rasteiro, a vida cotidiana e tudo
quanto pudesse parecer humilhante era excluído. Ora, para os cristãos o modelo do
sublime e do trágico era a história de Jesus Cristo. Mas Jesus Cristo se tinha
encarnado na pessoa de um filho de carpinteiro; sua vida sobre a terra se
passara em meio a gente da mais baixa condição social, homens e mulheres do
povo; sua paixão tinha sido o que havia de mais humilhante; e precisamente
nesta baixeza e humilhação consistia o sublime de sua personalidade e o
Evangelho que ele e seus apóstolos havia pregado. O sublime da religião cristã
estava intimamente ligado à sua humildade, e essa mescla de sublime e humilde,
ou melhor, essa nova concepção do sublime baseada na humildade, anima, todas as
partes da história santa e todas as legendas dos mártires e confessores. Por
conseguinte, a arte cristã em geral, e a arte literária em particular, não
tinham o que fazer da concepção antiga do sublime; firmou-se um novo sublime
cheio de humildade, que admitia as personagens do povo, que não recuava diante de
nenhum realismo cotidiano; tanto mais que o objetivo dessa arte não era agradar
ao público de escol, mas tornar a história santa e a doutrina cristã familiares
ao povo. É uma nova concepção do Homem que se estabelece, concepção de que já
falei a propósito de Santo Agostinho, que lhe entreviu e formulou claramente as
consequências literárias. Tais consequências foram muito importantes para a
Europa, estenderam-se muito além da arte cristã propriamente dita; todo realismo
trágico europeu dela advém; nem a arte de Cervantes e do teatro espanhol, nem a
de Shakespeare, para citar somente os exemplos mais conhecidos, poderiam ter
sido imaginados sem essa concepção realista do homem trágico, que é de origem
cristã. Tão-somente as épocas que imitaram conscientemente as teorias da
Antiguidade (por exemplo, o Classicismo francês do século XVII) foi que
retomaram à concepção antiga.” (Auerbach, pág. 64)
Erich Auerbach (1892-1957) filólogo alemão em Introdução aos estudos literários
0 comments:
Postar um comentário