As diferentes narrativas: mitologia, religião e filosofia

quinta-feira, 23 de junho de 2011
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O filósofo alemão Ernst Cassirer defendia a tese de que todo conhecimento – mítico, religioso e científico – é um conhecimento simbólico. Explicando seu pensamento, o filósofo apresenta uma tripla graduação na relação entre signo e significado:
a) A relação de expressividade, típica do mito. Neste caso, há uma identidade entre o signo e o significado; os símbolos tornam-se atributos da própria coisa que designam, como a cruz representa o cristianismo, por exemplo.
b) A relação de representação, caracterizada pela linguagem. Aqui o nome é uma convenção e serve para representar a coisa, como um substantivo. É a maneira mais comum de como nos utilizamos das palavras que representam um ente.
c) A relação de significado, típica da ciência. Há uma independência entre signo e significado. Exemplo disso é uma função matemática (signo), que representa algo diferente do deslocamento do planeta (significado).
Cassirer afirma que o mito não se reconhece a si mesmo como imagem ou metáfora, a sua imagem é a própria realidade. Da mesma forma, o pensamento mítico não deve ser compreendido como mera ilusão ou patologia, mas sim como forma de objetivação da realidade mais primária e de caráter específico. Algumas características do pensamento mítico são segundo Cassirer:
- A produção mítica não é uma forma de ficção inconsciente, tratando-se de uma produção espontânea, mas sem consciência de sua autoria.
- O pensamento mítico não diferencia nem o signo do significado, nem a imagem da coisa. A palavra então não é um simples símbolo, mas representa efetivamente a coisa, como no caso do nome de uma pessoa.
Na análise de Cassirer, a religião e o mito têm origens comuns, mas a religião vai se distanciando gradualmente do mito. Todavia, não existe uma fronteira nítida entre o mito e a religião. A diferença mais evidente para os estudiosos é que na religião o ser humano tem mais individualidade do que no mito. O mito explica suas crenças de forma emocional, enquanto a religião tenta racionalizá-los, explicá-los. Exemplo de comportamento em relação aos mitos é o dos antigos gregos do período clássico. Para estes homens a relação com os deuses era bastante distante, pois não havia o conceito da imortalidade individual que só apareceria mais tarde, quando houvessem cultos mantidos por sacerdotes associados aos deveres religiosos (como quando surgiram os cultos órficos, cuja ideologia muito influenciou o pensamento de Platão).
“O homem grego do período clássico não é strictu senso a “criatura” de uma divindade (idéia partilhada por muitas religiões arcaicas e pelos três monoteísmos) Por conseguinte, ele não tem a ousadia de esperança que as suas preces possam estabelecer certa intimidade com os deuses. Por outro lado, sabe que a sua vida já está decidida pelo destino, a moira ou a aísa, a sorte ou o quinhão que lhe foi atribuído – isto é, o tempo concedido até sua morte.” (Eliade, 1978).
A narrativa filosófica, comparada à mítica ou religiosa, vale-se de argumentos racionais, não está mais sujeita às prescrições dos deuses ou de seus sacerdotes. Apesar de se ocuparem de temas parecidos – “a posição do homem no universo” –, segundo o historiador Werner Jaeger, a filosofia aspira a um conhecimento sempre renovado e inquiridor, diferente da religião e da mitologia, que se contentam com o ensinamento; estabelecido e aplicado sem discussões. Com relação a sua justificação, o mito e a religião não a precisam. A filosofia, por outro lado, vai constantemente elaborar novas justificativas para a sua existência ou utilidade.
As narrativas a respeito da origem do mundo
As narrativas míticas a respeito da criação do mundo são as mais variadas possíveis, dependendo da cultura em que foram desenvolvidas. Os mitos eram narrativas onde sociedades arcaicas descreviam para si mesmas o nascimento do mundo, da sociedade, de determinada planta ou do homem. Os egípcios, talvez a mais religiosa sociedade da Antiguidade, descreviam o nascimento do universo de diversas maneiras. “Os temas alinham-se entre os mais arcaicos: emergência de um outeiro, de um lótus ou de um ovo sobre as Águas Primordiais. Quanto aos deuses criadores, cada cidade importante colocava o seu em primeiro plano.” (Eliade, 1978). Os antigos gregos tinham os mythói, relatos que formavam o quadro mental que o povo tinha dos deuses.
A religião já tem um outro tipo de posicionamento em relação à narrativa sobre a criação do mundo. Geralmente, aproveita-se do relato de um mito, como fizeram os escribas judeus com um mito popular da Criação que remontava aos caldeus. Transformaram este mito em parte constituinte de uma religião específica, praticada por uma comunidade particular. Em função de sua incorporação a uma religião, o mito da Criação passou a assumir um significado específico para o fiel, pois o que antes era mito, agora passou a fazer parte de um plano de um Deus. Esta a diferença básica da visão da criação do mundo entre religiões politeístas e monoteístas.
A narrativa da filosofia em relação à criação do mundo era influenciada pelo mito e pela religião. Os filósofos pré-socráticos se utilizarão da linguagem da religião e do mito, talvez por desconhecerem outra forma de linguagem mais específica, mais tarde desenvolvida pela ciência. Anaximandro de Mileto se expressará assim sobre o início do mundo: “princípio dos seres... ele disse (que era) o ilimitado... Pois donde a geração é para os seres, é para onde também a corrupção se gera segundo o necessário; pois concedem justiça e deferência uns aos outros pela injustiça, segundo a ordenação do tempo.” (Simplício, Física, in Os Pensadores, 1996).
A grande diferença no relato da filosofia sobre a criação do mundo não estava no vocabulário, mas na maneira como utilizá-lo. Os filósofos pré-socráticos já não tinham uma visão mítica do universo. Queriam chegar a uma realidade última, subjacente a todo o processo. Este novo posicionamento “racional” em relação ao universo é bem exemplificado por Nietzsche, referindo-se a Tales de Mileto
“como matemático e astrônomo, ele se havia detido em tudo o que é místico ou alegórico. E não conseguiu perder as ilusões até chegar a essa abstração pura de que “tudo é um”, onde ele se deteve numa formulação de ordem física, ele se tornou, no entanto, uma figura rara entre os gregos de seu tempo. Talvez os órficos, tão singulares, possuíram em grau mais elevado ainda a capacidade de captar abstrações e de pensar de maneira não figurada; mas só chegaram a exprimi-lo sob a forma de alegoria.” (Nietzsche, 2008).
Bibliografia
DE SOUZA, José Cavalcante, Os Pré-Socráticos, Editora Nova Cultural: São Paulo, 1996, 320 pgs.
ELIADE, Mircea, O Sagrado e o Profano – a essência das religiões, Edição Livros do Brasil: Lisboa, s/d, 234 pgs.
ELIADE, Mircea, História das Crenças e das Idéias Religiosas - Volume I, Zahar Editores: Rio de Janeiro, 284 pgs.
FERNANDES Vladimir, Mito e Religião na Filosofia de Ernst Cassirer, disponível em
< http://www.hottops.com/notand11/Vladimir.htm> acesso em 22/05/08
NIETZSCHE, Friedrich, A filosofia na época trágica dos gregos, Editora Escala: São Paulo, 2008, 139 pgs.
VERNANT, Jean Pierre, Mito e Pensamento entre os Gregos, Editora Paz e Terra, 2002, 504 pgs.
VERNANT, Jean Pierre, Mito e Religião n Grécia Antiga, Editora Martins Fontes: São Paulo, 2006, 88 pgs.
(imagens: Mark Rothko)

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