"A liberdade, pois, é o domínio de nós próprios e da natureza exterior, baseado na consciência das necessidades naturais; com tal é, forçosamente, um produto da evolução histórica. Os primeiros homens que se levantaram do reino animal eram, em todos os pontos essencias de suas vidas, tão pouco livres quanto os próprios animais; cada passo dado no caminho da cultura é um passo no caminho da liberdade." - Friedrich Engels - Anti-Dühring
A origem da filosofia brasileira encontra-se em Portugal, já que até certo período de nossa história – pelo menos até a vinda da família real ao Brasil em 1808 – não existiam universidades e outros tipos de fóruns para a discussão filosófica. As únicas exceções eram os cursos nos seminários de Olinda e Salvador, onde se ensinava filosofia e teologia. Portugal, por outro lado, era um país de contrastes. Foi uma das primeiras nações européias a estabelecer um governo centralizado, sob a batuta de um rei, eliminando o poderio dos nobres – uma típica característica das nações consideradas modernas nos séculos XV e XVI. Além disso, Portugal tinha conseguido reunir grande parte do conhecimento disponível à época referente às navegações ultramarinas; astronomia, geografia, cartografia, engenharia náutica e técnicas de navegação. Por cerca de um século (1450 -1550) o português foi o povo que mais descobriu e viajou por todo o mundo (Bartolomeu de Gusmão, Vasco da Gama e Fernão de Magalhães, eram todos portugueses). Sintetizando, temos Portugal como país politicamente e tecnologicamente avançado para a época.
Sob aspecto cultural, desde a Idade Média até o século XVIII houve sempre predomínio da ideologia da Igreja. Na literatura floresceram as obras de Camões, Sá de Miranda, João de Barros e Gil Vicente, todos com forte influência renascentista. Alguns autores, todavia, tratavam os temas religiosos sob a ótica tradicional da Igreja – como mostram os diversos Autos encenados por Gil Vicente encenados na corte portuguesa. Na filosofia, no entanto, a coisa era diferente. Fortemente dominada pela Igreja e sua hierarquia, o ensino da filosofia (sempre associado ao da teologia) era monopólio das ordens religiosas. Os poucos intelectuais portugueses que se aprofundaram no estudo da filosofia durante este período, acabaram emigrando principalmente para a França, onde reinava mais liberdade de pensamento.
Desta forma, como não podia deixar de ser, as origens da filosofia brasileira estão fortemente ligadas ao pensamento das ordens religiosas, que por aqui iniciaram suas atividades catequéticas (e políticas) logo a partir do Descobrimento. A própria fundação das cidades brasileiras ainda guardava certas características que remontam ao Renascimento Carolíngio, no século IX, ou seja, a prática de fundar um povoamento a partir de uma igreja e junto com esta uma escola, onde eram ensinados os rudimentos da leitura, da escrita e, principalmente, da religião. Foi o que fizeram Nóbrega, Nunes, Anchieta e outros jesuítas, ao fundarem as primeiras cidades brasileiras. Os núcleos de povoamento foram evoluindo e crescendo, tornando-se centros administrativos (Salvador) e comerciais (Paraty, Rio de Janeiro, Iguape), mas a educação era basicamente ministrada nas escolas religiosas. Aqueles cidadãos mais abastados, que podiam custear uma educação superior, visitavam a universidade de Coimbra, também sob a batuta dos jesuítas. Gregório de Matos (1636-1695), por exemplo, o primeiro poeta caracteristicamente brasileiro, pertencia à elite portuguesa da Bahia e havia feito seus estudos de Direito em Coimbra.
Não é de estranhar então que pelo menos até a Reforma Pombalina, ocorrida no século XVIII, quando o Marquês de Pombal reprimiu as ordens religiosas de Portugal e do Brasil, todo o ensino superior, e com ele o ensino da filosofia, estivesse dominado pela ótica religiosa, com suas preocupações, questões e temas característicos.
