O surgimento de regimes autoritários: o nazi-fascismo

sábado, 6 de outubro de 2018
"Nunca mais esquecerei aquele fumo. Nunca mais esquecerei as pequeninas caras das crianças cujos corpos eu tinha visto transformarem-se em espirais sob um azul mudo. Nunca mais esquecerei estas chamas que consumiram para sempre a minha fé."   -   Elie Wiesel   -   Noite

(publicado originalmente no site Web Artigos)

Já no final do século XIX a Guerra Franco-Prussiana (1870) havia provocado uma grande rivalidade entre a França e a então Alemanha (unificada em 1870). A derrota que a Alemanha impôs à França fui extremamente humilhante, com as tropas prussianas bombardeando Paris. Depois desta guerra, as principais correntes políticas e a intelectualidade passaram a manifestar-se abertamente contra a Alemanha. No livro O séculos dos intelectuais, escreve Michel Winock:

Léon Bloy (intelectual católico), cujo "Journal" é entremeado das atrocidades – reais ou imaginárias – cometidas pelos alemães no território francês, escreve ao amigo Philippe Raoux, em 20 de dezembro de 1914; seu sentimento é o de muitos intelectuais, na época:
“A verdade, a evidência que salta aos olhos, é que a Alemanha, em todos os estágios, é uma abominável canalha odienta e invejosa, que nunca perdoará nossa superioridade milenar, e sabe muito bem, apesar de sua “Kultur” de pedantes e escravos, e percebe, com raiva, que não tem outra razão de existir, outro meio de subsistência real a não ser nossas migalhas, nem outra função a não ser a de lavar nossos urinóis” (Winock, 2000, p. 177-178).

O texto acima dá um quadro aproximado de como a França – seus formadores de opinião, a intelectualidade – se sentia em relação à Alemanha às vésperas da 1ª Guerra Mundial. Associado a outros fatores, era quase inevitável que ocorresse um embate entre as duas nações, mesmo que os motivos estivessem em outro lugar. O estopim foi o assassinato do arquiduque Francisco Fernando, futuro imperador austro-húngaro, em 28 de junho de 1914. A Áustria então declara guerra à Sérvia. A Rússia, grande aliada da Sérvia e da França declara guerra à Áustria, imediatamente seguida pela aliada da Áustria, a Prússia, que declara guerra à ambas, seguida pela entrada da Inglaterra, do lado russo e francês. Para resumir, o conflito causou um total de 11 milhões de mortos e destruição, representando o fim de um período de quase 100 anos de paz na Europa.

É exatamente nas negociações de paz que muitos especialistas localizam algumas das origens do movimento nazista. Pelas disposições do tratado de Versalhes (1919) a Alemanha perderia parte de seu território, teria que pagar reparações de guerra e sofreria uma série de sanções. Por força de disposições dos aliados, a Alemanha ficaria despojada de um sexto das suas terras aráveis, dois quintos do seu carvão, dois terços do seu ferro, e outros minerais. Perderia extensos territórios no Leste e ficaria obrigada de entregar à Inglaterra, França e Bélgica praticamente todos os seus navios mercantes ainda em operação, gado, materiais de construção e máquinas. A Alemanha foi considerada o único culpado pela 1ª Grande Guerra. O total de perdas e danos sofridos pelos governos da Tríplice Entente (Inglaterra, França e Rússia) era de aproximadamente 10 bilhões de dólares à época; valor estabelecido pelo tratado de Versalhes. No entanto, a Comissão de Reparação estabeleceu em 1921 a soma de 33 bilhões. O então presidente Wilson, dos Estados Unidos, era contra o grande peso das sanções contra a Alemanha. No entanto, foi voz vencida, frente ao negociador francês (Clemenceau) e inglês (Lloyd George). Escreve o historiador Edward McNall Burns que
“os franceses, em particular, faziam questão de arruinar a Alemanha de modo tão completo que esta nunca mais pudesse recuperar o seu poderio econômico e militar.” (McNall Burns, 1971, p. 866).


