(Fonte: Selecoes/iG)
Felicidade?
“A felicidade, nessa linha de
pensamento, é sem dúvida um tópico interessante, mas é simplesmente muito mal
definido para justificar um estudo histórico. Dan Gilbert, um psicólogo que tem
todo tipo de coisas interessantes a dizer sobre a felicidade, admite que nunca
iremos ter um “medidor de felicidade” que indique infalivelmente quanta
felicidade existe, ou mesmo exatamente o que ela é, e se isso é verdade para o
presente, é ainda mais verdadeiro para o passado.”
Peter
N. Stearns, Hapiness in world history (Felicidade na história mundial)
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A palavra "felicidade", indefinível e capaz de abranger quase tudo, sofreu
diversas mudanças ao longo da história. Os conceitos de uma vida feliz, tanto
para os povos do antigo Crescente Fértil quanto para o do império egípcio, de
uma maneira geral, eram relacionados com uma vida virtuosa, voltada para o
culto dos deuses e, especificamente no caso do Egito, uma consequente feliz
existência no além-túmulo (situação inicialmente reservada aos reis e nobres e,
ao longo dos séculos, gradualmente estendida às classes baixas). A Grécia
antiga foi a primeira cultura ocidental que tratou do tema da felicidade em
termos especificamente humanos, seculares, desvinculados de crenças religiosas,
através da filosofia.
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“Mas
eis a hora de partirmos , eu para a morte, vós para a vida. Quem de nós segue o
melhor rumo, ninguém sabe, exceto o deus.”
Platão (Sócrates), Apologia de Sócrates
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Os
antigos chineses, muito provavelmente também chegaram a se ocupar da ideia, sob
a ótica das filosofias taoista confuciana.
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“Devem mudar frequentemente, aqueles que querem ser constantes em
felicidade ou sabedoria.”
Confúcio, Anacletos
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Entre
os antigos gregos o filósofo Aristóteles falava da eudaimonia; termo que representaria um estado de tranquilidade e
satisfação, ao qual se chegaria através de uma conduta virtuosa e reflexão
filosófica. Outras escolas de pensamento gregas posteriores, como o epicurismo,
o estoicismo e o ceticismo, tratavam da ataraxia;
situação de tranquilidade, depois de eliminados os excessivos apegos a prazeres
e bens materiais; apagadas as falsas concepções sobre os deuses e o além, e
descartadas as falsas opiniões e o pensamento dogmático. Através da prática de
uma ascese intelectual e por vezes física, os filósofos convidavam seus
concidadãos a uma vida feliz, enfatizando o ser (o conhecimento filosófico e a
conduta racional) ao invés do ter (propriedades, poder, boa fama, prazeres, etc.).
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“Assim, a atividade divina, que em felicidade ultrapassa todas as
outras, seria apenas contemplativa. E, por consequência, de todas as atividades
humanas, aquela que é a mais semelhante à atividade divina será também a maior
fonte de felicidade.”
Aristóteles, Ética a Nicômaco, Cap. X
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“Nem a posse das riquezas, nem a abundância das coisas, nem a obtenção
de cargos ou poder produzem a felicidade e a bem-aventurança; produzem-na a
ausência de dores, a moderação dos afetos e a disposição de espírito que se
mantenha nos limites impostos pela natureza.”
Epicuro, Antologia de textos
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Com
a propagação da religião cristã, sobrepondo-se às dezenas de outros cultos de
diversas origens praticados pelas massas do império romano, o conceito de
felicidade, ou de uma vida feliz, passa a tomar outra forma. Associando
conceitos da filosofia grega às crenças do judaísmo farisaico (cujas origens
remotas encontram-se no zoroastrismo persa) as nascentes comunidades cristãs
criaram sua concepção de bem-aventurança, que todavia pouco tem a ver com o conceito que hoje associamos
com a noção de felicidade. Vida virtuosa, de acordo com os ensinamentos herdados dos membros mais antigos da
comunidade religiosa, e tidos como a doutrina de Jesus de Nazaré; estar entre
os eleitos que sobreviveriam ao Final do Tempos e ao Juízo Final (até os
séculos III e IV muitas comunidades cristãs ainda esperavam a volta de Jesus,
segundo o livro do Apocalipse); tais deveriam ser os ideais que poderíamos
chamar de felicidade para grande parte do mundo cristão desde o final da
Antiguidade até o término da Idade Média.