Além disso, é preciso observar que Portugal vivia sob o espectro da Inquisição desde o final do século XV. O rei havia se aliado à Igreja e apoiava fortemente as ações desta instituição; na verdade, tinha até interesse nela. Exemplo disso foram as perseguições aos judeus no final do século XV, quando o Estado português estava sem capital para as aventuras ultramarinas. Apoiando-se na Igreja, o rei de Portugal iniciou uma grande perseguição aos judeus, muitos deles comerciantes e banqueiros bem sucedidos. Assim, nada mais providencial do que em nome do cristianismo católico forçar os judeus à conversão ou expulsá-los, tomando-lhe todos os bens. Em uma ambiente de repressão ideológica e cultural quanto este, era pouco provável, portanto, que surgissem pensadores como Erasmo de Rotterdam, Montaigne, Hobbes, Francis Bacon ou Machiavel.
Desta forma o início da filosofia brasileira se caracteriza por uma continuação do pensamento escolástico praticado nos seminários e universidades católicas, chamado de “Ratio Studiorum” e com forte influência do aristotelismo medieval. Foi baseado neste pensamento que se desenvolveu aos poucos uma filosofia praticada no Brasil, principalmente nos seminários – nos cursos de teologia e filosofia – que no entanto ainda tinha muitas características tomistas.
O padre Antonio Vieira (1608-1697) não foi exatamente um filósofo. Influenciado pela filosofia tomísitico-inaciana, escreveu e pronunciou centenas de sermões, muitos dos quais ainda hoje figuram como jóias da literatura brasileira e valem a pena ser estudados. Em suas prédicas, Vieira utiliza-se de uma técnica bastante comum no período barroco, que visava mostrar a irrelevância ou a falácia de certos valores socialmente aceitos e almejados (a riqueza, o poder, a vaidade, etc.) – geralmente associados aos sete pecados capitais. Vieira denunciava estes valores como fonte de dor e insatisfação e procurava induzir sua audiência a uma reavaliação de seus ideais, tentando conduzir os ouvintes para os valores cristãos.
Digno de nota e estranhamente esquecido da maioria dos manuais é o pensador nascido em São Paulo Matias Aires (1705 – 1763). Este paulistano estudou em Coimbra, em Paris e desenvolveu uma filosofia baseada em aforismos, parecida à dos moralistas franceses La Rochefoucauld, Bossuet e La Bruyère. Alceu Amoroso Lima, escritor, ensaísta e filósofo católico do século XX, prefaciando a obra “Reflexão sobre a vaidade dos homens” de Matias Aires, considera este o primeiro filósofo brasileiro. Pensador mordaz e pessimista, Aires tem aforismos interessantes como este:
“Porém deste mesmos delírios resulta e depende a sociedade; porque a vaidade de adquirir a fama infunde aquele valor aos homens, que quase chega a transformá-los em muralhas para a defesa das cidades, e dos reinos; a vaidade de serem atendidos os reduz à trabalhosa ocupação de indagarem os segredos da divindade, o giro dos astros, e os mistérios da natureza; a vaidade de serem leais os faz obedientes; a vaidade de serem amados os faz benignos; e finalmente a vaidade ou amor da reputação os faz virtuosos. Daqui vem que o homem sem vaidade entra em desprezo universal de tudo, e começa por si mesmo: olha para a reputação como para uma fantasia, que se sustenta de um sussurro mudável, e de uma opinião sempre inconstante; [...]” (Aires, 1993, p.34)
Outros pensadores de destaque foram José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), cognominado de “o patriarca da independência” e o padre Diogo Antonio Feijó (1784-1843). José Bonifácio foi um dos maiores intelectuais de seu tempo; estudou em Coimbra, viajou pela Europa e estudou mineralogia em Paris e Freiburg. De volta a Portugal, integrou um grupo de intelectuais com o objetivo de reformar a política do império português. Tendo-se mudado para o Brasil, ainda a fim de reestruturar o império português, envolve-se com a independência do Brasil e com a política do Segundo Império, como tutor de D. Pedro II, sendo posteriormente desterrado. Como pensador, José Bonifácio deixou vários escritos sobre política brasileira, economia, literatura, filosofia e religião, de importância secundária.
