"No fim das contas, tudo o que havíamos chamado de 'matéria', 'vida', assim como 'natureza', 'deus', 'história', 'homem', precipita-se na mesma queda. A 'morte de Deus' é exatamente a morte de todas as substâncias-sujeitos. Assim como a primeira, essas mortes são muito extensas, intermináveis para a nossa percepção e até mesmo para nossa imaginação. E, além disso, elas trazem em si potencialidades outrora insuspeitas sobre a morte prática e concreta dos seres vivos, dos homens - e, por que não? - do mundo." - Jean Luc Nancy - Arquivida - Do senciente e do sentido
Hoje nossa cultura dá muito valor ao bem-estar, à alegria e,
cada vez mais frequentemente, à felicidade (ou aquilo que as pessoas consideram
como tal). Atendidas as necessidades básicas de alimentação e proteção para a
maior parte da população – pelo menos nas nações desenvolvidas e em
desenvolvimento, sob influência da cultura européia – a idéia da simples
sobrevivência passa a dar lugar a viver bem; viver com qualidade. E isto, além
de incluir uma barriga cheia e um teto sobre a cabeça, também abrange segurança
quanto ao futuro e saúde para desfrutá-lo. A este estado comumente se chama de
bem estar, com momentos de alegria e, mais raramente, felicidade.
Nossa sociedade afluente tem origem no desenvolvimento de um
tipo específico de capitalismo baseado no consumo, que surgiu nos Estados
Unidos no início do século XX. O país à época já era o mais fortemente
industrializado e disponha de um grande numero de trabalhadores com recursos excedentes
para o consumo. Assim, foram inventadas máquinas e engenhocas, que se tornaram
imprescindíveis no dia a dia das pessoas e que devido ao seu relativo baixo
custo, poderiam ser adquiridas por grande parte da população: geladeiras,
fogões, torradeiras, máquinas de lavar, automóveis. Nos anos 1930, com a
popularização do uso da eletricidade (também no Brasil), apareceram os
toca-discos, rádios, barbeadores elétricos e vários outros itens de utilidades
domésticas. Todos estes implementos são feitos para aumentar a sensação de
conforto e bem-estar, e sua compra traz alegria para muitos – mesmo que as
prestações sejam altas ou que a assistência técnica dos produtos ruim.
Por toda a história também houve pessoas que defendiam uma
vida mais simples. Desde os antigos filósofos cínicos e estóicos da Grécia e de
Roma, passando pelas ordens religiosas mendicantes da Idade Média, até chegar
aos intelectuais e ativistas modernos. Figuras como o poeta inglês William
Blake (1757-1827), o escritor e filósofo americano Henry David Thoureau
(1817-1862) e o escritor alemão Hermann Hesse (1877-1962) transmitiam em suas
obras uma oposição ao industrialismo e contra a ilusória busca da felicidade
baseada na obtenção de bens de consumo. Influenciado por estes e outros
pensadores críticos, nasceu nos Estados Unidos nos anos 1960 o movimento “hippie”
(palavra derivada de “hip”, que em inglês indica pessoa bem informada), que em
poucos anos se espalhou por todo o mundo. Os hippies defendiam uma vida
simples, livre do excessivo consumismo da sociedade industrial e valorizavam a natureza,
em seus diversos aspectos. Pensadores que influenciaram o ideário hippie foram
filósofos como Alan Watts (1915-1973) e Herbert Marcuse (1898-1979), além da
filosofia indiana, o pensamento anarquista e o movimento da contracultura. Muito
daquilo que os ambientalistas passaram a defender no final dos anos 1960 e
início de 1970 tinha suas origens no pensamento hippie. Alguns fundadores de
importantes ONGs, como o Greenpeace, são oriundos de grupos da contracultura
americana e inglesa.
Em um ponto todos estes movimentos e filosofias estão de
acordo: a felicidade, ou pelo menos a alegria, estava muito mais em uma volta à
natureza; uma vida mais simples. Não no consumo, que muitas vezes não chega nem
a nos trazer conforto e bem estar, servindo apenas como passatempo dispendioso,
para afugentar o tédio.
(Imagens: fotografias de Ricardo E. Rose)
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