A filosofia é um esporte de combate
(Artigo do filósofo Vladimir Safatle,
publicado no jornal Folha de São Paulo de 3/5/2019)
Quando a filosofia se tornou um
dos alvos prediletos do desmonte do desgoverno Bolsonaro, alguns acharam por
bem adotar a estratégia da sensibilização para o lugar da filosofia na formação
de profissionais eticamente mais orientados e com capacidade de análise
crítica.
Ou
seja, contra a acusação de sua inutilidade seria o caso de expor, ao contrário,
sua pretensa grande utilidade para a reprodução otimizada das estruturas de
nossas formas de vida. Como se este desgoverno atual fosse composto de pessoas
incapazes de compreender a formação necessária e desejada para o estágio atual
de nossas demandas de gerenciamento social.
No
entanto, gostaria de dizer que o sr. Bolsonaro acerta quando elege a filosofia
e a sociologia como seus alvos privilegiados contra a educação nacional.
Pois,
enquanto existir neste país um departamento de filosofia e um departamento de
sociologia, nossos alunos serão ensinados, todos os dias, a desprezar governos
como este que assumiu recentemente.
Desses
departamentos virão levas de jovens que farão de tudo para que este governo
caia.
Não
é necessário filmar aulas ou procurar outras formas de indícios. Mesmo não
falando diretamente das decisões políticas e intervenções atuais, mesmo sem
chamar de gato um gato, nossos alunos estão a todo momento sendo formados para
desprezar e lutar continuamente contra quem governa um país da maneira com este
país está a ser governado.
Quando
eles aprendem a filosofia de John Locke, descobrem como, desde o século 17, a
filosofia política defende o tiranicídio, ou seja, o direito de a população
assassinar os tiranos que procuram submetê-la a golpes de Estado —como o que
conhecemos em 1964 e tão louvado por alguns atualmente.
Quando
eles abrem os livros de Spinoza, descobrem a potência da crítica às construções
teológico-políticas como essas que o evangelo-fascismo de setores que tomaram
de assalto o governo tenta impor à sociedade brasileira.
Quando
ensinamos Rousseau aos nossos alunos, eles entendem melhor o caráter
inegociável da soberania popular, com sua recusa à transferência de poder para
figuras autárquicas que se julgam no direito de decidir até conteúdo de
propaganda de banco.
Quando
eles leem Hegel, compreendem a força de exigências de reconhecimento social das
singularidades, de como a invisibilidade social é a forma suprema da
inexistência.
Quando
é Nietzsche o eixo do debate, fica mais claro o tipo de miséria embutida nos
"valores" morais e religiosos que este desgoverno se vê no direito de
empurrar goela abaixo da sociedade brasileira.
Como
vocês veem, não foi necessário nem sequer falar sobre Marx, Foucault, a
desconstrução, a Escola de Frankfurt e tantos outros que causam pânico no
Planalto atualmente.
Como
vocês veem, não é necessário falar de forma explícita sobre a política atual
para que todas as consequências sejam imediatamente compreendidas pela
inteligência de nossos alunos.
Ou
seja, a história da filosofia é um grande combate contra aquilo que tentam
fazer com a sociedade brasileira. A única maneira de parar esse combate seria,
exatamente, eliminando-nos, como este governo sonha fazer.
No
entanto, a universidade brasileira é composta de gerações e gerações de debates
e ideias que não são apagadas ao sabor de canetadas e cortes ministeriais.
Enquanto
houver um jovem com livros de Spinoza, Rousseau, Hegel, Adorno, Nietzsche,
Deleuze, Lucrécio, Platão (se quiserem saber de onde veio o comunismo, leiam
"A República") esta batalha já está ganha.
Não
será a gritaria de um ministro da Educação piromaníaco e irrelevante que fará
alguma diferença.
(Vladimir
Safatle, professor de filosofia na USP e autor de diversos ensaios)
(Imagem: coruja de Minerva, símbolo da Filosofia)
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