Não
se discute a importância dos livros. Todavia sempre houveram sociedades, em
todos os períodos históricos, nas quais os livros, ou certos livros, foram execrados.
No período da Inquisição, entre os séculos XIV e XVIII, as obras escritas tinham
que obter o nihil obstat quominus
imprimatur, o “nada obsta para que seja impressa”, para poderem ser
impressas e distribuídas. Cientistas como Copérnico, escritores como Rabelais e
filósofos com Espinoza protelaram a publicação de suas obras para o final da vida,
quando já sabiam que a Igreja pouco poderia fazer para puni-los. Outra opção
era organizar edições anônimas, com local de impressão inverídico. A apreensão de
uma publicação que fosse contra os ensinamentos e dogmas da Igreja podia custar
meses de tortura, anos de encarceramento ou, no pior dos casos, a queima do
autor em um ato público religioso, os Autos de fé.
Mas
tal aversão contra a circulação de ideias não foi exclusividade do período que se
estende da Baixa Idade Média até a Revolução francesa. O século XIX e,
principalmente, o século XX estão repletos de períodos durante os quais se
organizaram repressões à publicação e distribuição de livros. Em outras palavras,
uma coibição da circulação de ideias que colocassem em questão, ou diretamente
fossem contrárias à concepção de mundo das forças políticas, religiosas ou
econômicas dominantes de certas sociedades. Os exemplos são inúmeros, e vão
desde a censura de obras rotuladas de “capitalistas ou burguesas” no regime soviético,
aos livros tidos como “impuros” no regime nazista. Durante este último, o
governo hitlerista chegou a organizar em 10 de maio de 1933 uma queima de
milhares de livros, como ato de repúdio ao teor de obras escritas por intelectuais
como Stefan Zweig, Thomas Mann, Sigmund Freud, Erich Kästner, entre outros.
Mais
recentemente, nos anos 1960, 1970 e 1990, ditaduras espalhadas pelo mundo –
produto sucedâneo da Guerra Fria – também promoveram sistemático tolhimento da
cultura de suas sociedades, principalmente através da proibição de publicação e
circulação de livros. Coréia do Sul, China, Cuba, Chile, União Soviética, Argentina, Brasil,
África do Sul; a supressão do pensamento crítico sempre foi a maneira mais
eficiente de manter povos na ignorância, na apatia e na servidão, garantindo
privilégios dos dominadores.
Sempre
gostei de livros. Meus pais nunca foram ricos, mas em nossa casa tínhamos uma biblioteca
de razoável tamanho. Além das obras de Monteiro Lobato, Francisco Marins,
Francisco de Barros Júnior e uma coleção da editora Melhoramentos sobre as
regiões geográficas brasileiras, gostava de ler uma coletânea, da qual não me
lembro o nome, em vários volumes, sobre história e pré-história. Mais tarde, já
na adolescência, passei para os clássicos mundiais e comecei a me aproximar da
filosofia.
Livros,
livros. Durante o período de serviço militar, sempre guardava alguns livros no
armário para ler nas longas e entediantes horas de folga, quando não estava de
serviço. Depois, frequentando o cursinho pré-vestibular, ao invés de estudar as
matérias do exame, passava as tardes lendo tudo que podia. A mesada era toda
gasta em livros e, às vezes, em discos.
Já
trabalhando e ganhando pouco, deixava de gastar dinheiro com o almoço, para
comprar livros. No final dos anos 1970, quase diariamente durante os intervalos
de almoço, passava na livraria Siciliano da rua Antônio de Barros, no Tatuapé,
procurando pechinchas e lançamentos, negociando com o vendedor.
Procurei
transmitir esta paixão pelos livros também aos meus filhos. À época, as
condições econômicas felizmente me permitiam comprar grandes quantidades de livros,
frequentando livrarias e os sebos no Centro Velho de São Paulo, nas manhãs de
sábado. Acabei formando uma biblioteca de tamanho razoável, da qual tive que me
desfazer em grande parte anos depois.
Os
livros são para mim quase um objeto mágico, um oráculo. Neles procurei e
encontrei respostas para algumas das minhas perguntas, tomando contato com as
ideias de pessoas de todas as épocas e culturas. Mas, ao longo da vida, a
leitura de tantos romances, ensaios, tratados, poemas, peças de teatro, relatos,
fez com que muitas respostas perdessem a importância e os questionamentos
aumentassem.