Tanto na Alemanha, como na Itália o final da guerra trouxe períodos de penúria e humilhação para o povo. A Itália acabou não recebendo uma série de benefícios que lhe foram prometidos ainda no final da guerra pelos ingleses e franceses. Apesar de ter recebido a maior parte dos territórios austríacos que almejava, a Itália não foi chamada para a partilha dos territórios que pertenciam à Alemanha na África. Além disso, vigorava na Itália, desde antes da 1ª Guerra Mundial, uma forte oposição ao governo, tido como inepto, corrupto e covarde. O pós-guerra na Itália foi também um período de profunda crise econômica, gerada pela alta inflação e o desemprego. Por outro lado, ocorria uma organização cada vez maior dos operários e desempregados, apoiados pelos partidos de esquerda; estes fortemente influenciados pela Revolução Russa, ocorrida em 1917 e com sua ideologia em franca expansão por toda a Europa. 

Líder do movimento fascista – uma tendência radical de direita – desde 1917, Mussolini começou sua carreira como jornalista socialista ainda antes do conflito. Tomou o poder na Itália em 1922, através de um levante que comandou em Roma, e foi convidado a fazer parte do governo pelo rei Vitor Manuel II. Já a essa época, ainda segundo McNall Burns “[...] em muitas regiões da Itália os filhos de ricos industriais e proprietários rurais eram demasiado conhecidos como discípulos de Mussolini”.

Uma vez com maioria no parlamento, o primeiro-ministro Mussolini gradualmente introduziu uma série de medidas autoritárias, que aos poucos eliminaram todo tipo de oposição. Ao mesmo tempo, levado por um idealismo romântico (“o espírito fascista é vontade, não intelecto”, dizia o ditador) que transmitia às massas, Mussolini conseguiu aumentar cada vez mais o apoio ao seu regime. Por outro lado, é preciso reconhecer que o governo fascista conseguiu melhorar as condições econômicas do país, desenvolvendo a agricultura, modernizando a indústria, aumentando a geração de energia e reduzindo drasticamente a taxa de analfabetismo. O lado negro desta história é que a Itália precisou comprar esta estabilidade pagando com a liberdade individual, a liberdade política, a paz (a Itália começava a se envolver em conflitos na Etiópia, na Espanha e mais tarde como aliada da Alemanha), e com o dirigismo cultural, além de vários outros problemas relacionados a qualquer ditadura.

Na Alemanha a situação foi – coincidentemente – bastante semelhante. Após a derrota na 1ª Guerra Mundial, o país entra em um período de reestruturação política e econômica (a república de Weimar com seus planos econômicos). Fundam-se partidos de esquerda e o movimento operário tem forte influência da Revolução Russa – liderado pelos ativistas Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht. O próprio Lênin, em uma de suas declarações logo após a Revolução, dizia que a Alemanha seria o estopim para uma revolução socialista em toda a Europa. Por outro lado, havia uma imensa população que não tinha qualquer interesse em política e queria apenas voltar a ter um trabalho regular e poder sustentar sua família. A inflação altíssima castigava a maior parte da população (os maiores sacrificados com a inflação são sempre os desempregados e assalariados). Acima destes grupos sociais pairava uma alta burguesia industrial, comercial e financeira, que queria voltar o mais rapidamente à normalidade dos negócios e temia que um governo socialista tomasse o poder.

Quando a situação social e econômica parecia melhorar, a crise de 1929 (a quebra da bolsa de Nova York) afundou a Alemanha em uma crise mais profunda ainda. Aliado a toda esta situação vigorava o grande ressentimento contra os antigos inimigos de guerra – principalmente a França – o que mantinha um clima de humilhação e revolta no país.


