Outras leituras

domingo, 6 de abril de 2025


 

“Os personagens trágicos, na Antiguidade, eram deuses, heróis da mitologia, reis e príncipes; o que lhes acontecia era amiúde terrível, mas cumpria que permanecesse no quadro do sublime; o realismo rasteiro, a vida cotidiana e tudo quanto pudesse parecer humilhante era excluído. Ora, para os cristãos o modelo do sublime e do trágico era a história de Jesus Cristo. Mas Jesus Cristo se tinha encarnado na pessoa de um filho de carpinteiro; sua vida sobre a terra se passara em meio a gente da mais baixa condição social, homens e mulheres do povo; sua paixão tinha sido o que havia de mais humilhante; e precisamente nesta baixeza e humilhação consistia o sublime de sua personalidade e o Evangelho que ele e seus apóstolos havia pregado. O sublime da religião cristã estava intimamente ligado à sua humildade, e essa mescla de sublime e humilde, ou melhor, essa nova concepção do sublime baseada na humildade, anima, todas as partes da história santa e todas as legendas dos mártires e confessores. Por conseguinte, a arte cristã em geral, e a arte literária em particular, não tinham o que fazer da concepção antiga do sublime; firmou-se um novo sublime cheio de humildade, que admitia as personagens do povo, que não recuava diante de nenhum realismo cotidiano; tanto mais que o objetivo dessa arte não era agradar ao público de escol, mas tornar a história santa e a doutrina cristã familiares ao povo. É uma nova concepção do Homem que se estabelece, concepção de que já falei a propósito de Santo Agostinho, que lhe entreviu e formulou claramente as consequências literárias. Tais consequências foram muito importantes para a Europa, estenderam-se muito além da arte cristã propriamente dita; todo realismo trágico europeu dela advém; nem a arte de Cervantes e do teatro espanhol, nem a de Shakespeare, para citar somente os exemplos mais conhecidos, poderiam ter sido imaginados sem essa concepção realista do homem trágico, que é de origem cristã. Tão-somente as épocas que imitaram conscientemente as teorias da Antiguidade (por exemplo, o Classicismo francês do século XVII) foi que retomaram à concepção antiga.” (Auerbach, pág. 64)

 

Erich Auerbach (1892-1957) filólogo alemão em Introdução aos estudos literários

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