A fama ou a vida?
O que mais se deseja?
A vida ou a riqueza?
O que vale mais?
Os fortes apelos geram grandes sacrifícios.
O acúmulo de bens é fonte de grandes perdas.
Aquele que está contente, não se envergonha.
Aquele que sabe parar, está livre do perigo e vive longamente.
Lao Tsé - Tao Té Ching
A obra de Martin Heidegger desenvolve-se em um contexto de reformulação da filosofia, especificamente da metafísica. Esta já vinha sofrendo críticas com o positivismo (na realidade desde a crítica kantiana), a filosofia de Nietzsche e a fenomenologia, entre outras correntes de pensamento. A própria evolução das ciências – principalmente da física teórica – também exerceu uma influência sobre o desenvolvimento da filosofia entre o final do século XIX e início do século XX. Freud, na psicologia, Max Planck e Einstein, na física, reformularam a visão de nós mesmos e do mundo. É nesse contexto que se desenvolve a formação acadêmica e a práxis filosófica de Heidegger. Bastante influenciado pela religião – especialmente o catolicismo – no início de sua carreira universitária, escreve sua tese de habilitação ao ensino universitário sobre Duns Scotus, em 1916 (“A doutrina das categorias e do significado em Duns Scotus”).
O grande problema na filosofia de Heidegger é a questão do ser. Escreve Heidegger no primeiro capítulo de sua obra máxima “Ser e tempo”: “E não é só isso: no solo da arrancada grega para interpretar o ser formou-se um dogma que não apenas declara supérflua a questão sobre o sentido do ser, como lhe sanciona a falta. Pois se diz: “ser” é o conceito mais universal e mais vazio. Como tal, resiste a toda a tentativa de definição”. (Heidegger, 2009, p. 37).
O texto “Que é metafísica” é uma aula inaugural dada na Universidade de Friburgo em 1929, onde Heidegger assumiria uma cátedra de professor regular. O público desta palestra era constituído pelo corpo docente e discente daquela universidade. Por esta época, Heidegger já havia lançado “Ser e tempo” (1927) obra que havia provocado uma série de mal entendidos, entre grande parte do público leitor de filosofia. Segundo muitos, “Heidegger era promotor do niilismo, da filosofia do sentimento, da angústia e da covardia, do irracionalismo que combatia a validez da lógica" (conforme Ernildo Stein no Prefácio a “Que é metafísica”, 1989, p. 28).
Consciente de que seu público na palestra é formado em grande parte por cientistas e estudantes de ciências (mais entusiastas ainda que seus mestres!), e que este tipo de crítica à sua obra está pairando no ar, Heidegger decide fazer uma analítica da existência científica, e a partir dela responder à pergunta sobre o que é metafísica. O filósofo, no entanto, não tenta definir o que é metafísica.
A sua preleção “Que é metafísica”, Heidegger já inicia afirmando à sua audiência que não falará sobre metafísica. Iniciando sua apresentação, tenta definir o universo de atuação da atividade científica. Heidegger escreve: “Se quisermos apoderar-nos expressamente da existência científica, assim esclarecida, então devemos dizer:
Aquilo para onde se dirige a referência ao mundo é o próprio ente – e nada mais.
Aquilo de onde todo o comportamento recebe sua orientação é o próprio ente – e além dele nada.
Aquilo com que a discussão investigadora acontece na irrupção é o próprio ente – e além dele nada.” (ibidem, p. 37). Conclui sua argumentação dizendo que a ciência nada quer saber do nada, que rejeita o nada, o qual para ela não existe.
Mais à frente, Heidegger afirma que “o nada é a negação da totalidade do ente, o absolutamente não-ente” (Ibidem, p. 37). Continuando sua preleção, o filósofo diz que é através do tédio que se manifesta o ente, e da angústia é que se apresenta o nada. A argumentação seguinte é que somente na angústia do nada é que surge a compreensão do fato de que “o ente é” e não “nada”. O ser-aí do homem encontra-se assim “suspenso dentro do nada”. Esta questão, a pergunta pelo nada, é tão importante para Heidegger, porque compreende a totalidade da metafísica. Além disso, “a questão do nada põe a nós mesmos – que perguntamos – em questão. Ela é uma questão metafísica” (Ibidem, p. 44). Ao final de sua palestra, Heidegger praticamente sintetiza o programa de sua filosofia, nas seguintes palavras: “A filosofia somente se põe em movimento por um peculiar salto da própria existência nas suas possibilidades fundamentais do ser-aí, em sua totalidade. Para este salto são decisivos: primeiro, o abandonar-se para dentro do nada, quer dizer, o libertar-se dos ídolos que cada qual possui e para onde costuma refugiar-se subrepticiamente; e por último, permitir que se desenvolva este estar suspenso para que constantemente retorne à questão fundamental da metafísica que domina o próprio nada: por que existe afinal ente e não antes Nada?” (Ibidem p. 44).
