A cada ano, no dia 22 de
março, celebra-se o Dia Mundial da Água. A data comemorativa foi criada pela
Organização das Nações Unidas (ONU) em 1992, para levantar discussões sobre
este precioso recurso com o lançamento do documento "Declaração Universal
dos Direitos da Água". O debate sobre este tema nunca é demais, já que
grande parte dos recursos hídricos do planeta ainda está sendo desperdiçada e
poluída. O quase desaparecimento do mar de Aral na Ásia Central, o rebaixamento
do lençol freático em várias regiões do globo, o assoreamento de grandes rios; são
sinais de que ainda há muito por fazer na gestão dos recursos hídricos.
A água, apesar de ser
relativamente comum no universo é rara na forma líquida sobre a superfície dos planetas.
A Terra é um dos poucos planetas que abriga grandes quantidades deste elemento:
os oceanos contêm 97% da água superficial do planeta; as geleiras e calotas
polares têm 2,4%; rios, lagos e lagoas abrigam 0,6%. A água disponível para
consumo das espécies vivas, incluindo os humanos, é limitada, mas não insuficiente.
Através do ciclo hidrológico o líquido é depurado e redistribuído, atendendo às
necessidades dos ecossistemas da Terra. Este processo ocorre desde a formação do
planeta, há 4,6 bilhões de anos. Os problemas efetivamente apareceram quando pela
ação do homem seu uso se tornou excessivo e a água passou a ser devolvida ao
meio ambiente contaminada por elementos orgânicos e inorgânicos, na forma de
efluentes e lodos. Nesta situação, o ritmo de depuração natural da água é lento
demais para as necessidades de uma civilização perdulária com os recursos
naturais e aí começam a aparecer os problemas. Aqui vale lembrar que toda a
preocupação com a poluição e a crescente escassez da água em determinadas
regiões da Terra, afeta principalmente os seres humanos. Se, por algum acaso,
desaparecermos como espécie, o ciclo hidrológico cuidará da despoluição das
águas ao longo das eras. Não somos necessários para o funcionamento do planeta.
O volume de água disponível
na Terra, desde sua origem, permaneceu quase inalterado. Os cientistas afirmam
que apesar de toda a contaminação a que é submetida, a água não desaparecerá,
mas poderá se tornar cada vez mais poluída e misturada a resíduos sólidos. Este
processo fará com que sua limpeza para usos mais nobres se tornará gradualmente
mais cara e sua concentração - em lagos, rios e no subsolo – poderá mudar. Por
exemplo: a água que se tornou cada vez mais rara no Norte da África nos últimos
dez mil anos – seja na forma de precipitação ou no subsolo –, propiciando a
formação de um deserto, deslocou-se para outras regiões do planeta, através do
ciclo hidrológico. São os fatores climáticos como os ventos e temperatura, associados
aos aspectos geográficos (montanhas, oceanos, rios, vegetação), que fortemente
influenciam a incidência de chuvas, principal fator no ciclo da água. Este
processo de realocação dos recursos hídricos é constante e sujeito a inúmeros
aspectos adicionais, que ocorrem ao longo de extensos períodos de tempo, como
as radiações solares, a mudança do eixo da Terra, erupções vulcânicas, maremotos,
etc. Daí a grande dificuldade de se desenvolver modelos simulados de ciclos
hidrológicos de grandes regiões ou longos períodos.
O impacto humano sobre os
recursos hídricos aumenta junto com o crescimento da população. Se antes a
poluição era restrita a áreas habitadas e de atividade agrícola, com o início
da industrialização estes aspectos mudam: em 1800 a humanidade atingiu a
marca de um bilhão de pessoas, no início da primeira fase da Revolução
Industrial. Daí para frente o crescimento populacional aumentou num ritmo cada
vez mais rápido: em 1930 o mundo tinha dois bilhões de habitantes; 1960, três
bilhões; 1975, quatro bilhões; 1987, cinco bilhões; 1999, seis bilhões e 2012, sete
bilhões de pessoas. O crescimento da população só foi possível com uma maior
oferta de bens e alimentos, para cuja produção foi necessário mais consumo de
água.