Mudanças
nas relações econômicas e sociais ocorridas entre os séculos XV e XVII (fim do
sistema feudal, invenção da imprensa, as Grandes Navegações, desenvolvimento do
mercantilismo, início das manufaturas, entre outras) trouxeram uma nova interpretação
daquilo que as pessoas consideravam ser o estado de felicidade. Com o movimento
cultural do Renascimento emerge entre as classes mais instruídas o conceito de
“indivíduo”. O interesse pelas artes (Da Vinci, Michelangelo, Boticelli, Dürer,
Bosch, etc.), ciências (Copérnico, Kepler, Galileu, Servetus, Harvey, etc.),
letras (Erasmo, Camões, Cervantes, Shakespeare, etc.), ciência política (Morus,
Bodin, Maquiavel, etc.), filosofia (Montaigne, La Boétie, Della Mirandola,
Ficino, Valla, Mathias Aires, etc.) entre outras áreas do conhecimento humano,
cresce exponencialmente.
Fato
importante deste período é a diminuição gradual da influência da religião na
vida das pessoas. A igreja católica perde parte de seu poder e não mais domina os
vários aspectos da conduta dos indivíduos. A vida diária das pessoas comuns,
fortemente influenciada por uma visão mágico-religiosa do mundo vigente desde o
início da Idade Media, é transformada por conceitos mundanos (seculares) baseados nesta nova perspectiva, que se desenvolveu com o Renascimento. O “indivíduo”
tomava forma e mesmo na religião os intermediários entre a pessoa e a divindade
– a instituição e a hierarquia católica – estavam sendo substituídos pelo
contato direto, como pregavam líderes reformadores como Lutero, Calvino,
Zwinglio e outros.
Qual
era o conceito de felicidade deste novo indivíduo? Possibilidade de pensar e
acreditar como melhor desejasse – havia dezenas de igrejas reformadas com
milhares de pregadores itinerantes por toda a Europa. Migrar da pobreza e do
isolamento do campo para a cidade, encontrando oportunidades de ascensão econômica
e social, através de alguma atividade ligada ao comercio e, mais tarde, à
indústria. Ampliar seu horizonte intelectual/cultural e religioso, antes
limitado à vida no campo e ao universo mental mágico de uma religião surgida
ainda no período agrário.
Muitas
mudanças ocorreram ao longo dos séculos XVIII e XIX (revoluções,
industrialização, migrações do campo para a cidade, movimentos político-sociais)
que alteraram novamente a forma como os indivíduos interpretavam o universo e
influenciaram suas expectativas de felicidade. Foi nesse período, segundo
alguns autores, que teriam surgidos os contornos do moderno conceito de
felicidade, influenciado pelo pensamento da filosofia iluminista e pela
Declaração Universal dos Direitos do Homem, elaborada durante a Revolução
Francesa (1789). Com isso, a gradual secularização da civilização ocidental,
processo que a partir do final do século XIX também foi levado a outras regiões
do globo, teve uma forte influência na criação da moderna ideia de felicidade.
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“Os representantes do povo
francês, constituídos em ASSEMBLEIA NACIONAL, considerando que a ignorância, o
esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das
desgraças públicas e da corrupção dos Governos, resolveram expor em declaração
solene os Direitos naturais, inalienáveis e sagrados do Homem, a fim de que
esta declaração, constantemente presente em todos os membros do corpo social,
lhes lembre sem cessar os seus direitos e os seus deveres; a fim de que os atos
do Poder legislativo e do Poder executivo, a instituição política, sejam por
isso mais respeitados; a fim de que as
reclamações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e
incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e à felicidade
geral.”
Declaração
Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789)
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“Assim,
tanto no bem quanto no mal, tirante os casos graves de infelicidade, importa
menos saber o que ocorre e sucede a alguém na vida, do que a maneira como ele o
sente, portanto, o tipo e o grau de sua suscetibilidade sob todos os aspectos.
O que alguém é e tem em si mesmo, ou seja, a personalidade e o seu valor, é o
único contributo imediato para sua felicidade e para o seu bem-estar. Todo o
resto é mediato.”
Arthur Schopenhauer, Aforismos para a Sabedoria de Vida
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Hoje
o tema da felicidade tornou-se uma constante no imaginário das sociedades
contemporâneas, especialmente nas ocidentais. Devemos “procurar sermos
felizes”, os recém-casados recebem “votos de felicidade”, todos desejam que
seus filhos “sejam felizes”. Não importa o tipo de atividade profissional a
qual você se dedique, já que “o que importa é que sejas feliz no que fazes.” A
felicidade tornou-se um dos principais temas nas redes sociais, nos filmes, nas
mídias. O mundo quer ser feliz.
O
marketing, uma das grandes ferramentas para fomentar o consumo – o motor da economia de mercado –, espertamente incorporou o tema às suas mensagens.
Assim, nas relações comerciais e no consumo a felicidade é um item de vendas
importante. Há décadas que a publicidade mais sofisticada, de produtos e
serviços mais caros, deixou de enfatizar as qualidades da mercadoria; sua
durabilidade, seu preço competitivo ou sua aparência – aspectos óbvios no
produto, como sugere a mensagem. Atualmente a ênfase é a impressão que o produto
causa na imaginação do consumidor, relacionada a uma sensação agradável, sugestivamente
associada à felicidade.
