"Muito melhor contentar-se com a realidade; se ela não é brilhante como os sonhos, tem pelo menos a vantagem de existir." - Machado de Assis - A mão e a luva
Cerca de 4,5 bilhões de
pessoas em todo o planeta ainda não têm acesso ao saneamento básico. Os dados
fazem parte de um relatório recentemente publicado pela Organização Mundial de
Saúde (OMS) e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Os números
refletem a situação da maior parte dos países pobres e em desenvolvimento, nos
quais parte significativa de seus habitantes, que juntos perfazem cerca de 60%
da população mundial, ainda não dispõem de acesso regular a tratamento de água
e/ou esgoto. Mesmo com relação à água, ainda são 2,1 bilhões de pessoas - 27%
dos habitantes do planeta - que não são atendidos por suprimento de água
potável. Atualmente, ainda cerca de 600 milhões de pessoas compartilham
latrinas com estranhos e quase 900 milhões não dispõem de qualquer tipo de
instalação sanitária.
Em setembro de 2000 a
Organização das Nações Unidas (ONU) havia oficializado a Declaração dos
Objetivos do Milênio, documento assinado à época por 191 países. Concordaram
estas nações, incluindo o Brasil, em envidar esforços com o objetivo de
melhorar a situação em oito principais áreas, chamados de Objetivos do Milênio
(ODM); uma das quais - a sétima - incluindo avanços na situação do saneamento básico.
O prazo para o cumprimento das metas foi acordado para o ano de 2015.
Em relatório publicado em
2015, a ONU comunicava que de maneira geral, em quase todos as regiões em
desenvolvimento (o relatório não cita países), ocorreram avanços em todas as
sete áreas do programa; mais em algumas e menos em outras. Especificamente em
relação ao saneamento, houve um avanço na oferta de água potável, que disponível
para 76% da população mundial em 1990, chegava a 91% em 2015. Dos 191 países
que implantaram o programa, 95 conseguiram atingir metas de melhoria no saneamento
básico. No entanto, ainda havia muito por fazer na maior parte das nações. A
crise econômica, que afetou a economia mundial a partir de 2008, atingiu especialmente
os países pobres, limitando seus recursos disponíveis para investimentos em
infraestrutura, especialmente saneamento.
Por isso, ainda em 2015, a
ONU lançou um novo programa, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS).
Esta nova edição do programa anterior é composto por 17 metas, das quais a sexta
tem por objetivo assegurar saneamento básico (água e esgoto) para toda a
população mundial, até 2030.
O Brasil é um dos países com
o mais baixo nível de saneamento na América Latina. Segundo a ONG brasileira
Trata Brasil, o país ainda possui mais de 100 milhões de cidadãos (50,3% da
população) sem acesso à coleta de esgotos e somente 42,6% do volume do esgoto
coletado é tratado (dados de 2013). No mesmo ano ainda haviam 35 milhões de
pessoas sem acesso à água, fornecida por rede de abastecimento. Na média do
país, as perdas de água nas tubulações de abastecimento eram de 37%.
É surpreendente que no
início do século XXI a maior parte das regiões do planeta, excluindo os países
industrializados do hemisfério Norte, ainda apresente níveis de saneamento
assim baixo. Já em 2013 a ONU informava que existiam mais pessoas com acesso a
telefones celulares, do que a banheiros devidamente assépticos. E pensar que
haviam cidades como Mohenjo Daro, estabelecida na região do vale do rio Indo em
território do atual Paquistão, que há 4.500 anos atrás já dispunha de sistemas
de tubulações, para a coleta dos efluentes da cidade. Comparativamente, a Índia
moderna gasta cerca de 50 bilhões de dólares por ano, para tratar de doenças
originadas por águas contaminadas por esgotos.
Em todas as principais
cidades do mundo organizam-se palestras, seminários e estudos sobre as
"smart cities" (cidades inteligentes) e a influência da
"internet das coisas" (internet of things - IoT) sobre o futuro planejamento
e desenvolvimento urbano. Enquanto isso, ainda existem dezenas (ou centenas) de
milhares cidades de diversos tamanhos, que nos países pobres e em
desenvolvimento despejam seus esgotos em lagos, rios e nos oceanos, poluindo
recursos hídricos essenciais para o equilíbrio ambiental do planeta.
O Brasil é um exemplo típico
desta prática, onde o tratamento e a coleta de esgotos não fazem parte da história.
Durante o processo de colonização e até o início da industrialização, no final
do século XIX, a maior parte das cidades populosas situava-se à beira mar ou
rio (Belém, São Luiz, Recife, Salvador, Rio de Janeiro) e os esgotos eram
descarregados diretamente nas águas, sem tratamento (o que em parte ainda
ocorre atualmente). Foi com a industrialização e a movimentação de grandes
contingentes populacionais para os grandes centros urbanos, que surgiu a real
necessidade de se implantar sistemas de tratamento de esgoto. As grande obras
de saneamento só foram iniciadas durante os anos 1970, quando o governo militar
deu início a projetos de infraestrutura de grande porte, como a construção de
rodovias, hidrelétricas e estações de tratamento de esgoto. Nas cidades de
médio e pequeno porte, a implantação de estações de tratamento de água e esgoto
sempre foi dependente de recursos federais ou estaduais, através das companhias
estaduais de saneamento.
É pouco provável que diante
da situação econômica e política da maior parte dos países pobres e em
desenvolvimento, os objetivos da universalização do saneamento sejam alcançados
no prazo. A falta de recursos e planejamento, além da questão da corrupção de
parte dos governos, são os principais impedimentos para que a maior parte dos
países pobres alcance estas metas até 2030. No Brasil, onde já existe um Plano
Nacional de Saneamento Básico (Plansab) criado em 2007 e em andamento, tudo
depende da alocação de recursos e de uma gestão eficiente do programa. Segundo
dados do Banco Mundial, publicados na década passada, o país precisaria
investir cerca de 25 bilhões de reais ao ano, para atingir a meta de
universalização do saneamento até 2030. Mesmo nos melhores anos do governo Lula
com o PAC (Plano de Aceleração do Crescimento) I e II, os investimentos não
chegaram a estes patamares. Agora, tudo depende da recuperação econômica e da
capacidade de gestão de futuros governos.
(Imagens: fotografias de portas da cidade de Iguape, SP por Ricardo E. Rose)
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