Padre Feijó além de sacerdote foi político – curiosamente inimigo político de José Bonifácio de Andrada e Silva. Foi professor de filosofia, tendo sido muito influenciado pelo pensamento de Kant. Talvez, em função dessa influência, Feijó tenha sido liberal na política, inimigo da escravidão e favorável à eliminação do celibato sacerdotal.
O pensamento de Gonçalves de Magalhães – talvez o primeiro pensador eminentemente filosófico do Brasil – ainda revela resquícios da tradição filosófica que sempre ocupou, com raras exceções, os pensadores luso-brasileiros: a questão da interação (ou oposição) entre o espírito e a matéria. Mas aqui não se trata de um espírito como sinônimo de atividade mental somente. Trata-se sim, daquele velho termo metafísico, tão caro à filosofia pré-kantiana. Segundo Gonçalves de Magalhães, “não é com os olhos pregados no mundo exterior, com todos os sentidos abertos e atentos aos fenômenos sensíveis que há de o espírito humano conhecer a sua própria natureza, os seus atributos e seu destino; é recolhendo-se ao santuário de sua consciência, refletindo sobre os seus próprios atos, examinando os fatos atestados por eles, que poderá penetrar neste mundo espiritual da metafísica, de que ele é um dos habitantes que por este mundo exterior viaja [...]" (Madeira, 2009). Nossa filosofia continuava muito longe da realidade concreta do país. Enquanto o Brasil se via as voltas com a escravidão, sendo um império econômica e tecnicamente pouco desenvolvido, com um sistema educacional quase inexistente, o filósofo-diplomata-poeta Gonçalves de Magalhães convidava seus contemporâneos a “penetrar neste mundo espiritual da metafísica”.
Neste aspecto, o pensador Luís Pereira Barreto (1840 – 1923), contemporâneo de Gonçalves Magalhães e ligado à filosofia positivista, tinha pensamentos muito mais concretos e críticos em relação à realidade brasileira, à ciência, à metafísica, à política e outros pontos. Suas principais obras foram “As três filosofias”, “Soluções positivas da política brasileira”, “Positivismo e teologia” e “O século XX sob o ponto de vista brasileiro”.
A filosofia de Farias de Brito (1862-1917) tem grande influência da filosofia européia de sua época (Bergson, Wundt, entre outros) e ao mesmo tempo parece ser um dos primeiros autores filosóficos relativamente originais, sendo influenciado pelo ambiente político, econômico e cultural do Brasil da Primeira República; o mesmo ambiente descrito por Machado de Assis, Lima Barreto, Oliveira Vianna, Euclides da Cunha, entre outros. Fato interessante é que Farias de Brito também faz longas referências à psicologia, que havia se tornado popular entre os intelectuais, por influência da crescente popularização da obra de Sigmund Freud.
O estudo do pensamento filosófico brasileiro é bastante importante para compreender melhor o desenvolvimento cultural do país. No entanto, deve sempre vir acompanhado do contexto histórico do período estudado. A filosofia, sempre é bom repeti-lo, é produto da interação de filósofos com seu ambiente; não é produto de divagações sem qualquer relação com a realidade concreta.
Bibliografia:
AIRES, Mathias. Reflexões sobre a vaidade dos homens. São Paulo. Martins Fontes: 1993, 202 p.
BARRETO, Luís Pereira. Soluções positivas da política brasileira. São Paulo. Editora Escala: 2007, 139 p.
MADEIRA, João Batista. Filosofia no Brasil. Batatais. Ceuclar: 2009, 44 p.
ANDRADA E SILVA, José Bonifácio. Projetos para o Brasil. São Paulo. Publifolha: 2000, 212 p.
BANDEIRA, Manuel. Apresentação da poesia brasileira. São Paulo. Cosac Naify: 2009, 501 p.(imagens: Gustav Klimt)
3 comments:
Òtimo texto!
Perfeito.
O Pensamento Filosófico Brasileiro contribuiu para um projeto de Nação, após a Independência, em 1822 com os projetos de Hipólito da Costa e de José Bonifácio. Porém, os políticos não realizaram até hoje, o Projeto de Nação brasileiro.
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