"O trabalho afasta três grandes males de nós: o tédio, o vício e a necessidade." - Voltaire - Cândido
Há uma grande diferença entre o modelo
político aristotélico e o modelo jusnaturalista ou hobbesiano. A diferença
entre ambos os modelos políticos é baseada em divergentes maneiras de ver o
homem e sua relação com seus semelhantes, intermediada pela cultura e pelo Estado.
O modelo político aristotélico
Aristóteles considera que o homem é, a
exemplo de outros animais, levado a viver em comunidade por sua própria
natureza. Escreve no primeiro capítulo de A
Política: “Sabemos que toda a cidade
é uma espécie de associação, e que toda a associação se forma almejando um bem,
pois o homem trabalha somente pelo que ele considera um bem.” (Aristóteles:
2007, p.13). A vida em sociedade, “almejando um bem”, é característica do homem;
aqueles que não vivem em uma cidade, que não mantêm relações sociais com seus
semelhantes, estão acima ou abaixo dos humanos (ou seja, dos gregos da época).
Ensina o filósofo:
“Assim
é evidente que a cidade faz parte das coisas da natureza e que o homem é
naturalmente um animal político destinado a viver em sociedade. Aquele
que por instinto – e não porque qualquer circunstância o inibe – deixa de fazer
parte de uma cidade, é um ser desprezível ou superior ao homem.” (Ibidem p. 16)
Definido a propensão natural do homem
a viver em sociedade, o Estagirita passa a estabelecer os diversos tipos de
agrupamentos humanos, começando pela família, que considera a base do Estado. Escreve
o filósofo:
“Assim,
naturalmente, a primeira sociedade constituída para prover as necessidades
cotidianas é a família, formada por aqueles que Carondas chama de “parceiros de
pão” e que Epimêmides de Creta denomina “parceiros de comer” (ibidem, p.14).
O ajuntamento de várias famílias forma
o burgo, uma sociedade humana maior, e que já possui um governo – geralmente uma
monarquia, segundo Aristóteles.
Neste processo de formação do Estado
Aristóteles também já identifica uma divisão entre governantes e dos governados
“[...] por obra da natureza e para
conservação das espécies, um ser que ordena e outro que obedece.” (ibidem, p.14).
Há, segundo o filósofo, aquele que é mais inteligente e possui capacidade de
previsão, naturalmente talhado para assumir uma posição de chefia. Por outro
lado, existem aqueles (a grande maioria) que tem apenas a força física e a
capacidade de executar e de servir, consequentemente, os governados.
Todo este processo tem por fim a
sobrevivência da sociedade e dos indivíduos, visando o que Aristóteles chama de
“uma vida feliz”. Escreve o pensador:
“Esta é a razão por que toda sociedade se
integra na natureza, uma vez que a
própria natureza foi a formadora das primeiras sociedades, e a natureza é o
verdadeiro fim de todas as coisas.” (ibidem p.15 – negrito nosso).
O centro da reflexão de Aristóteles
não é, todavia, o indivíduo, mas sim a sociedade ou o Estado. Recorremos mais
uma vez ao texto do pensador: “Na ordem
da natureza, o Estado se coloca antes
da família e de cada indivíduo, pois o todo deve ser colocado,
obrigatoriamente, antes da parte.” (Ibidem, p.16). E mais a frente
completa: “Evidentemente o Estado está na
ordem da natureza antes do indivíduo, pois cada indivíduo isolado não se basta
em si mesmo, assim também se dará com as partes em relação ao todo” (Ibidem, p.
16). Isto significa que somente sob a organização do Estado – independente
de força bruta, interesses passageiros ou ordenamentos dos deuses – é que o
homem pode realizar a justiça.
Ao que parece Aristóteles forma uma
categoria de “homem” que está acima do homem concreto de “carne, ossos e
sangue”, como diria o filósofo espanhol Miguel de Unamuno. A somatória das
ações dos homens concretos forma o Estado, cuja função é promover a “vida
feliz” deste ser humano abstrato.
