Senso
comum, segundo Aristóteles é a capacidade geral de experimentar o mundo através
dos diversos sentidos. Já para os escritores clássicos e filósofos latinos,
esta expressão tem o significado de costume, gosto, modo comum de viver ou de
falar (Abbagnano, 2007). Esta interpretação do termo "senso comum" é
a que ainda utilizamos atualmente e como ocorreu durante quase toda a filosofia
ocidental - pelo menos até o século XVIII, antes de Hume.
O
senso comum ou conhecimento vulgar, segundo a tradição filosófica, é a forma
como interpretamos o mundo sem uma análise mais aprofundada; criteriosa. O
senso comum se reflete, segundo esta tradição, na vida do dia a dia, nas
opiniões, na maneira como culturas e povos encaram determinados temas. Sobre
isto escreve o filósofo e educador John Dewey:
"Temos de
reconhecer que a consciência ordinária do ser humano comum (...) é uma criatura
de desejos e não de estudo intelectual, investigação e especulação. O ser
humano vive em um mundo de sonhos antes que de fatos, e um mundo de sonhos
organizado em torno de desejos, cujos sucesso ou frustração constitui sua
própria essência." (Dewey
apud Fontana, 2007).
Seguindo
esta linha de raciocínio de Dewey é interessante comentar a comparação que se
poderia fazer entre a cultura popular ou folclore e a cultura (dita) clássica. Como
exemplo podemos comparar a cerâmica de Vitalino Pereira dos Santos,
"mestre Vitalino" (1909-1963), e a de Pablo Picasso (1881-1973). A de
mestre Vitalino, considerada popular, retrata a vida diária do sertão do
Nordeste e de suas pequenas cidades: o padre no confessionário, os retirantes,
cenas de caça, casamento, músicos, enterros, entre outros temas. A arte de
Picasso, mais intelectualizada e abstrata, mostra figuras estilizadas de
animais, rostos, cenas de touradas. A arte de mestre Vitalino é em grande parte
baseada nos costumes, nas opiniões e nos hábitos da cultura da qual é
representante. Picasso desenvolveu estilo próprio, produto de longos estudos e
prática, sem necessariamente se limitar ao universo cultural do qual procede.
A
expressão utilizada por Dewey "criatura
de desejos e não de estudo intelectual, investigação e especulação"
mostra o quanto o conceito de senso comum e seus sinônimos como
"conhecimento vulgar", "consciência ordinária" e outros,
estão eivados de platonismo; de um pensamento metafísico. A própria tradição
filosófica desde os gregos procura colocar o senso comum como um conhecimento
superficial, imperfeito e obtuso sobre o mundo. A mesma diferenciação que
muitos fazem entre a cultura popular e a (assim chamada) alta cultura. A
alegoria do Mito da Caverna, apresentado por Platão n´A República reflete muito bem essa dissociação. O senso comum é
representado pela visão dos homens acorrentados no fundo da caverna, vendo
sombras projetadas; a visão real pertence aqueles que conseguem sair da prisão
e enxergar a luz do sol e assim contemplar o mundo com mais clareza.
Esta
visão real do mundo, obtida à luz do sol - ou seja, à luz do conhecimento - foi
sempre uma característica do discurso filosófico. Desde a Antiguidade até o
período moderno, quase todos os filósofos e sua filosofias declaravam que o
verdadeiro conhecimento, além do senso comum, só seria possível através da
análise do mundo pelas lentes da filosofia. Esta tendência foi ainda foi mais
acentuada, a partir do século III e IV, quando a doutrina cristã passou a ser
incorporada ao neoplatonismo para formar a metafísica cristã.
A
filosofia moderna, a partir de Descartes (1596-1650) e de suas elaborações
intelectuais n´O Discurso sobre o método
solidifica ainda mais o antagonismo entre o conhecimento comum, o senso comum e
o conhecimento filosófico e científico. O filósofo inglês Francis Bacon
(1561-1626), um dos precursores do método científico e da epistemologia, tem
como objetivo tornar o pensamento mais claro e sistemático, eliminando ideias preconcebidas
que classificou em "ídolos"; ídolo da tribo, ídolo da caverna, ídolo
do mercado, ídolo do teatro. O filósofo e fundador dos modernos estudos de
história, Giambattista Vico (1668-1744) escreve sobre o senso comum que:
O senso comum é o juízo
sem reflexão, comumente sentido por toda uma ordem, todo um povo, toda uma
nação, ou por todo o gênero humano.
(Vico apud Cizotti, 2013).
Esta
divisão entre o senso comum e o assim chamado verdadeiro conhecimento
estende-se por toda a filosofia ocidental até praticamente os tempos atuais.