Foi nesse ambiente social que surge um ex-pintor fracassado, ex-cabo ferido na 1ª Guerra; um austríaco chamado Adolf Hitler. Apoiado por grupos conservadores da Baviera recebe a cidadania alemã e tenta um golpe em 1922 (ano em que Mussolini toma o poder), chamado de “O levante da cervejaria” (foi planejado em uma cervejaria). Todavia, sem apoio popular, Hitler acaba preso. Na prisão destila todo o seu ressentimento, como indivíduo e como alemão, contra a situação vivida pela Alemanha; em crise constante e humilhada. Em seu “Mein Kampf” (Minha luta) Hitler elege o principal alvo para todas as desgraças por que passava a Alemanha: os judeus.

Livre da prisão por seus aliados, Hitler funda o Partido Nacional Socialista Trabalhista Alemão (NSDAP – Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei). O partido é formado em sua base por operários com tradição anticomunista, pequeno-burgueses, membros da igreja protestante, alguns intelectuais e recebe apoio financeiro de grupos econômicos interessados em barrar o avanço dos grupos e partidos socialistas. Assim como Mussolini, através de eleições Hitler ascende ao posto de chanceler (primeiro-ministro), graças ao apoio de grupos conservadores. Uma vez no posto máximo, coloca a máquina partidária e grupos paramilitares (os SA) no encalço do pessoas e grupos de oposição. Fecha a imprensa de oposição e implanta as primeiras medidas contra todos os judeus alemães.

O fim desta história é mais do que conhecido. Depois de decorrido tanto tempo, no entanto, é possível tirar algumas conclusões – bastante gerais – da razão do desenvolvimento do nazi-fascismo. Aqui vamos elencar algumas razões, muitas delas já bastante conhecidas, outras nem tanto:

a) As causas econômicas
Tanto a Alemanha como a Itália, ambas lutando de lados opostos na 1ª Guerra Mundial, foram profundamente abaladas pelo conflito. A Itália não recebeu grandes benefícios, mesmo tendo lutado do lado vencedor, o que manteve a economia do país em estagnação, com grande número de desempregados e alta inflação.

A Alemanha enfrentou uma situação muito pior. Teve que ceder territórios, equipamentos e minérios, além de grande parte de seus superávits econômicos serem usados para as impagáveis dívidas de guerra. O grande economista inglês John Maynard Keynes era contrário a submeter a Alemanha a tal sacrifício, prevendo que no futuro seu povo se vingaria – o que efetivamente veio a acontecer. A inflação na Alemanha no início da década de 1920 alcançava a casa de dezenas de milhares porcentos ao ano (em 1923 a inflação alcançou 32.400%). Inflação, desemprego, fome, foram fatos que acompanharam a população alemã por grande parte da década de 1920. Quando parecia que aos poucos a situação iria melhorar, a quebra da bolsa de New York provocou também uma onda de falências nos bancos alemães, afetando toda a economia mais uma vez.

b) causas políticas
A Alemanha e a Itália foram países com uma forte tradição de organização operária. Grupos e partidos anarquistas e depois socialistas e comunistas eram bastante presentes na política das duas nações.

Enquanto antes da 2ª Guerra a Itália era um país agrário, dominado pelas oligarquias latifundiárias, a Alemanha já era uma país industrializado, onde existiam grande grupos que dominavam vários segmentos da economia (Siemens, Krupp, Porsche, Solingen, Deutsche Bank, BASF, entre outras). Tais grupos dominantes, tanto na Alemanha quanto na Itália, tinham grande influência política junto ao respectivo imperador (Alemanha) e rei (Itália) e não queriam perdê-la depois da primeira guerra. Por isso, se aliaram naturalmente aos grupos políticos que não colocariam em perigo seus interesses, ou seja, os nazistas e os fascistas. Foram este grupos que – apoiados nas massas doutrinadas – por trás dos bastidores apoiaram financeiramente e abriram o caminho dos dois ditadores rumo ao poder.

c) causas sociais
Na Itália vigorava um sentimento de oposição aos políticos em geral; ao parlamento e ao rei Vitor Manuel II. A situação econômica permanecia imutável e não se apresentavam novas perspectivas para o cidadão, pelo menos no médio e curto prazo. O desemprego e as constantes necessidades materiais poderiam fazer com que um líder carismático, dinâmico e empreendedor cativasse mentes e corações.

