Usualmente encara-se a Revolução Protestante do século XVI como sendo a irrupção de algo inesperado, quando muito de disposições religiosas e sociais vagamente em maturação, se levamos em conta as críticas de pré-reformadores como Wyclif e Huss. Superficialmente, muitas análises daquele período histórico consideram que em seu início a Reforma não tenha tido amplo apoio, e que a oposição à Igreja Católica era algo social e geograficamente localizado. Esta posição, porém, não é historicamente defensável.
Para analisar este tema precisamos voltar à Idade Média. Com relação aos movimentos sociais faz-se geralmente uma precária caricatura histórica do período medieval; como se este fosse um intervalo de domínio hegemônico da Igreja Católica. Na realidade, através da pesquisa histórica – principalmente a chamada “História do cotidiano” – chegou-se presentemente à conclusão de que a idade medieval era bem mais interessante, criativa e insubmissa do que se imaginava. Esquematicamente, podemos separar os acontecimentos do período em seus aspectos sócio-econômicos, sócio-culturais e religiosos. Considerada em seus fatores sócio-econômicos, a Baixa Idade Média apresenta as seguintes características:
- A partir do ano 1.100, impulsionado por alguns progressos tecnológicos (moinho a vento, cela, arado com roda, entre outros) há um reaparecimento do comércio em toda a Europa, propiciando o crescimento das cidades, a circulação do dinheiro e a formação de uma classe social que – apesar de ainda ser vista com desconfiança pela Igreja e pelos senhores feudais – representava a nova classe econômica em formação: o burguês.
- Inicia-se uma mobilidade social desconhecida nos cerca de 1.000 anos anteriores. Servos tornam-se independentes de seus senhores ou simplesmente fogem para as cidades maiores, onde os senhores não tinham mais poder, para se dedicarem ao artesanato, trabalhando em oficinas muitas vezes financiadas pelos mercadores. Estes, por sua vez, compravam os produtos fabricados pelos artesãos e os trocavam ou vendiam por outros produtos. Fortalecia-se o comércio regional e internacional e surgiam as cidades-mercantes (Veneza, Gênova, Florença, Hamburgo, Londres, entre outras), que atraiam comerciantes, artistas e artesãos especializados.
- A relutância dos nobres em propiciar melhores condições para seus servos (supressão de restrições ao comércio de produtos, introdução do trabalho assalariado, etc.) provoca revoltas sociais e levantes de camponeses em toda a Europa. John Ball foi um clérigo que chefiou uma destas revoltas, a Revolta Camponesa da Inglaterra em 1381. Outras revoltas importantes que antecederam esta foram a Revolta de Flandres, entre 1323 e 1328 e a “Jacquerie” na França, em 1358.
- A hegemonia da crença em Deus não é inconteste. “A importância dada à busca das “provas da existência de Deus, por exemplo, com Santo Anselmo e São Tomás, deveria bastar para despertar as dúvidas. Se a fé se impusesse por si, essa preocupação seria supérflua” (Minois, pg.79, 2004). “...ao redor de Aristóteles, Averróis, dos nominalistas e de Siger de Brabante, a expressão de um agnosticismo, de um materialismo e de um ateísmo implícitos, disfarçados por razões de segurança, longe das disputas formais” (Minois, pg 79, 2004). Pouco conhecidos do público leigo, Davi de Dinan, Boécio de Dácia, Siger de Brabante, Amaury de Bennes, no século XIII e Nicolas d´Autrecourt no século XIV, eram pensadores cujas obras haviam sido condenadas em parte ou em sua totalidade pela Igreja, por esta considerar seus escritos ateus. Incluso à crítica dos conceitos filosófico-teológicos da religião, estava a crítica à hierarquia e aos dogmas da instituição. Vê-se assim, que a crença na religião não era absolutamente hegemônica, apesar da terrível repressão no período (acentuada mais ainda depois da criação da Inquisição, no século XIII).
O período da Baixa Idade Média também era palco do surgimento de diversas heresias, geralmente de cunho milenarista (anunciando o fim do mundo), pregando a libertação dos pobres, a destruição da Igreja e a abolição dos poderes do corpo eclesiástico. Algumas destas seitas heréticas pregavam pobreza voluntária, como a dos valdenses, criada por Pierre Valdo, um mercador de Lyon, que em 1173 abandonou todos os bens e passou à pregação. Outra “falsa doutrina”, mais radical, era a dos Irmãos do Livre-Espírito, aparente fundada pela mística Marguerite Poret em 1310, mas provavelmente mais antiga. Um dos líderes dos Irmãos do Livre-Espírito, Konrad Schmid, capturado pela Inquisição em 1317, declarava que “O homem verdadeiramente livre é rei e senhor de todas as criaturas. Todas as coisas lhe pertencem e ele tem o direito de fazer uso de seja o que for que lhe agrade” (Cohn, pg.151, 1981).
A própria Ordem dos Irmãos Menores, nome inicialmente dado aos Franciscanos, teve dificuldades em ser aceita pelo papa. Somente depois que membros da Ordem foram acusados de heresia na França, na Holanda e na Alemanha – o que fez São Francisco aceitar a alteração de certos pontos da Regra da Ordem –, é que esta foi aceita pelo papa Gregório IX.
No século XII dissemina-se na Itália e no sul da França a seita dos cátaros, que acreditavam em um forte dualismo inspirado no gnosticismo antigo. O mundo, diziam, foi criado pelo Diabo – associado a Javé do Antigo Testamento – e será salvo por Jesus, enviado por um Deus bom e luminoso.
