"Não está nos planos deste estudo tomar posição quanto ao valor de verdade das doutrinas religiosas. Basta que as tenhamos reconhecido em sua natureza psicológica como ilusões." - Sigmund Freud - O futuro de uma ilusão
Sempre
parece fácil analisar a história e apontar-lhe os aspectos que nos interessam.
Os fatos já ocorreram, estão registrados, e nós os juntamos, associamos,
tentando justificar, provar ou refutar algo. Assim a história se torna um vasto
campo de idéias, formadas por fatos, matéria prima para que possamos construir
nossa teoria sobre o que ocorreu e o significado que damos a isso.
A
contradição ocorre quando uma afirmação é falsa e a outra verdadeira. Todavia,
fatos são fatos, e o que os torna verdadeiros ou falsos é a sua interpretação –
e aí também se incluem os fatos históricos. A contradição não está, portanto,
na história, naquilo que ocorreu – exatamente porque aconteceu – mas na nossa
maneira de usar as palavras.
O
século XX foi aquele no qual se deram os maiores desenvolvimentos científicos de toda a história humana. Basta pensar na invenção do avião, na descoberta dos
antibióticos, o chip, o foguete e a moderna biotecnologia. Por um lado, o
avanço científico e tecnológico foi imenso, em comparação com períodos
anteriores da história. Por outro, o ser humano continua a ser o mesmo em seus
impulsos básicos – seja a cobiça, o orgulho, e a raiva; ou a compaixão, o
respeito e a solidariedade.
Foi
por influências dos filósofos iluministas e seu entusiasmo pelo desenvolvimento
das ciências e da humanidade que surgiu a ideologia do progresso. D`Alembert,
Condillac, Voltaire, Diderot e muitos outros, acreditavam que a expansão do
conhecimento – educação e cultura – junto com o desenvolvimento científico,
conduziriam a humanidade para um futuro de menos obscurantismo e fanatismo
religioso (ou político) e mais tolerância. O século XVIII trazia grandes
promessas à humanidade: a independência dos Estados Unidos e todos os ideais de
igualdade a ela relacionados; a Revolução Francesa, com a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão; e o início do capitalismo, só para citar os
principais aspectos. Para grande parte da intelectualidade do início do século
XIX, estaríamos em processo de constante desenvolvimento, a caminho da
perfeição (de acordo com as teorias de Hegel). No decorrer do século XIX
ocorrem maiores desenvolvimentos nas ciências (química, física, matemática,
biologia) e, cada vez mais, tudo parecia estar caminhando em direção ao
progresso constante.
E
é esta a visão ingênua que ainda em parte temos hoje, apesar de tudo que se
passou no século XX. Freud, escrevendo ainda antes da 1ª Guerra Mundial e
depois dela, chamava nossa atenção para a agressividade inerente no homem,
apesar de todos os vernizes culturais. Em O
Mal Estar na Civilização Freud teoriza que a sociedade só é possível,
porque o homem abre mão de impulsos e desejos que gostaria de realizar, mas
vivendo em sociedade não pode. Assim, para que a sociedade humana pudesse persistir,
os indivíduos foram obrigados a reprimir parte de suas pulsões, o que por outro
lado trouxe descontentamento e, por vezes, agressividade. De certo modo,
enveredando por outros caminhos, Freud chegara às mesmas conclusões que o
filósofo inglês do século XVII, Thomas Hobbes. Por baixo da aparente civilidade
e cultura, o homem ainda é o lobo do homem. Treblinla, Dachau, os diversos
gulags, Ivo Jima, Dresden, Hiroshima, A Grande Marcha, Mi Lai, Pol Pot, e
muitos outros nomes lembram que os filósofos iluministas e os entusiastas do
progresso no século XIX fizeram interpretações limitadas na história.
Sendo
assim, temos os “aspectos contraditórios” ao qual se refere o texto. A Alemanha
como o país educacional e culturalmente mais desenvolvido no início do século
XX, mas ao mesmo tempo fechando os olhos à perseguição de seus vizinhos e
amigos, só porque eram judeus. A pesquisa da energia nuclear, com grande
potencial de aplicação energética e médica, recebendo imensos volumes de
investimento (Projeto Manhattan, nos EUA) para construir uma bomba com poder
destrutivo como nunca houve igual.
Regimes
políticos que prometiam liberdade, prosperidade e paz para os povos,
transformaram-se em organizações criminosas, perseguindo, encarcerando e matando
milhões de pessoas em nome de ideais – práticas que seriam consideradas puro fanatismo
por Voltaire ou Diderot, se estes pudessem presenciá-los – como a causa da
pátria e da raça, a causa do operariado e do socialismo, a causa da Revolução,
e outros delírios.
Por
outro lado, depois da guerra surgiu um tipo de capitalismo novo, mais dinâmico.
Espalhado por todo o globo, extrai de todos os rincões sua matéria prima e mão
de obra barata, para ganhar bilhões de dólares com especulação. O constante
aumento dos níveis de produção – para vender mais – demandam cada vez mais
matéria prima (recursos naturais transformados) e geram imensos volumes de
resíduos: poluição do ar, do solo e das águas.
A
produção de alimentos, apesar de ser suficiente para alimentar toda a humanidade,
é objeto de especulação e altos lucros. Países com pouca produção agrícola,
como todos os países do Oriente Médio, sofrem a cada vez que aumenta o preço de
certos produtos agrícolas, por força da especulação de grandes grupos econômicos.
Se
tivesse que resumir as “contradições” do século XX usaria uma frase do filósofo
Blaise Pascal (1623-1662):
“Quando, às vezes, me
pus a considerar as diversas agitações dos homens, e os perigos e os castigos a
que eles se expõem, na corte, na guerra, originando tantas contendas, tantas
paixões, tantos cometimentos audazes, e muitas vezes funestos, descobri que
toda a infelicidade dos homens vem de uma só coisa, que é não saberem ficar
quietos dentro de um quarto. O homem que tem suficientes bens para viver, se
soubesse ficar em casa com prazer, não sairia dela para ir ao mar ou ao cerco
de uma praça. Não se pagaria tão caro um posto no exército, se não se achasse
insuportável não sair da cidade; e só se procuram as conversas e os passatempos
dos jogos porque não se sabe ficar em casa com prazer.” (Pascal, 1973, p. 75)
Bibliografia:
PASCAL,
Blaise. Pensamentos. São Paulo. Abril
Cultura: 1973, 280 p.
(Imagens: pinturas de Joseph Beuys)
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