"Aqui posso reinar, exercer livremente o império. E, desde que reinar quis e posso, minha ambição se concretiza ainda que seja no Inferno. Mais vale reinar no Inferno que obedecer no Céu." (Palavras de Lúcifer) John Milton - O paraíso perdido
Nossa atividade econômica está em grande parte baseada em certos princípios científicos e desenvolvimentos tecnológicos que tiveram sua origem no Renascimento. A efervescência social deste período, aliada às Grandes Navegações e uma série de outros eventos culturais e políticos (e.g. a Reforma protestante, o despertar do pensamento científico, o aparecimento dos Estados absolutistas) deram um impulso econômico e técnico à Europa como nunca houvera acontecido antes. O desenvolvimento do comércio, aliado às novas rotas abertas pelos navegadores portugueses e espanhóis – oferecendo acesso a novos mercados fornecedores –, revolucionou a economia européia, criando demanda para novas técnicas no comércio, na agricultura, na navegação e no artesanato industrial. Sobre este período, escreve o historiador Fernand Braudel:
Em suma, bem ou mal, uma certa economia liga entre si os diferentes mercados do mundo, uma economia que não só traz em sua esteira algumas mercadorias excepcionais, mas também os metais preciosos, viajantes privilegiados que já dão a volta ao mundo. Os dobrões espanhóis, cunhados com o metal branco da América, atravessam o Mediterrâneo, atravessam o império turco e a Pérsia, atingem a Índia e a China. A partir de 1572, via Manila, o metal branco americano atravessa também o Pacífico e, em fim de viagem, chega uma vez mais à China, agora por essa nova rota (Braudel, 1987, p.30).
A classe social que representa esta nova fase da história, a burguesia comercial, tem forte influência no desenvolvimento da política, economia e ciências deste período. Sobre a relação desta nova elite com o desenvolvimento científico da época, comenta Escobar:
Na leitura que “espontaneamente” se faz da revolução no pensamento provocado pela Física, se situam, sobretudo os temas colonialistas do poder do “homem sobre os meios”, mas de um poder decididamente do “homem burguês”, que então sentia-se o “homem universal” e contrastava com o homem medieval contemplativo. A Física é aqui compreendida como ciência ativa (física de Galileu, de Descartes, de Hobbes), como um testemunho do homo faber, como a estratégia e a prática desta dominação da natureza (Escobar, 1975, p. 91).
No desenvolvimento do capitalismo, desde sua fase mercantilista entre 1400 e 1700 (BURNS, 1971), passando pelo início da industrialização no final do século XVIII até os dias atuais, sempre houve estreita interação das atividades econômicas com a ciência e tecnologia. No campo das idéias, a ciência desenvolveu teorias explicativas da realidade, que posteriormente seriam aplicadas à prática, através da tecnologia, atendendo demandas econômicas concretas. Exemplo desta relação é o desenvolvimento da balança hidrostática. Em 1586 o filósofo e cientista Galileu Galilei (1564-1642) construiu um mecanismo experimental, destinado ao estudo da força de impulsão exercida pelos líquidos sobre os corpos nele mergulhados. Este invento, conhecido como balança hidrostática, contribuiu para a posterior criação do relógio de pêndulo e desenvolvimento de uma bomba destinada à irrigação (GOMES, s/d). A física de Isaac Newton (1642–1727) é outro exemplo deste processo. Elaborada com base nos princípios da física de Kepler e Galileu e utilizando-se de conhecimentos matemáticos de Euclides, sua Lei da Gravitação Universal transformou-se no fundamento da mecânica clássica. De sua teoria, resultariam entre o século XVIII e XIX a física clássica, a mecânica, a descrição da eletricidade, o magnetismo, a ótica e a termodinâmica (FEULNER, 2010). Formulações teóricas somadas a experiências práticas resultariam em conhecimentos, que posteriormente possibilitariam o aparecimento de vários inventos, como a máquina a vapor. No entanto, segundo Granger (1994) “(...) podemos afirmar que as teorias científicas só tiveram realmente relações estreitas e orgânicas com a técnica a partir da Grande Revolução Industrial européia do século XVIII”.
Ainda com relação à interação das atividades econômicas com a ciência e a tecnologia, é preciso considerar que este processo sempre foi largamente influenciado pela realidade material da sociedade onde se desenvolveu. Comentando a relação da economia com as atividades intelectuais (nas quais se incluem a elaboração de teorias científicas e o desenvolvimento de novas tecnologias), escreve Marx:
(...) na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência (Marx, 1974, p. 135-136).