Para discorrer sobre as objeções feitas à obra de Heidegger e às respostas dadas por este, era necessária uma curta introdução ao tema da obra “Que é metafísica”, como dissemos no tópico anterior. O posfácio à “Que é metafísica” foi escrito pelo próprio filósofo em 1943, como tentativa de esclarecer como é preciso ler e compreender o texto. Portanto, o posfácio, pelo fato de ter sido escrito quatorze anos depois da preleção original, e tentar explicar aos leitores o que o autor pretendia dizer com o texto original, mostra que a obra “Que é metafísica” tinha uma importância excepcional para o próprio Heidegger. Tanto assim, que ele mesmo pede que o leitor o considere (o posfácio) um “prefácio mais originário”.
Heidegger inicia o posfácio falando das interpretações que o pensar sobre a metafísica suscita. O filósofo está ciente de que seu texto (a preleção inicial, “Que é metafísica”) levantou muitas dificuldades de compreensão e muitas questões, mas enfatiza a necessidade de se perguntar. As dificuldades do texto, escreve Heidegger, são de duas espécies: “Umas surgem dos enigmas que se ocultam no âmbito do que aqui é pensado. As outras se originam da incapacidade e também, muitas vezes, da má vontade para pensar.” (Ibidem, p. 48). O autor resume as “objeções e falsas opiniões” sobre a obra em questão, em três pontos principais:
“1 – a preleção transforma o “nada” em único objeto da metafísica. Entretanto, porque o nada é absolutamente nadificante, leva este pensamento à opinião de que tudo é nada, de tal maneira que não vale a pena, quer viver, quer morrer. Uma “filosofia do nada” é um acabado niilismo” (Ibidem, p.48). Com referência a este ponto, responde Heidegger que se trata de uma opinião apressada, superficial, que transforma o conceito de nada em absoluto nadificador, igualando-o ao que não tem substância. Contrariamente a esta posição, devemos tentar experimentar no nada a “amplidão daquilo que garante a todo o ente (a possibilidade de) de ser”.
“2 – a preleção eleva a disposição de humor isolada e ainda por cima deprimente, a angústia, ao privilégio de única disposição de humor fundamental. Entretanto, porque a angústia é o estado de ânimo do “medroso” e covarde, renega este pensamento a confiante atitude de coragem. Uma filosofia da angústia paralisa a vontade para ação;” (Ibidem, p.48). Em relação a esta crítica, Heidegger argumenta que neste caso a angústia não é um sentimento de medo ou temor. Ao contrário, trata-se de uma disposição de realizar o supremo apelo do homem; descobrir que o ente é. Com isto, nesta disposição para a angústia, o homem atinge a misteriosa possibilidade da experiência do ser.
“3 – a preleção toma posição contra a “lógica”. Entretanto, porque o entendimento contém os padrões de todo o cálculo e ordem, este pensamento transfere o juízo sobre a verdade para a aleatória disposição de humor. Uma “filosofia do puro sentimento” põe em perigo o pensamento “exato” e a segurança do agir.” (Ibidem, p.48). Com relação a esta crítica, Heidegger afirma que seu pensamento não se limita a apenas a lógica matemática, baseada apenas em raciocínios de somar dos cálculos. Não se trata apenas de pensamentos de cálculo “com o ente sobre o ente”, mas do pensamento que se “dissipa no ser pela verdade do ser” (Ibidem, p.50).
Ao final do posfácio, Heidegger adiciona ao seu texto um ponto de vista que ainda não havia aparecido do texto original do “Que é metafísica”, associando a visão do filósofo à visão do poeta. “O pensador diz o ser. O poeta nomeia o sagrado.” Esta afirmação – caso constasse da apresentação feita na universidade de Freiburgo – provavelmente teria trazido mais críticas ainda, dizendo que além de ser niilista, angustiante e ilógico, a análise de Heidegger seria também por demais literária, longe do rigorismo filosófico convencional.
A obra “Que é metafísica”, embora curta, contém o cerne do pensamento de Heidegger, pelo menos no que se refere ao problema do ser e da função da metafísica. O próprio autor deve ter considerado a preleção um documento básico em sua obra, já que vários anos depois ainda se preocupou em escrever um posfácio ao trabalho. O estudo deste curto mas difícil texto pode ser considerado a porta de entrada para o restante da obra de Heidegger.
Bibliografia
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo. Martins Fontes: 2007, 1.210 p.
FLEISCHER, Margot. Org. Filósofos do século XX. São Leopoldo. Editora Unisinos: 2006, 334 p.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis. Editora Vozes: 2009, 598 p.
HEIDEGGER, Martin. Que é metafísica. Col. Os pensadores. São Paulo. Abril Cultural. 1989, 241 p.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario, História da Filosofia – Vol III. São Paulo. Paulus Editora: 1990, 1.113 p.
(imagens: Ernst Ludwig Kirchner)
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