Os primeiros impactos
significativos que os humanos provocaram sobre os recursos hídricos ocorreram
com a prática regular da agricultura, que teve início há aproximadamente oito
mil anos. Grandes extensões de áreas plantadas, geralmente localizadas em
regiões de pouca precipitação pluviométrica (Egito, Suméria e vale do Indo), precisavam
ser irrigadas, através da construção de canais. Assim além de descarregar
resíduos e efluentes sanitários nos rios, estas culturas também fizeram obras
de engenharia que influíam no fluxo regular dos rios e na qualidade de suas
águas. Foram estas as civilizações que primeiramente mostraram uma preocupação
com a qualidade da água potável. Métodos de melhoria do gosto ou do odor da
água potável datam de antes de 4.000 a.C. Os documentos mais antigos tratando
deste tema foram encontrados em tumbas egípcias e em documentos da antiga
Índia, onde um texto médico denominado Sus´ruta
Samita, datado de 2.000
a .C., dá instruções sobre o tratamento da água. Os
métodos incluem a fervura, aquecimento da água pela luz solar, a colocação de
ferro aquecido na água, processos de filtragem com gravetos e areia e mistura
de certas sementes ou pedras à água. Nas paredes dos túmulos de Amenophis II e
Ramses II, faraós do 15º e 13º séculos a.C. respectivamente, encontram-se
desenhos de equipamentos para limpeza da água. Os gregos e romanos também
desenvolveram técnicas para purificação, já que os últimos tinham criado
sofisticada engenharia para captação e transporte de água através dos
aquedutos.
As tecnologias de depuração
da água não sofreram alterações significativas durante todo o período medieval,
até o início da Era Moderna. As pequenas cidades da Idade Média eram
abastecidas por água de poços, espalhados pelo perímetro urbano, oferecendo
água de relativa qualidade, limitando o surgimento de epidemias provocadas por
água contaminada. A partir dos séculos XI-XII, com o aumento da população
urbana e a lenta contaminação do subsolo, a disenteria tornou-se doença comum.
Causada por bactérias ou amebas e disseminada por alimentos e água contaminada
por matéria fecal, a moléstia ceifou dezenas de milhares de vidas,
principalmente de crianças, no período. A partir do século XVIII, com o
aparecimento das primeiras empresas de fornecimento de água para residências, o
processo de filtragem do líquido tornou-se procedimento regular na Europa. Ao
longo do século XIX a captação, preparação e distribuição de água tornam-se
mais comuns, aliando as novas descobertas na área da medicina – entre outras a descoberta
do vibrião da cólera por Koch e os conceitos da microbiologia desenvolvidos por
Pasteur – disseminando-se pelas mais importantes cidades da Europa e dos
Estados Unidos. Foi somente no início do século XX que os serviços de
tratamento de água se popularizaram – pelo menos nos países mais desenvolvidos.
No Brasil as primeiras
estações de captação e tratamento de água surgiram no final do século XIX e
início do século XX, começando pelas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e
Belo Horizonte. Por volta de 1930 todas as capitais brasileiras possuíam sistemas
de tratamento de água. Estes, se não atendiam toda a população, pelo menos
forneciam água tratada para as regiões centrais e bairros mais antigos. A
partir da década de 1940, com o aumento do êxodo rural e o crescimento da
demanda por saneamento, surgem as primeiras empresas públicas e autarquias de
serviços de tratamento da água. O setor de saneamento – especificamente o
tratamento de água – tem um grande impulso a partir do início da década de 1970
com a implantação do Plano Nacional de Saneamento – Planasa. O plano criou as
companhias estaduais de saneamento, obrigou os estados a investirem no setor e estabeleceu
linhas de crédito com base em recursos do Fundo de Garantia por Tempo de
Serviço (FGTS). A década de 1980, também para o setor de saneamento, foi de
relativa estagnação, dado o alto endividamento do Estado e as elevadas taxas de
inflação. A retomada dos investimentos e a ampliação da infraestrutura do setor
só ocorrem a partir da estabilização da economia em 1994, com um aumento dos
recursos principalmente com a criação do Plano de Aceleração do Crescimento, em
2007. No entanto mesmo com a criação do Plano Nacional de Saneamento Básico
(Plansab), criado pelo Ministério das Cidades em 2012, e que prevê
investimentos de R$ 270 bilhões até 2030, as perspectivas para o setor ainda
são incertas.