Apesar
de sua importância, o livro ainda continua sendo privilégio de apenas uma parte
reduzida da população. A crise econômica que persiste no Brasil e que governos
seguidos parecem não conseguir debelar, colocou 104 milhões de pessoas, mais de
metade da população do país, fora do mercado consumidor. Com uma renda mensal
por pessoa de R$ 413 por mês, segundo dados oficiais, é impossível consumir
mais do que o essencial para sobreviver – aquisição de livros é impossível.
Acrescente-se a isso o fato de que o número de bibliotecas no Brasil é insuficiente para atender a
população. Dos 5.570 municípios brasileiros, segundos dados oficiais, apenas
112 não possuem biblioteca. Estes números, à primeira vista, parecem aceitáveis.
Esquecemos, no entanto, que estes centros de cultura, estão mal
distribuídos e são insuficientes para atender a população do país. Segundo informações
do jornal Gazeta do Povo, em 2017 o Brasil tinha uma biblioteca para cada
30.000 habitantes. Nos Estados Unidos este índice é de uma biblioteca pública
para cada 19 mil habitantes. Na República Tcheca, país com a melhor
distribuição do mundo, esta proporção é de uma instituição para cada 1.970
cidadãos. Além disso, as bibliotecas públicas são pouco aparelhadas e, acima de tudo, mal distribuídas, principalmente nas médias e grandes cidades. Nas periferias dessas metrópoles, onde se concentram
crianças em idade escolar, jovens e trabalhadores, inexiste praticamente
possibilidade de acesso ao livro.
A
falta de disponibilidade e de incentivo ao uso do livro nas escolas, local onde
o jovem aprende a se familiarizar e apreciar o livro, tem feito com que os
índices de leitura do país sejam bastante baixos. Some-se a isso o fato de que
a maioria das famílias não tem o hábito da leitura, não dispondo de livros em
casa, principalmente por motivos financeiros. Assim, de acordo com pesquisa
realizada pelo IBOPE para o instituto Pró-Livro em 2014, 44% da população
brasileira não tem o hábito de ler e 30% nunca compraram um livro. Dados da
mesma pesquisa indicam que o brasileiro lê em média 2,43 livros por ano. Os
franceses, por exemplo, leem 21 livros por ano: 17 em versão impressa e 4 na
forma digital.
Não
é por outra razão que o mercado editorial brasileiro vem mostrando uma crescente queda.
Entre 2006 e 2017 as edições tiveram uma redução de 21%. Entre 2017 e 2018 o
número de exemplares impressos caiu em 11%, representando 43,3
milhões de exemplares a menos produzidos. Com isso, as tiragens foram menores e
o preço médio do exemplar aumentou cerca de 5% em um ano.
As
livrarias vem sendo prejudicadas em todo este processo. As pequenas, com pouco
espaço e reduzido capital de giro, tiveram que fechar suas portas ao longo dos
últimos dez anos, devido à concorrência das lojas e megastores nos shopping
centers. Nos últimos anos chegou a vez das grandes redes de livrarias, como a
Cultura e a Saraiva, que agora também se encontram em sérias dificuldades financeiras
e fecharam algumas de suas lojas. Dados de 2017 da Confederação Nacional do
Comércio de Bens, Serviço e Turismo mostram que entre 2007 e 2017 21 mil livrarias
e papelarias encerraram suas atividades.
A
esta lista acrescente-se ainda o fato de que o mundo, e especialmente o Brasil,
atravessa uma crise cultural. Movimentos de diversas origens tornaram-se
propagadores de políticas e conceitos anti-intelectuais, desvalorizando e negando
a cultura e a ciência. Coloca-se em dúvida a segurança da vacinação, de fatos
evidentes como a esfericidade da Terra e de teorias científicas estabelecidas como
a teoria da evolução e das mudanças climáticas. Na área cultural volta a
imperar um obscurantismo pré-iluminista e um conservantismo farisaico, que prejudicam o necessário
debate sobre temas atuais da sociedade. O atual governo e grupos que o apoiam
pouco valorizam o conhecimento e a pesquisa, preferindo fundamentarem-se em
teorias e crenças veiculadas pelas mídias sociais, muitas vezes respaldadas em
fatos inverídicos, as fake news.
Neste
contexto cultural e econômico adverso, cabe a nós, ignorantes amigos do
conhecimento, valorizar o livro e, evidentemente, outros instrumentos de
difusão do saber. Ao longo da história, todas as civilizações que deixaram de
valorizar o cultivo e a crítica da cultura, tenderam à decadência e à ignorância
e, por fim, ao fanatismo e à barbárie.
(Imagens: pinturas de Umberto Buccioni)
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