“A bem da verdade, quando se leva em conta a desilusão dos missionários que por aqui aportaram – as lamurientas cartas dos padres da Companhia de Jesus, salientando o pouco que a pregação missionária entrava nos corações e nas cabeças dos nativos, são exemplares nesse sentido –, pode-se mesmo dizer que Caminha errou redondamente no que tange aos nativos, mas somente no que tange aos nativos, pois, como numa espécie de vaticínio, acertou, ao menos em parte, no tocante aos colonos dos trópicos, uma criatura que desde cedo mostrou grande pendor para crer barulhenta e festivamente em qualquer coisa. Os jesuítas, de novo eles, talvez tenham sido os primeiros a perceber, não sem alguma revolta, tal inclinação do colono e, consequentemente, o caráter ardente mas degenerado que a religião católica vinha tomando nestas terras quentes – religião que, de cristã, segundo os bons padres, conservava somente um detalhe aqui e outro acolá. Todavia, a desaprovação da Companhia, ou das muitas outras ordens que se instalaram no Brasil – ordens que cedo deixaram de lado a enfadonha e inglória missão de converter os gentios e passaram a se dedicar aos fiéis que estavam mais à mão (brancos, negros e mestiços) –, de pouco serviu para deter o avanço e a consolidação desse cristianismo devoto, porém de contornos próprios. Ao contrário, pelo que tudo indica, tanto o clero secular como o regular trataram rapidamente de, com mais ou menos reclamações, ajustar as suas crenças, princípios e exigências aos gostos locais.
Desenvolvemos, então, com a benção dos representantes tortos de Roma – lembremos que a Igreja no Brasil era mantida e regida pela coroa lusitana (padroado) – e com a devoção de que somos capazes, um cristianismo de cor local, cristianismo sensualista, eclético, antipático à introspecção e moralmente pouco exigente, como observou, não sem uma ligeira tristeza, o historiador Sérgio Buarque de Holanda. Um cristianismo singular, que cedo, muito cedo, causou espanto aos cristãos de além-mar que o conheceram.” (França, pág. 49 e 50).
“Portugueses e brasileiros têm uma lastimável inclinação a crer cegamente no fado, na fortuna, e a depositar pouquíssimas esperanças na planificação. O fatalista de lá, no entanto, carrega consigo a incômoda percepção de que a fortuna vai quase sempre colocá-lo em situações difíceis, diante das quais nada há a fazer a não ser se conformar. O daqui, ao contrário, tem a firme convicção de que a boa fortuna se enamorou dele, de que Deus é brasileiro, e de que, com a sorte que temos e que sempre tivemos, tudo se arranjará para melhor, sem necessidade de muito previdência ou de muito esforço. Desde cedo, aprendemos a cultivar esse doce e consolador princípio, que rapidamente se tornou um dos traços mais marcantes do caráter nacional, marcante e saliente, com um amplo leque de sentenças para expressá-lo: essa é uma terra abençoada por Deus, sem catástrofes naturais e extremamente pródiga, o brasileiro é um povo especial, etc. Nem mesmo a história do país escapou à sua envolvência, ao contrário, para boa parte dos brasileiros, a trajetória do Brasil e do seu povo, malgrado uns pequenos percalços aqui e ali – culpa de estrangeiros mal-intencionados ou de nacionais ricos, mesquinhos e estrangeirados –, parece insistentemente corroborá-lo." (França, pág. 54).
Jean Marcel Carvalho França (1966-), historiador, professor universitário e escritor brasileiro em Ilustres ordinários do Brasil
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