Como exemplo desta influência da realidade material sobre a vida social, tome-se o uso do vapor para a geração de energia e mecanização de processos industriais. Esta tecnologia foi desenvolvida por James Watt na Inglaterra do final do século XVIII e aplicada inicialmente ao setor de tecelagem e mineração, disseminando-se depois para vários outros usos industriais, a partir do início do século XIX (BURNS, 1971) e (DOBB, 1974). Graças a estas inovações tecnológicas, barateando e aumentando a produção, a Inglaterra atingiu uma posição de hegemonia na produção e venda mundial de vários produtos industrializados. Assim, os industriais ingleses tornaram-se a nova classe dominante da sociedade inglesa, desbancando a antiga elite dos donos de terra. Sobre a relação da economia com a tecnologia, atendendo a interesses de classe, escreve Andrew Feenberg:
Escolhas sociais intervêm na seleção da definição do problema, bem como de sua solução. A tecnologia é socialmente relativa e o resultado das escolhas técnicas é um mundo que sustenta a maneira de vida de um ou outro influente grupo social. Nesses termos as tendências tecnocráticas das sociedades modernas poderiam ser interpretadas como efeito de limitar os grupos que podem interferir no design junto a peritos técnicos e às elites corporativas e políticas a que servem (Feenberg, s/d, p. 8).
A crise ambiental que atravessamos é representada pela crescente exaustão dos recursos naturais, como resultado da atividade econômica, aliada aos avanços tecnológicos da ciência. Todavia, a condução da economia, em seus aspectos práticos, atende aos interesses das “elites corporativas e políticas” (Feenberg); os “proprietários dos meios de produção”, na expressão de Marx. A ciência e a tecnologia se desenvolvem influenciadas pelas demandas práticas e teóricas levantadas pela economia. Assim, condicionada pela agenda de interesses dos grupos dominantes, a atividade científica acaba projetando sobre a natureza esta influência recebida. Sob este ponto de vista, ciência e a tecnologia funcionam como uma metafísica (no sentido aristotélico de uma ciência que fornece o fundamento a todas as outras); uma interpretação ou leitura da natureza feita por grupos sociais que partem de premissas supostamente validadas (através de sua visão de mundo) e têm o poder de impor esta visão aos demais grupos. Heidegger, em A questão da técnica, escreve a respeito desta relação do homem com a ciência e a tecnologia:
O comportamento de “investidor” vindo do homem, de uma forma correspondente, revela-se em primeiro lugar na aparição da ciência moderna, exacta da natureza. O modo de representação próprio desta ciência persegue a natureza considerada como um complexo calculável de forças. A física moderna não é uma física experimental por aplicar à natureza aparelhos que a interroguem, mas inversamente; é porque a física – já como pura teoria – a coloca na situação (stellt), de se mostrar complexo calculável e previsível de forças que a experimentação é (bestellt) encarregada de interrogar a fim de que se saiba se e como a natureza assim intimada (stellt) responde ao apelo (Heidegger apud Macedo 1985, p. 119).
Nesta linha de análise fica evidente que a crise ambiental tem origem nas atividades econômicas, influenciadas pelas idéias e expectativas das classes ou grupos política e economicamente dominantes em todo o mundo. A crise ambiental é, portanto, essencialmente uma crise de visão do mundo, da natureza e do papel do ser humano neste contexto. Para que possamos ultrapassar esta situação crítica, seria necessário no plano das idéias: a) renunciar a uma visão metafísica da natureza, fruto de uma visão elaborada pelos grupos dominantes, que se manifesta também no funcionamento da economia e sua relação com a natureza; e, consequentemente b) reavaliar os paradigmas que devem nortear os objetivos e a condução da economia, visando gradualmente reduzir seu impacto sobre a biosfera e sobre os recursos não renováveis e proporcionar bem estar a um numero maior de pessoas.
Bibliografia
BRAUDEL, Fernand. A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro. Editora Rocco: 1987, 76 p.
BURNS, Edward M. História da civilização ocidental – Vol. 1 e Vol. 2. Porto Alegre. Editora Globo: 1971, 581 p.
DOBB, Maurice. A evolução do capitalismo – 4ª edição. Rio de Janeiro. Zahar Editores: 1974, 482 p.
DUARTE, André. Heidegger e Foucault, críticos da modernidade: humanismo, técnica e biopolítica. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=s0101-31732006000200008&script=sci_arttext>. Acesso em 24/08/10
ESCOBAR, Carlos Henrique. Epistemologia das Ciências Hoje. Rio de Janeiro. Pallas Editora: 1975, 176 p.
FEENBERG, Andrew. Teoria crítica da tecnologia. Disponível em: . Acesso em 3/09/10
FEULNER, Georg. Os grandes físicos que mudaram o mundo. Escala Editora. São Paulo: 2010, 127 p.
GIANOTTI, José Arthur. Karl Marx – Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos in Os Pensadores. São Paulo. Abril Cultural: 1974, 413 p.
GOMES, Morgana. A vida e o pensamento de Galileu Galilei. São Paulo. Editora Minuano: s/d, 98 p.
GRANGER, Gilles-Gaston. A ciência e as ciências. São Paulo. Editora UNESP: 1994, 122 p.
(Imagens: arte indígena brasileira)
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