A
invasão da Ucrânia pela Rússia está justificadamente recebendo uma ampla
cobertura da imprensa. Canais de TV, jornais e demais mídias sociais de todo o
mundo, mandaram seus jornalistas e correspondentes à Ucrânia para cobrir a
invasão russa. A imprensa brasileira, afora uma ou outra exceção, não está acompanhando
in loco o evento com seus próprios profissionais,
e por isso está sendo pautada pela mídia internacional, principalmente a
americana.
A estranha
impressão que se tem, claramente influenciada pelos diversos veículos de
propaganda e de notícias dos Estados Unidos e da Europa, é de que está
ocorrendo um grande embate. De um lado, todos os mais influentes países do mundo,
evidentemente a serviço do Bem. Do outro, o Império do Mal, personificado pela
Rússia, na pessoa de seu líder, Vladimir Putin. A Ucrânia é a maior vítima em
toda esta história, tendo sido transformada em cavalo de batalha na estratégia dos
Estados Unidos e de seus representantes, os países europeus.
Nem Putin, com a Rússia, e nem Biden, com os Estados Unidos, têm o direito de, sob qualquer argumento, invadirem um outro país. Esta não é a primeira invasão de um país por outro neste século XXI (sem falar dos anteriores). Todos as nações diretamente envolvidas com a situação, as mesmas que ora apontam o dedo para a Rússia, já agiram da mesma forma ao longo da história recente no século XX e durante as duas guerras mundiais – Alemanha, França, Inglaterra, Itália –, sem falar do recordista em ingerências nos quintais alheios desde o século XIX; os Estados Unidos.
Toda
esta situação, inflada pelos meios de comunicação e por divulgadores de fake
news, está criando um clima de profunda má vontade em relação à Rússia. Há que
se observar, que internamente o governo de Putin também lança mão de forte campanha de notícias falsas, para iludir a população russa e justificar o ataque à Ucrânia. Vale, lembrar, no entanto, que para a maior parte das
populações de nações não afetadas diretamente pelo conflito, a guerra é um evento longínquo, sem muita importância para
seus próprios problemas diários; algo comparável ao que para nós são os conflitos internos hoje em andamento na
Nigéria, no Iêmen, em Mianmar, e vários outros países.
A Europa, os Estados Unidos e os países fortemente ligados a estas economias como o Brasil, são grandes alvos das centrais de notícias e das campanhas tendenciosas. Começa a ser orquestrado por certos setores, principalmente nos Estados Unidos, um boicote cultural, contra tudo que seja, lembre, tenha gosto ou cheire à Rússia. Nos Estados Unidos, artistas são afastados da ópera de Nova York, apenas pelo fato de serem russos. A ópera da Polônia cancelou a produção da peça “Boris Gudunov”, do compositor russo Mussorgsky. A orquestra filarmônica de Zagreb suspendeu duas apresentações do compositor Tchaikovsky. Na Itália, a universidade de Milão tentou adiar um seminário que discutiria o clássico “Crime e Castigo” do escritor russo Dostoyevsky.
Artistas
russos que atuam em países ocidentais são hostilizados e desligados de suas
atividades, apesar de não terem nenhuma ligação com o presidente russo, e
muitos terem manifestado seu repúdio à invasão da Ucrânia através de suas redes
sociais. A soprano russa Anna Netrbko, por exemplo, cancelou suas próximas participações
na Metropolitan Opera de Nova York. Em sua rede social, logo após a invasão da
Ucrânia, a artista declarou que “como muitos de meus colegas, não sou uma
política. Eu sou uma artista e meu propósito é unir as pessoas.” Cineastas
russos estão sendo injustamente punidos, tendo seus filmes excluídos de festivais,
mesmo tendo manifestado sua desaprovação ao presidente Putin e à invasão da
Ucrânia. No jornal britânico The
Telegraph, o colunista Sam Ashworth-Hayes chamou o movimento de “guerra
cultural à Rússia” e “um terrível erro”, que está provocando uma onda de “russofobia”
em muitos círculos culturais da Europa e dos Estados Unidos.
No
Brasil a onda da russofobia também tem os seus imitadores – como sempre ocorre assim que surgem novas “modas culturais". Prudentemente, alguns restaurantes de São Paulo e Curitiba já
retiraram o strogonoff, “perigoso propagandista de Putin”, de seus cardápios.
Caipirinhas de vodka (caipiroska), moscow
mule, white russian, strawberryroska, mojito cremoso, cosmopolitan,
bellini com vodka, são outras bebidas classificadas como “quinta coluna”, cujas vendas estão temporariamente suspensas nos mais
refinados bares e restaurantes das grandes cidades brasileiras. É o Brasil
também dando sua contribuição ao boicote à Rússia e, especialmente a Putin.
Na
área cultural, dado o confuso momento cultural e político que o Brasil vive, o impacto do “boicote
cultural” provavelmente ficará restrito à literatura. Em relação a isso, o
jornalista, tradutor e autor do livro “Como ler os russos”, Irineu Franco
Perpétuo, comentou que a literatura brasileira tem uma relação de mais de um
século com os autores russos. Nelson Rodrigues, Carlos Drummond de Andrade,
Lima Barreto, Jackson Figueiredo, Alceu Amoroso Lima, por exemplo, têm forte
influência da literatura russa. Não custa lembrar, que todos os clássicos
russos, entre os quais Dostoevsky, Gogol, Nabokov, Bulgakov, Checov, Tolstoi,
Lermontov, Pushkin, por exemplo, estão mortos há muito tempo, e se tornaram
clássicos mundiais muito antes que Putin e seu despótico regime tenham surgido.
Trata-se,
portanto, de uma atitude preconceituosa e obtusa, a promoção de qualquer tipo
de boicote aos artista e à cultura russa, que constroem e ajudaram a construir o
patrimônio cultural da humanidade, do qual todos nós participamos. Em algumas dezenas
de anos, provavelmente poucos se lembrarão de quem foi Putin, Biden, Scholz ou
Macron, mas ainda conhecerão e apreciarão os escritores, músicos, artistas e
cientistas russos.
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