Martin Heidegger (1889-1976) se refere à situação de inautenticidade do ser
humano, quando este apoia suas opiniões e ideias naquilo que a massa anônima fala
e pensa - Heidegger utiliza o termo homem, (Mann), com o artigo neutro
"das" para realçar a falta de um sujeito definido. A opinião do
"das Mann" é o senso comum; que não chega às raízes do pensamento e
da verdadeira situação do homem, segundo o pensador alemão.
Na
história da filosofia eram exceções as escolas filosóficas que valorizavam o
senso comum. Entre estas correntes de pensamento estavam os: a) pensadores da
linha empirista inglesa, já que o empirismo enfatiza o papel da experiência
sensorial na formação de ideias; e b) os pensadores materialistas, que se antepunham
a toda a visão idealista (metafísica). Dentre estes podemos destacar Karl Marx,
que em sua em sua obra Teses sobre
Feuerbach escreve em sua Segunda Tese:
”A
questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objetiva não é uma
questão da teoria, mas uma questão prática. É na práxis que o ser humano
tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno do
seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não realidade de um pensamento
que se isola da práxis é uma questão puramente escolástica." (Marx,
1982)
A
filosofia sempre defendeu a dicotomia entre o senso comum e o verdadeiro
pensamento (que para seus cultores era evidentemente a filosofia), porque se
considerou a detentora da verdade, das opiniões e visões corretas sobre a
realidade, sobre o mundo. No entanto, a partir da crise da metafísica iniciada
por Hume e Kant, aprofundada por Nietzsche e definitivamente estabelecida pela
filosofia pós-moderna, fica cada vez mais difícil falar de um "discurso
verdadeiro" sobre a realidade, em contraposição a outros discursos
"sem reflexão" como havia escrito Vico. O próprio discurso
filosófico, segundo o pensador americano Richard Rorty (1931-2007), é um entre
vários outros discursos e não tem a vantagem ou exclusividade da verdade -
coisa que segundo Rorty não existe. A filosofia seria assim apenas um discurso
que se utiliza de ferramentas específicas, não necessárias no dia a dia do
senso comum, e tratando de temas específicos à sua área - sem que isto
signifique que seja mais verdadeiro que outros.
A
ciência do passado também dispunha de um discurso que estabelecia uma nítida
divisão entre o senso comum do cidadão e os métodos de pesquisa cientista. O
que, no entanto, efetivamente acontecia - segundo algumas interpretações - é
que o homem da rua não persegue um objetivo específico em seu contato com o
mundo, quando emite suas opiniões e vive seus costumes. Por outro lado, o
pesquisador faz sua abordagem com métodos e objetivos predefinidos e coletando
fatos vai fortalecendo sua hipótese científica, até que possa fundamentar sua
teoria.
A
questão entre o senso comum e o conhecimento filosófico ou científico pode ser
considerada um falso dilema. Em última instância a origem do pensamento
elaborado - seja a filosofia ou a ciência - está no próprio senso comum,
criador dos costumes e das opiniões, mas também dos mitos, das religiões, da
tecnologia e da moral. É a partir do contato com o mundo; da prática do dia a
dia na caça, na coleta, na agricultura ou no pastoreio - como avaliam os
empiristas e materialistas - que os humanos começaram a desenvolver sua
cultura.
Então, através da interação entre ideias existentes e a realidade concreta desenvolveu-se cada
vez mais o pensamento abstrato. Tudo, no entanto pela interação entre os organismos e o meio ambiente - como já vem acontecendo há 3,8 bilhões de anos.
Referências:
Abbagnano,
Nicola. Dicionário de filosofia - verbete senso comum. São Paulo. Editora Martins
Fontes: 2007, 1210 p.
A filosofia
do senso comum. Disponível em <http://revistavilanova.com/a-filosofia-do-senso-comum/>.
Acesso em 10/11/2013.
A filosofia
da ciência de Rubem Alves. Disponível em: <http://ciberteologia.paulinas.org.br/ciberteologia/wp-content/uploads/2009/05/01afilosofiadacienciaderubemalves.pdf>
Acesso em 8/11/2013.
Arte popular
no Brasil: Mestre Vitalino. Disponível em: <http://artepopularbrasil.blogspot.com.br/2010/11/este-blog-sera-inaugurado-com-uma.html>.
Acesso em 11/11/2013
Cerâmica de
Pablo Picasso. Disponível em: <http://www.masterworksfineart.com/inventory/picasso/ceramics?kmas=1&kmca=picasso+ceramics&kmag=picasso+ceramic&kmkw=picasso%20ceramics&kmmt=b&gclid=CNu9pYOR3boCFSdp7AodrwUAHg>.
Acesso em 11/11/2013.
Empirismo.
Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Empirismo>.
Acesso em 11/11/2013
Teses sobre
Feuerbach. Disponível em: <http://www.marxists.org/portugues/marx/1845/tesfeuer.htm>.
Acesso em 11/11/2013.
(Imagens: xilogravuras de Ernst-Ludwig Kirchner)
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