Ao final do primeiro capítulo de A Política Aristóteles deixa claro o
quanto a vida em sociedade é a situação ideal para o homem. Na realidade, o
estado natural da espécie humana é a associação. Fora da sociedade, o homem
deixa de ser humano para se tornar uma fera. Conforme Aristóteles: “Assim, a natureza compele todos os homens a
se associarem. Aquele que primeiro estabeleceu isso fez o maior bem, pois o
homem perfeito é o mais excelente de todos os animais, é também o pior quando
vive isolado, sem leis.” (Ibidem, p.16). Aristóteles conclui que o homem só
pode praticar a prudência e a justiça se vive em sociedade. Fora da
associação com seus semelhantes ele vive sem leis “sendo o mais cruel e o mais feroz de todos os seres vivos, e não sabe,
por vergonha, além de amar e comer.” (Ibidem p. 17).
Aristóteles sabia que a paidéia, a cultura, em seu mais alto
grau, só era possível na pólis, na
cidade. Toda a cultura desenvolvida pelos gregos, aliás, é bastante relacionada
com a atividade política nas cidades gregas. Escreve Werner Jaeger: “Todo o futuro humanismo deve estar
essencialmente orientado para o fato fundamental de toda a educação grega, a
saber: que a humanidade, o “ser do Homem” se encontrava essencialmente
vinculado às características do Homem como ser político.” (Jaeger: 2003, p.
17).
Este o principal ponto do pensamento
político de Aristóteles: o homem é essencialmente político porque só em
associação é que pode realizar seu ideal de virtude, arethé, que é segundo Sócrates “fazer aquilo a que cada um se
destina”. Uma das componentes da arethé é a paidéia.
Esta a razão porque todos aqueles que estavam fora da sociedade – segundo
Aristóteles – ou eram comparáveis aos animais selvagens ou aos deuses.
O modelo político hobbesiano ou
jusnaturalista
Os pressupostos dos quais Thomas
Hobbes parte para analisar o homem já são bastante diferentes daqueles
utilizados por Aristóteles. Neste caso, não podemos esquecer que o pensador
grego vivia em um ambiente cultural onde não havia um pensamento
filosófico-religioso hegemônico, como a cultura cristã.
Já Hobbes viveu quase dois mil anos
depois, em um ambiente cultural impregnado pela filosofia e pela religião
cristã, apesar do século XVII ser um período no qual se apresentaram as
primeiras críticas estruturadas ao cristianismo, seja em bases filosóficas ou
em bases científicas. E é exatamente destes conceitos que parte Hobbes: para
ele o homem é um corpo sujeito às forças mecânicas de ação e reação, que se
exteriorizam no âmbito humano em apetites como atração e repulsão. Estas forças
geram no homem um desejo cada vez maior de poder e de domínio. Escreve o
filósofo: “Assim, considero como
principal inclinação de toda a humanidade um perpétuo e incessante afã de poder
que cessa apenas com a morte”. (Hobbes: 2011, p. 78).
Neste contexto, é completamente sobre
outros pressupostos que Hobbes constrói sua visão do homem e do Estado. Em seu
estado natural, antes da formação de um Estado, o homem, segundo Hobbes, está
em constante conflito com seus semelhantes. Escreve Hobbes no Leviatã:
“Assim,
existem na natureza humana três causas principais de disputa: competição,
desconfiança e glória. A competição impulsiona os homens a se atacarem para
lograr algum benefício, a desconfiança garante-lhes a segurança e a glória, a
reputação. A primeira causa leva os homens a utilizarem a violência para se
apossar do pessoal, da esposa, dos filhos e do gado de outros homens; a segunda
os leva a usar a violência para defender esses bens; a terceira os faz recorrer
à força por motivos insignificantes, como uma palavra, um sorriso, um escárnio,
uma opinião diferente da sua ou qualquer outro sinal de subestima direta de sua
pessoa, ou que se reflita em seus amigos, sua nação, sua profissão ou o nome de
sua família.” (Ibidem, p. 95).