Atualmente, 81% da população
do País, cerca de 157 milhões de pessoas, têm abastecimento de água tratada. Os
37 milhões que não são atendidos em suas necessidades básicas de água habitam
principalmente a região Norte, o Nordeste e o Centro-Oeste. Além de deixar de suprir
parte considerável da população com água tratada, em média 38% do volume de
água tratada são perdidos no sistema de distribuição. Isto sem mencionar que
somente 47% do esgoto sanitário são coletados e apenas 38% deste volume
coletado é tratado – o que quer dizer que meros 18% do volume total do esgoto
gerado no Brasil são tratados.
Outro aspecto é quanto à
qualidade da água tratada. Segundo dados do Ministério da Saúde, apenas 67% das
cidades estão preparados para fiscalizar e avaliar a qualidade da água que sua
população consome.
Não havendo fiscalização constante, não se conhece a situação da água nas fontes de fornecimento (lagos, rios, nascentes), no tratamento e nem no produto final, distribuído aos consumidores. O problema é grave e já na década de 1960 as autoridades de saúde dos Estados Unidos chegaram à conclusão de que não somente a cor e a presença de patógenos ou produtos químicos deveriam ser os únicos parâmetros na aferição da qualidade da água. Nessa época já havia uma série de novos produtos químicos e farmacêuticos, que chegando às fontes de fornecimento acabavam poluindo as águas e não eram eliminados nos sistema de tratamento – mesmo com tecnologias de adsorção em filtros de carvão ativado. Hoje o número de substâncias químicas de todo o tipo, que por vária maneiras chegam às fontes de captação da água para consumo são bem maiores. Em pesquisa realizada pelo Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) com a água consumida na Região Metropolitana da Região de Campinas, foi constatada forte presença de interferentes endócrinos, substâncias que se ingeridas por longos períodos podem interferir no funcionamento das glândulas. Durante o período de pesquisa foram encontrados diversos tipos de hormônios e de esteróides derivados do colesterol, produtos de origem farmacêutica e industrial. As concentrações identificadas são em alguns casos mil vezes mais altas do que em países da Europa. Estas substâncias são relacionadas com o aparecimento de diversos tipos de câncer e não são eliminadas pelos sistemas convencionais de tratamento de água em funcionamento no País, segundo especialistas. Mas informações sobre o assunto estão em http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/dezembro2006/ju346pag03.html.
O tratamento da água com adição
de cloro é bastante eficiente em um país onde grande parte das fontes de
fornecimento já está contaminada por efluentes domésticos. Isto porque, grandes
volumes de efluentes não tratados são descarregados nos rios e lagos, que por
sua vez também fornecem água para consumo humano. Assim forma-se o círculo
vicioso: a baixa qualidade da água captada faz com que o tratamento se torne
cada vez mais caro; e a descarga dos efluentes torna as fontes de fornecimento cada
vez mais poluídas, encarecendo seu tratamento para consumo humano. Desta forma sobram
poucos recursos para tecnologias de tratamento da água mais avançadas que o
cloro ou dióxido de cloro, desinfetantes que não são unanimidade entre os
especialistas. Descobriu-se, por exemplo, que certos patógenos de água potável são
resistentes ao cloro e podem causar doenças como a hepatite, gastrenterite,
criptosporidiose e Mal do Legionário. Nos Estados Unidos, menos de 60% da água
para consumo humano têm adição de cloro; e em níveis mais baixos que no Brasil
– 4 PPM (parte por milhão) contra cinco PPM no Brasil. Na Alemanha e Holanda o
elemento só é utilizado em alguns casos, já que as fontes de fornecimento são
protegidas e controladas, proporcionando a captação de água de alta qualidade, com
pouca necessidade de tratamento. Pesquisas indicam que a exposição prolongada
ao cloro pode ocasionar câncer de bexiga, do aparelho digestivo e de mama,
devido à tendência do cloro de interagir com compostos orgânicos na água,
formando trialometanos (THM) e ácidos haloacéticos (HAA5).
(Imagens: fotografias de David Seymour)
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