A filosofia de Marx teve como ponto de partida o pensamento de Hegel (1770-1831). Mas Marx, de certo modo, fez juz àquela máxima que diz que “o bom discípulo é aquele que ultrapassa o mestre”. Valendo-se do pensamento de seu mestre, Marx criou sua própria linha de pensamento para análise do mundo.
O pensamento de Hegel era fortemente influenciado pelo devir histórico; o desenrolar histórico tinha um papel fundamental na explicitação da filosofia hegeliana. Este pensador explicava as instituições humanas como resultado de uma racionalidade inerente ao mundo. Esta racionalidade era uma manifestação do desenvolvimento do Espírito; uma entidade abstrata elaborada por Hegel, e que seria o impulsionador, principal personagem e o próprio sujeito da história humana e do cosmo (daí a importância da história). Segundo Hegel, todo o devir da história humana e do próprio desenvolvimento do universo é um processo (palavra importante no pensamento de Hegel) por que passa o Espírito – conceito que pouco ou nada tem a ver com o conceito de Deus do cristianismo, assemelhando-se mais ao conceito de Brahma do hinduísmo. Sobre este aspecto da filosofia de Hegel escrevem Reale e Antiseri:
“Na Fenomenologia do Espírito (a principal obra de Hegel), como se evidencia do que foi dito, existem dois planos que se interseccionam e se justapõem:
1) há o plano constituído pelo caminho percorrido pelo Espírito para chegar a si mesmo ao longo de todos os acontecimentos da história do mundo que, para Hegel, é o caminho ao longo do qual o Espírito se realizou e se conheceu; 2) mas há também o plano próprio simples do indivíduo empírico, que deve percorrer novamente aquele caminho e apropriar-se dele. A história da consciência do indivíduo, portanto, outra coisa não pode ser senão o percorrer a História do Espírito.” (Reale, Antiseri, 1991, V. III, p. 112)
Para Hegel, a estrutura social com todas as suas instituições, era efetivamente uma necessidade racional; algo no interior das cabeças dos homens que se exteriorizava (por serem estes, de certo modo, uma manifestação do Espírito). O mundo e todas as relações sociais eram – coerente com o papel que Hegel dava ao Espírito na história – a manifestação de uma racionalidade que aos gradualmente se exteriorizava no desenrolar histórico. Hegel estava tão convencido deste processo que escrevia que “o real é racional e o racional é real” – já que o real é manifestação de uma ordem racional, o Espírito.
Hegel foi o maior expoente da filosofia idealista moderna, cuja genealogia remonta a Platão. De modo simplificado, pode-se descrever a filosofia idealista como a que pressupõe que a realidade com a qual lidamos oculta uma ordem, ou uma dimensão que não é perceptível empiricamente. No entanto, através do conhecimento, da filosofia (ou da matemática para alguns pensadores) podemos apreender esta oculta racionalidade. Para alguns filósofos, esta realidade ou racionalidade oculta era Deus ou era mantida por ele.
Estudando Hegel, Marx compreendeu que o surgimento, a mudança e a substituição das instituições jurídicas e políticas – o desenrolar da história humana – só poderia ser explicada pelas condições materiais e suas mudanças. Fortemente influenciado pelo materialismo, Marx não podia aceitar as teses idealistas de Hegel, que para ele eram ideologia, ou seja, uma idealização da realidade. Já em sua tese de doutorado “Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro”, Marx escreve:
“Quando a filosofia, enquanto vontade, se opõe ao mundo fenomênico, o sistema se transforma em uma totalidade abstrata, num lado do mundo, ao qual se opõe um outro lado. Na medida em que tende a refleti-lo, ao desejar realizar-se, entra em luta com o Outro.” (Marx, s/d, p.30).
Marx defendia que a filosofia de Hegel interpretava o mundo de cabeça para baixo. Daí ocorreu-lhe a grande idéia, munido das noções do materialismo e com profundos conhecimentos de história, de que ocorre exatamente o contrário: são as condições materiais que propiciam as alterações na sociedade civil, ou seja, nas instituições e idéias. Escreve Marx:
“O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de fio condutor aos meus estudos, pode ser formulado em poucas palavras: na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral da vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.” (Marx, 1974, p. 136).
Identificar os fatos econômicos como sendo a base – mas não o único fator causador – das alterações na estrutura social, foi o grande passo para que Marx pudesse desenvolver toda uma nova interpretação da história e das relações entre os homens. Convencido de que são as relações de produção que dão rumo à história, Marx escreve com Engels em seu Manifesto do Partido Comunista:
“Será preciso uma excepcional inteligência para compreender que, quando forem modificadas as condições de vida dos homens, as suas relações sociais e sua existência social, mudarão também em suas representações, as suas concepções, os seus conceitos – numa palavra, a sua consciência? O que prova a história das idéias senão que a produção espiritual se transforma com a transformação da produção material? As idéias dominantes de uma época sempre foram as idéias da classe dominante.” (Marx, Engels, 2001, p.57).
MARX, KARL e ENGELS, FRIEDRICH. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo. Editora e Livraria Anita: 2001, 80 p.
MARX, KARL. Para Crítica da Economia Política in Coleção Os Pensadores. São Paulo. Abril Cultural: 1974, 410 p.
MARX, KARL. Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro. São Paulo. Global Editora: s/d, 128 p.
REALE, GIOVANNI e ANTISERI, DARIO. História da Filosofia Vol. III. São Paulo. Paulus Editora: 1991, 1111 p.
(Imagens: Joseph Mallord William Turner)
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brabo
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