"A página branca indicará o discurso
Ou a supressão do discurso?"
Murilo Mendes - Antologia poética
(publicado
originalmente na coletânea “Rosa do abismo” da Academia Peruibense de Letras)
Ela
vivia sozinha numa casa de madeira, sem pintura, no final de um caminho de
areia grossa e amarelada, ladeado pelos enferrujados postes do telégrafo, onde
mais tarde seria o início da avenida Anchieta. O terreno, sem cerca, era tomado
por goiabeiras, cajueiros, chapéus de sol, e compartilhado por galinhas, alguns
gatos e três cachorros. De lá, caminhava-se uns quinze minutos para chegar ao
centro da vila de Peruíbe.
Mesmo
afastada do convívio da vila, dona Nena era conhecida no núcleo de ruas em
torno da praça e da pequena igreja. Na modesta vila de pescadores,
relativamente isolada, com pouca comunicação com os grandes centros, a velha
senhora despertava curiosidade e um certo temor.
Ninguém
conhecia as origens de dona Nena. Os antigos lembravam que quando eram jovens ela
já tinha certa idade, e sempre vivera ali naquela casa isolada, perto da praia
e junto ao rio Preto. Gentil mas reservada, a velha não tinha amigos e pouco
falava com as pessoas.
Participava
da missa nas manhãs de domingo, mas, quieta e pensativa, voltava para casa logo
após a bênção final. Havia, mas ninguém sabia exatamente o quê, algo de
misterioso nessa senhora.
Entre
os peruibenses de então, principalmente os mais velhos, circulavam muitas
histórias sobre ela. O velho Vital, pescador aposentado, comentava que conhecia
“a velha Nena” desde a infância, e que nunca a havia visto de aparência mais
jovem. Tinha certeza, dizia, que a velha seria uma bruxa e, ali em Peruíbe,
teria descoberto uma erva que lhe adiava a morte. A vizinha de Vital, dona
Mocinha, cujos antepassados eram caiçaras e guaranis que sempre haviam vivido
na região, dizia que a velha seria uma feiticeira; que devia ter algum pacto
com a morte e com o mundo do além.
De
fato, o comportamento de dona Nena causava muita estranheza entre aquelas
pessoas simples. Nos dias frios e úmidos de outono, quando a forte garoa e o
vento sudeste mantinham todos em casa à volta dos fogões à lenha, a velha
senhora havia sido vista diversas vezes, coberta por grosso casaco, caminhando
na praia gesticulando e como que conversando com alguém. A mesma cena foi
testemunhada em três outras ocasiões, exatamente às vésperas dos naufrágios de
pequenos barcos de pesca, nos quais morrem pescadores da vila. Houve até quem
dissesse ter observado, ao anoitecer, escondido na alta vegetação que existia
perto da praia, dona Nena falando com dois vultos, que depois de abraçarem a
velha, caminharam em direção às ondas e desapareceram no mar.
Certo
dia, assim disseram os moradores, dona Nena desapareceu da cidade, junto com
seus animais. Sobrou apenas a casa vazia, que foi se degradando até por fim ser
demolida. Das árvores, uma ou outra ainda continua ali até hoje. Dizem as más
línguas que a velha tivera uma visão de como a cidade se transformaria, e que
por isso teria resolvido ir para outras paragens.
Num
desses dias de garoa e vento, passando pela praia ao anoitecer, tive a
impressão de ter visto o vulto recurvado de uma velha, caminhando para a água e
por fim desaparecer no mar. Mas acho que foi só impressão.
(Imagens: pinturas de Andrew Whyte)
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