Assim como estas, ainda existiam dezenas – ou centenas – de outras seitas heréticas, como os albigenses, os flagelantes e muitos outros. Interessante notar que é no século XIII, que a Igreja institui oficialmente a existência do Purgatório (1259), abrindo a possibilidade de um estado intermediário entre o céu e o inferno. Com isso, era possível que mesmo os comerciantes e banqueiros – apesar de visarem o lucro condenado pela Igreja – tivessem a chance de salvar suas almas.
Depreende-se de que no final da Idade Média existia uma forte oposição ao sistema econômico, social e cultural sustentado pela Igreja, o feudalismo. Ao começar a Era Moderna em 1453, com a Queda de Constantinopla - capital do remanescente Império Romano do Oriente, que havia sobrevivido por cerca de 1.000 anos – o universo cultural e religioso da Europa se encontrava em uma situação tal, que seria inevitável um uma comoção envolvendo a Igreja Católica. Zwinglio, Lutero, Karstadt, Melachton, Calvino e outros de menor importância, que apareceram posteriormente ainda no século XVI (Menon, Münzer, entre outros), representam os furos de um dique, que não podia mais comportar a pressão da imensa oposição à Igreja, externando-se na teologia, mas de abrangência muito mais ampla.
Iniciada a Reforma, a Igreja perdeu muitos territórios, junto com os fiéis. O avanço da Reforma só foi barrado através da ação da Inquisição, da Contra-Reforma e da intervenção de novas ordens religiosas, principalmente a dos jesuítas.
A simples incorporação de fracas reformas sugeridas pelo filósofo Erasmo de Rotterdam – que no fundo seguia a política dos “panos quentes”, por não querer um confronto com a Igreja e ao mesmo tempo querer manter certa autonomia individual frente à instituição – não poderia estancar o movimento da Reforma. O fato é que todas as idéias de Erasmo – a crítica aos rituais, a pilhéria à venialidade dos religiosos, a sátira ao enclausuramento, a philosophia Christi, a noção da máscara – praticamente cada uma de suas reflexões, já haviam sido levantadas por grupos opositores e seitas heréticas na Idade Média. A idéia de reforma da Igreja é tão velha quanto à própria instituição. Além disso, a implementação destas reformas sugeridas pelo filósofo holandês não seriam possíveis. A oposição interna na Igreja contra tais mudanças, dados a inércia e o apego aos privilégios por parte de seus membros, era muito grande. Isto é comum em qualquer instituição autoritária, dominadora e burocrática, haja vista os exemplos das máquinas estatais dos regimes despóticos como Cuba, China e outros já desaparecidos.
A simples incorporação de fracas reformas sugeridas pelo filósofo Erasmo de Rotterdam – que no fundo seguia a política dos “panos quentes”, por não querer um confronto com a Igreja e ao mesmo tempo querer manter certa autonomia individual frente à instituição – não poderia estancar o movimento da Reforma. O fato é que todas as idéias de Erasmo – a crítica aos rituais, a pilhéria à venialidade dos religiosos, a sátira ao enclausuramento, a philosophia Christi, a noção da máscara – praticamente cada uma de suas reflexões, já haviam sido levantadas por grupos opositores e seitas heréticas na Idade Média. A idéia de reforma da Igreja é tão velha quanto à própria instituição. Além disso, a implementação destas reformas sugeridas pelo filósofo holandês não seriam possíveis. A oposição interna na Igreja contra tais mudanças, dados a inércia e o apego aos privilégios por parte de seus membros, era muito grande. Isto é comum em qualquer instituição autoritária, dominadora e burocrática, haja vista os exemplos das máquinas estatais dos regimes despóticos como Cuba, China e outros já desaparecidos.
Admitindo-se que o fosse possível reformar a Igreja, isto não seria realizável em curto espaço de tempo. O próprio Concílio de Trento, destinado a reorganizar a Igreja depois que a Reforma já havia se alastrado, teve início em 1545 e só acabou em 1563. Mesmo assim, as reforma instituídas por Trento – aquelas que em parte Erasmo havia sugerido – só foram implementadas ao longo de várias décadas.
Outro fator que teve muito peso na ocorrência da Reforma, foi a grande oposição que existia nos países situados longe de Roma, como por exemplo a Suíça, a Alemanha, os Países Baixos e a Inglaterra, em relação à autoridade e à influência do papa. Por outro lado, havia grande interesse dos nobres destes países em tomarem posse dos bens da Igreja. A Reforma era uma ótima razão para isso.
Finalizando, concluímos que:
- 1. A Igreja não aceitaria as reformas propostas por Erasmo – julgava-se muito forte.
- 2. Mesmo que as aceitasse, levaria muito tempo para implementá-las – não o fez até hoje.
- Admitindo 1 e 2, mesmo assim a Reforma aconteceria, pois as propostas de Erasmo não eram novas, já haviam sido cobradas há pelo menos 300 anos pela sociedade e desta forma não teriam mais impacto – o tempo da Igreja se reestruturar já havia passado.
Bibliografia:
Cohn, Norman, Na Senda do Milênio – Milenaristas Revolucionários e Anarquistas Místicos na Idade Média, Editorial Presença: Lisboa, 1981, 333 pgs.
Dobb, Maurice, A Evolução do Capitalismo, Zahar Editores: Rio de Janeiro, 1974, 482 pgs.
Eliade, Mircea, História da Crenças e das Idéias Religiosas – Tomo III, Zahar Editores: Rio de Janeiro, 1984, 400 pgs.
Minois, Georges, História do Ateísmo – Os Descrentes no Mundo Ocidental das Origens aos Nossos Dias, Editorial Teorema: Lisboa, 2004, 739 pgs.
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