Um dia, numa taverna, pedi a um velho notícias dos que partiram. E ele me respondeu: "Não voltarão. Eis tudo o que sei. Bebe vinho". - Omar Khàyyàm - Rubàiyàt
A música de Mozart é inspiradora. Psicólogos e neurologistas já realizaram vários testes e chegaram à conclusão de que as harmonias criadas pelo austríaco acalmam os ânimos e aumentam a criatividade, se ouvidas por longos períodos. Até animais, segundo outras experiências, perdem parte de sua agressividade inata ao escutarem prolongadamente a música de Mozart. Seja pelo efeito fisiológico ou pelo prazer estético, vale a pena apreciar as sinfonias, concertos e minuetos, criadas por este gênio.
Pois bem, estava eu ouvindo as “Salzburger Sinfonien” um dia destes, quando por acaso me lembrei de um texto lido há algum tempo, não me lembro em que lugar. A história era quase o enredo de um filme, com imagens construídas cuidadosamente pelo autor. O texto descrevia em muitos detalhes instantes nas vidas de diversos tipos de pessoas, apresentadas em uma sequência de quadros. Nestes, os personagens retratados se recordavam dos momentos mais felizes de suas vidas.
Na primeira cena aparece uma mãe, talvez já avó; recordava-se de quando seus filhos eram pequenos ainda, dormindo no berço. Hoje a realidade dela talvez fosse outra – o texto nada deixa entrever – mas a recordação traz à mulher instantes de grande alegria. Outra cena, e aparece um operário cansado de um dia de trabalho, viajando em um ônibus e lembrando com satisfação o quanto seu esforço sempre pôde contribuir para a sobrevivência e união de sua família. Mais à frente na narrativa aparece um homem, não mais tão jovem, lembrando-se do sol iluminando o rosto e o sorriso da primeira namorada. O personagem seguinte é um político no final de uma carreira que por vezes fora tortuosa; recordava o idealismo de seus primeiros anos na militância política.
Na primeira cena aparece uma mãe, talvez já avó; recordava-se de quando seus filhos eram pequenos ainda, dormindo no berço. Hoje a realidade dela talvez fosse outra – o texto nada deixa entrever – mas a recordação traz à mulher instantes de grande alegria. Outra cena, e aparece um operário cansado de um dia de trabalho, viajando em um ônibus e lembrando com satisfação o quanto seu esforço sempre pôde contribuir para a sobrevivência e união de sua família. Mais à frente na narrativa aparece um homem, não mais tão jovem, lembrando-se do sol iluminando o rosto e o sorriso da primeira namorada. O personagem seguinte é um político no final de uma carreira que por vezes fora tortuosa; recordava o idealismo de seus primeiros anos na militância política.
Na narrativa do texto, até aqueles que pareciam não ter boas lembranças, conseguiam recordar-se de algo que os tocava. O preso lembrou-se com saudades de uma vez, quando ainda era jovem e havia tirado uma boa nota na escola, sendo elogiado pela professora. O velho músico, sem parentes, abandonado na enfermaria de um hospital qualquer, recordava com alegria de quando era jovem e viajava pelo mundo.
O autor do texto descrevia uma sequência de imagens e situações que diziam respeito especificamente a cada pessoa retratada e que nela despertava lembranças agradáveis, até felizes. A idéia por trás da narrativa era contar uma estória – um filme, no entanto, seria mais indicado para transmitir a beleza das imagens – mostrando que qualquer ser humano guarda em sua memória experiências que, mesmo depois de muitos anos, podem tocar seus sentimentos. Uma narração com forte influência dos escritores russos, como Dostoievski e Tolstoi, que em suas descrições descem ao fundo do coração humano. Com suas lembranças, ao recordarem os momentos felizes, os personagens se alegram novamente, mesmo não tendo mais motivos para isso naquele instante de suas vidas.
As idéias que me vinham à memória sobre o texto que havia lido eram interessantes, até tocantes, e me levaram a pensar um pouco no dilema humano da dor e da alegria – se bem que o contrário da dor é a ausência dela.
Considerei o fato de que se estas situações se repetissem sempre na vida de seus protagonistas, elas perderiam toda a beleza e emoção. Se a mãe, por exemplo, pudesse passar toda a vida vendo seus filhos dormir no berço, sem qualquer tipo de ameaça, longe da dor e da morte, a imagem não teria mais nada de emocionante, tornar-se-ia banal e enfadonha. Se o operário soubesse que sempre poderia sustentar sua família, que não seria afetado por crises econômicas e pelo cansaço da vida, ele também não sentiria nenhuma satisfação com seu esforço – que, aliás, também não seria mais um esforço. O homem, por sua vez, valoriza tanto a primeira namorada, por saber que as seguintes não foram iguais à primeira (pelo menos assim pensa); todos os relacionamentos foram diferentes, mas nenhum tão emocionante quanto o da primeira vez. Se tudo sempre fosse igual, não haveria emoção na lembrança.
Há emoções que além de serem agradavelmente marcantes, são únicas ou raras. Poucas vezes se repetem durante a vida – pelo menos não tão frequentemente quanto as emoções e sensações desagradáveis. Determinada situação é positivamente emocionante porque pode acabar, deixar de existir; seja pela doença, pelo conflito entre as pessoas, pela crise econômica, pela morte, pela mudança das condições de vida. Talvez seja por isso que muitos dizem que a vida no além, nos céus das religiões, deve ser muito monótona. Sempre tão boa que esquecemos a tristeza e passamos a não valorizar a alegria. Será que a felicidade eterna é tediosa? Os budistas, talvez antevendo este tédio na eternidade, eliminaram o ego na vida do além. Não há mais personalidade que se alegra ou se enfada.
Não podemos nos desligar de nossos antepassados na longa cadeia da vida. Apesar de não conseguirmos nos comunicar com outras espécies, sabemos que a existência de todos os animais é uma constante luta pela sobrevivência e pela perpetuação da vida. São poucas as espécies que tem longos períodos de tranqüilidade e bem estar – talvez, uma ou outra tartaruga terrestre, daquelas encontradas por Darwin nas ilhas Galápagos. Ninguém pode afirmar ou desmentir isso, mas acho que os outros seres além dos humanos também devem prezar bastante os momentos de bem estar, caso os tenham na memória. Este impulso também deve ter passado aos humanos – afinal, somos animais como os outros. Valorizamos os bons momentos porque são poucos.
Com certeza é por isto que nossa espécie inventou e tanto gosta de música, a música de Mozart especialmente. Já escrevia Allan Watts, de que o que possibilita a música é a variação da intensidade dos tons e as pausas entre eles. Se não existissem, a música seria uma sequência infindável de sons, incompreensíveis, desagradáveis e monótonos. Assim talvez também a nossa vida, sem os poucos momentos felizes dos quais nos podemos lembrar. Caso não ocorressem, nossa existência seria “uma história contada por um louco, cheia de som e fúria, e sem qualquer sentido", como escreveu Shakespeare.
(imagens: pinturas e tapeçaria medievais)
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