A
incorporadora que vende um apartamento com garagem privativa, terraço gourmet,
ampla área comum com piscina, churrasqueira e quadra de esportes, está, segundo
a peça propagandística, proporcionando (“vendendo” seria apelativo e tornaria a
intenção óbvia) “um novo conceito de viver com felicidade”. O recém-lançado
carro tipo SUV, moderno e equipado é, insinuantemente, apresentado como o seu
“novo rumo para a felicidade”. Também fica implícita a impressão de que possuir
tais bens é condição de prestígio social, sinal de que seu possuidor já faz
parte de uma classe “mais feliz” do que os menos felizes (leia-se menos
favorecidos economicamente). Significativamente, itens de consumo de menor
valor não chegam a oferecer felicidade – pelo menos do que se depreende do
comercial. No máximo propiciam “bons momentos”, “sua segurança”, “um agradável
frescor”, “saúde para você e sua família”. Ou seja, se você até este momento de
sua vida só teve condições de comprar produtos de menor valor, por uma razão ou
outra, ainda não pode ser incorporada (o) ao grupo da classe mais feliz.
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“A desvalorização do mundo humano aumenta em
proporção direta com a valorização do mundo das coisas.”
Karl
Marx, O Capital
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Mas
o que é a felicidade? Psicólogos a definem como “estado emocional caracterizado
por bem-estar, contentamento e satisfação. Pode ser um sentimento
duradouro ou um momento passageiro de alegria e prazer.” (AI Overview). Definitivamente
nada dependente da posse de grandes riquezas, fama, prazer e poder, já que há
milhões de pessoas que comprovadamente possuem tudo isso e, mesmo assim não se
consideram felizes.
Será
a prática de alguma filosofia ou religião? Pouco provável, já que os próprios
filósofos da Antiguidade admitiam não haver conseguido alcançar a
“tranquilidade de alma”, como eles próprios pregavam. Sêneca, filósofo estoico
romano é o exemplo mais famoso disso. No caso das religiões, a impressão que se
tem é a mesma, já que as hagiografias de santos e místicos relatam somente os
aspectos positivos das vidas destes indivíduos, desconsiderando passagens que
pudessem colocar em questão seu estado de felicidade ou beatitude. Além disso,
há milhões de pessoas não religiosas e outras que nada se ocupam de filosofia, que
levam vidas tão felizes ou infelizes quanto os filósofos e os religiosos.
Concluímos
que o conceito de felicidade é tão amplo, envolvendo incontáveis aspectos, muitos deles inalcançáveis, menos ainda simultaneamente. Imagine uma pessoa, que para
ser feliz, segundo os padrões mais comuns da cultura popular, teria ser
inteligente, ser bem sucedida economicamente, ter boa índole, ser bondosa, ter
saúde, ser bem humorada, ter boa aparência, ter bons relacionamentos, etc.,
etc., etc. Também se diz que “a pessoa é feliz”, ao invés de “está feliz (no
momento)”, como se tal estado, além de tudo, pudesse ser algo constante. Algo que
lembra aquelas inverossímeis histórias de “sábios indianos que alcançaram a eterna
felicidade” dos livros de autoajuda.
A
felicidade, como propagada pela cultura popular mundo afora, parece ser,
portanto, uma quimera. Existem “momentos felizes (ou alegres)”, mas “uma vida
feliz” é pouco provável. Tão improvável que as religiões – profundas conhecedoras
da índole humana há milênios – a reservam para o outro mundo, e muitas vezes
apenas para os eleitos.
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“Voltamo-nos, portanto, para a questão mais simples: o que as próprias
pessoas revelam por meio de seu comportamento como propósito e intenção de suas
vidas, o que exigem da vida, o que desejam alcançar nela. A resposta para isso
é difícil de ignorar: elas buscam a felicidade, desejam ser felizes e
permanecer assim. Essa busca tem dois lados: um objetivo positivo e um
negativo; por um lado, busca a ausência de dor e desprazer e, por outro, a
experiência de fortes sentimentos de prazer.”
“É completamente impraticável; todas as percepções do universo o
contradizem; pode-se dizer que a intenção do homem de ser ‘feliz’ não está
contida no plano da ‘criação’. O que se chama felicidade no sentido mais
estrito surge da satisfação bastante repentina de necessidades profundamente
reprimidas e é, por sua própria natureza, possível apenas como um fenômeno
episódico”.
Sigmund Freud, Das Unbehagen in der Kultur (O mal-estar
na civilização)
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Ricardo E. Rose