O mesmo ocorria na Alemanha, onde a situação ainda era pior. As próprias expectativas da população eram ainda maiores, já que o nível educacional e cultural do país era o mais alto da Europa à época. Vivia-se os extremos: uma elite intelectual produzia nas universidade e institutos de pesquisa o que de melhor se fazia no mundo em termos de física, química, história, sociologia, psicologia, filosofia, literatura e música; por outro lado havia milhões de trabalhadores desempregados, famílias desestruturadas, aumentava a criminalidade e todo tipo de atividade ilegal. Tal situação não agradava às elites econômicas, que com um líder forte e carismático pretendiam acertar a situação do país.

Outro aspecto social era o extremo anti-semitismo de Hitler, de todos os integrantes do partido e de parte reduzida da população. A eliminação gradual das liberdades dos judeus, a perseguição, o encarceramento e, finalmente, o assassinato de milhões de pessoas, também foi uma componente do nazismo, já presente nos escritos de seus idealizadores – Hitler, Rosemberg e outros. O anti-semitismo era um elemento que fazia parte da cultural de toda a Europa e  aflorava com violência de tempos em tempos, desde aproximadamente o século X. No entanto, Hitler transformou os judeus em bodes expiatórios e culpados por grande parte dos males que afetavam os alemães não-judeus (ironicamente, os mesmos males que também afetavam os alemães judeus).

Cabe ainda assinalar o forte sentimento de humilhação e opressão que a população sentia em relação ao “castigo de Versalhes”. A falta de terra arável e minérios deu origem ao movimento “Blut und Boden” (sangue e solo), que visava ampliar o espaço vital a ser ocupado pelo povo alemão.

Baseados em diversos fatos históricos interligados, somo capazes de tecer certas explicações sobre o nascimento do nazi-fascismo na Europa de antes da 2ª Guerra Mundial. Quanto mais soubermos e pesquisarmos, mais aspectos ajuntaremos – mais peças do mosaico – e nosso quadro deste período da história humana se tornará mais nítido. No entanto, precisamos ter em mente que são conhecimentos parciais e que mantêm ainda muitas perguntas sem resposta. Como foi possível este imenso morticínio, tanta crueldade, tanta dor e desespero, e tudo por nada? Pois, que grande proveito trouxe à humanidade esta guerra? Aprendizado? À custa de milhões de vidas de inocentes judeus e não-judeus?

Na avaliação de muitos historiadores e filósofos, foi todo o contexto do nazi-fascismo, da 2ª Grande Guerra e suas consequência posteriores (Guerra Fria, globalização, etc.), que definitivamente contribuíram para unificar o relato da história da humanidade. O evento teve influência em todas as regiões do globo. A partir daquele ponto da história não era mais possível ficar à parte da cadeia de acontecimentos que ocorriam concomitantemente em todo o planeta.

A diferença entre esta interpretação da história e aquela vigente desde a Antiguidade, é que dados os fatos que ocorreram, dada a amplidão da tragédia, percebeu-se que a história humana não poderia ter qualquer sentido fora dela, ou seja, a história é feita pelos homens em suas ações, não sendo dirigida por qualquer entidade sobre-humana ou princípio, para um determinado objetivo. A história é humana e só isso. 

Bibliografia:

BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental – Vol II. Porto Alegre. Editora Globo: 1971, 1052 p.
LUKACS, John. O fim de uma era. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor: 2005, 216 p.
WINOCK, Michel. O século dos intelectuais. Rio de Janeiro. BCD União de Editores: 2000, 900 p.

(Imagens: pinturas de A. Y. Jackson)

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