Assim, é exatamente em seu estado
natural que o homem se torna mais perigoso ao seu semelhante – o homem é o lobo
do homem, segundo Hobbes. É neste aspecto que o pensamento de Hobbes se
aproxima do de Aristóteles. Ambos são categóricos ao dizer – por motivos
bastante parecidos – que o homem natural, fora da organização social, vive da agressividade
e a da rapina de seu semelhante. Hobbes diz que a condição natural do homem é
um obstáculo para que ele atinja os objetivos que mais almeja: a segurança e a
prosperidade. Escreve sobre este ponto o filósofo Quentin Skinner:
“Para
Hobbes, ao contrário, é a nossa liberdade natural que constitui o principal e
imediato obstáculo à nossa obtenção de qualquer uma das coisas que queremos da
vida. Ele não apenas insiste que nossa liberdade é “de pouco uso e benefício”
para nós (Hobbes, 1969ª, 14, 10, p.72); prossegue argumentando, na mais forte
oposição possível em relação à ortodoxia prevalente, que quem quer que “deseje viver
em tal um estado tal, como sendo o estado de liberdade e de direito de todos
com todos, se contradiz a si mesmo” (Hobbes, 1969ª, 14.12, p.73)”. (Skinner:
2008, p. 55).
Segundo Hobbes, o Estado não é um mal
necessário, mas efetivamente a única possibilidade de os homens poderem viver
de uma maneira relativamente aceitável sobre a Terra. No estado natural,
utilizando seu direito natural a tudo que quiser, os homens necessariamente
viveriam em constante guerra entre si. Decididos a abrirem mão de parte de seus
direitos naturais em benefício de outras vantagens, os homens fundam o Estado
para garantir-lhes a paz e assim a possibilidade de alcançar os seus objetivos
– que, no entanto, são muito mais concretos do que a “virtude” almejada para os
homens por Aristóteles.
Como conseqüência, Hobbes afirma que
ao restringirmos nossa liberdade natural, estamos nos submetendo a um poder
soberano, formado por um indivíduo (monarquia), um grupo (aristocracia) ou todo
um povo (democracia). Vários autores concordam que Hobbes não é necessariamente
defensor de uma monarquia absolutista, mas de um estado, seja de que tipo for,
com força para manter a coesão social.
Conclusão
Apesar do pensamento de Aristóteles e
de Hobbes coincidir na visão que ambos têm do homem em seu estado pré-civilizacional,
sendo Hobbes até mais incisivo quanto à agressividade inata do homo sapiens, as semelhanças, no
entanto, param por aí.
Para Hobbes, de modo que possa viver
em comunhão com seus semelhantes, o homem é forçado a abrir mão de seus desejos
ilimitados do estado natural – nisso lembrando alguns aspectos do pensamento de
Freud, em O mal-estar da civilização
– para que todos possam viver com certa segurança e prosperidade. Para gozar da
relativa estabilidade na vida em sociedade, o homem precisa abdicar de parte de
seus instintos naturais, geradores de conflitos e morte.
Para Aristóteles, o homem, assim que se
associa aos seus semelhantes para viver em sociedade, passa a pavimentar seu
caminho para a arethé, a virtude; o
mais nobre objetivo da vida do homem, segundo o pensador grego. Além disso, em
todo este processo civilizacional por que passa o “homem aristotélico”, este
adquirirá também uma formação cultural e política cada vez mais elaborada; a paidéia no sentido grego.
Fica claro que, se por um lado, para
Aristóteles o processo de formação da sociedade e do Estado é algo que agrega
qualidades ao homem natural, para Hobbes é um processo de supressão de impulsos
naturais. É como se na análise do homem feita por Aristóteles, este fosse
necessariamente predestinado a viver em sociedade, sendo este seu estado
natural. Já para Hobbes, o homem vive uma eterna contradição: premido por
impulsos naturais (competição, desconfiança e glória), precisa suprimir estes
apetites para obter alguma paz e prosperidade na vida em sociedade.
Daí a pergunta de Aristóteles ser:
“Como surgiu o Estado?”, ao passo que a de Hobbes é “Por que surgiu o Estado?”
Bibliografia:
Aristóteles. A Política. São Paulo.
Ícone Editora: 2007, 272 p.
Châtelet, François et al. História das idéias políticas.
Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor: 1985, 399 p.
Hobbes, Thomas. Leviatã – 5ª.
Reimpressão. São Paulo. Editora Martin Claret: 2011, 489 p.
Jaeger, Werner. Paidéia. São Paulo.
Martins Fontes: 2003, 1413 p.
Skinner, Quantin. Hobbes e a liberdade
republicana. São Paulo. Editora Unesp: 213 p.
(Imagens: pinturas de José Pancetti)
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