"Por que este riso, por que esta alegria, quando tudo ao redor está ardendo? Envoltos pela trevas, uma luz não buscareis?" - Dhammapada
(publicado originalmente no site Web Artigos)
Quem
é que não se emociona, ou pelo menos fica admirado com uma bela paisagem
natural? O pôr do sol em uma tarde de outono, o céu estrelado à noite ou cheio
de nuvens, à beira mar. Montanhas cobertas por florestas em meio à neblina, a
imensidão de um deserto, um lago congelado... A natureza, não importa a paisagem,
desde que inusitada, atrai nossa atenção e admiração; espanto e arrebatamento.
Desperta em nós um misto de emoções influenciadas por nosso condicionamento
cultural e lembranças individuais.
Interessante
observar como nosso modo de perceber uma paisagem é bastante influenciado pelas
experiências que tivemos ao longo de nossa vida. No entanto, este aspecto quase
não é mais percebido em nossa civilização do século XXI, na qual a fotografia e
o cinema, a TV e a internet tornaram comuns para qualquer pessoa – mesmo para
aquela que nunca tenha saído de sua pequena cidade do interior – as paisagens
mais distantes e diferentes. Todavia, há relatos sobre nativos africanos, que
levados pelos europeus para montanhas, não sabiam num primeiro instante como
interpretar a perspectiva inédita através da qual estavam enxergando a paisagem
abaixo, que sempre havia habitado. O mesmo ocorre ainda modernamente – apesar da
quantidade de informações de que dispomos –, quando alguém embarca em avião
pela primeira vez e observa a paisagem de cima.
Pelo
que se sabe até hoje, somos a única espécie de animal que tem esta capacidade
de contemplar paisagens ou fenômenos naturais, de lhes dedicar atenção e sentir
outras emoções, além do medo. Várias espécies de mamíferos, aves e até répteis
temem os clarões dos raios e o ribombar dos trovões, a beira dos precipícios ou
a escuridão, por causa de seu instinto de preservação. O animal percebe em seu
íntimo que aquela situação está ligada ao perigo.
O
sentimento de espanto ou estranheza perante uma paisagem, cena ou fenômeno
natural incomum, deve ter contribuído para despertar em nossa espécie os sentimentos
que levaram nossos antepassados longínquos a iniciar as primeiras práticas de
adoração, de reconhecimento de forças ou entidades mais poderosas. Poderiam ter
intuído que por trás de tais paisagens ou fenômenos haveriam entidades, que
premeditadamente as criaram ou os provocaram.
Voltemos
agora ao ser humano do século XXI, vivendo e atuando em uma civilização
mundial, contando com ininterrupto fluxo de informações e dados sobre os mais
diversos assuntos e interesses. Um universo cultural e tecnológico baseado na
ciência, cujas origens remontam à Idade Moderna; período a partir do qual se
impôs uma visão antropocêntrica do universo e da história.
Foi
preciso um demorado desenvolvimento da ciência e cultura, notadamente na
física, na psicologia, na biologia e na filosofia – além de uma série de outras
disciplinas a elas relacionadas – para que a visão antropocêntrica do universo,
da história e do ser humano fosse colocada em questão. Avanços em diversas
áreas como a física quântica, a neurologia e a epistemologia colocam em
discussão, sob diversos aspectos, o antropocentrismo sobre o qual se baseou,
para o bem ou para o mal, todo o desenvolvimento cultural da sociedade
ocidental desde o século XV. O salto na cultura, que para a maior parte das
pessoas ainda é imperceptível, talvez seja equivalente àquele que ocorreu no
início do período do Renascimento (século XIV), quando o foco principal da
cultura passou do teocentrismo para o antropocentrismo.
Os
principais aspectos que colocam em discussão a visão antropocêntrica baseiam-se
em alguns pontos que, sem conhecimento aprofundado nas ciências envolvidas,
tento resumir da seguinte maneira:
- O princípio da incerteza da física quântica,
enunciado pelo físico Werner Heisenberg (1901-1976) afirma, colocado de maneira
bastante simples, que a partir do momento em que tentamos observar uma
subpartícula, não conseguiremos mais determinar sua posição ou velocidade. A
descoberta não afetou somente a física quântica, e mostra como, a partir de um
certo nível – o nível subatômico – nossas certezas desaparecem e os fatos
transforma-se em suposições. Baseados nesta teoria alteram-se nossas visões do
mundo e dos fenômenos. Isto quer dizer que na escala humana os fatos e
fenômenos são o que parecem ser, mas em escala quântica são possibilidades. As
implicações filosóficas são evidentes e não podem passar despercebidas;
-
Ainda com relação às ciências, é atualmente bastante consistente a visão de que
as teorias científicas não são explicações da natureza e dos fenômenos. São
muito mais maneiras de interpretar ambos, natureza e fenômenos particulares,
baseadas em determinadas informações e experiências disponíveis num determinado
momento histórico. A lei da gravitação universal de Isaac Newton (1643-1727), explicou
e ainda explica determinados fenômenos em certo nível e ainda se aplica muito
bem às situações comuns, seja na engenharia ou na física básica. Já para a
astronáutica, astronomia, a cosmologia e até as modernas aplicações
tecnológicas, a lei da gravitação é suplantada pela teoria da relatividade
geral, de Albert Einstein (1879-1955). Esta teoria física atende a todas as
necessidades da ciência atual, mas não permanecerá para sempre. O físico e
filósofo da ciência Thomas Kuhn (1922-1996) escreveu em seu A estrutura das revoluções científicas que
a ciência tem “paradigmas”; teorias que explicam determinados fatos em
determinadas épocas, que são substituídos por outros paradigmas em períodos
sequentes;
- A
psicologia, que como ciência independente da filosofia teve início na segunda
metade do século XIX, alcançou grande desenvolvimento com as teorias de Freud –
ao estabelecer o conceito de inconsciente – e demais psicólogos que a partir do
século XX conduziram pesquisas de laboratório, descobrindo diversos aspectos do
funcionamento da mente. A partir dos anos 1980, juntou-se a este esforço a
neurologia, ramo da medicina que estuda o cérebro e o sistema nervoso, que vem
dando importantíssimas contribuições ao conhecimento deste órgão. Estas
pesquisas revolucionaram a visão atual sobre o que é a mente e como funciona; a
interação mente/cérebro; a maneira como percebemos o mundo, a questão do livre
arbítrio, etc.;
- A
filosofia deixou de ser “a mais importante das ciência” para ser uma ciência
entre outras, com determinados objetos de estudo, adotando técnicas
específicas. Não deixa de chamar a atenção de que os estudos filosóficos
atuais, ainda que se baseando em uma tradição própria milenar, têm na ciência
um grande aliado e quase que um parâmetro para muitas de suas conclusões. Tendo
o ser humano como sua principal meta em seus estudos, a filosofia moderna
abandonou em grande parte os conceitos metafísicos com os quais trabalhava no
passado; a transcendência foi substituída pela imanência.
As
grandes teorias que dedutivamente tentavam explicar toda a realidade humana e
universal estão ultrapassadas. Pelo desenvolvimento da própria filosofia, pela
experiência da história e pelos exemplos da ciência, a maior parte dos
filósofos atuais entende que não é mais possível desenvolver sistemas que
tentem abarcar toda a realidade. Não há mais “verdades eternas” ou “princípios”
a serem descobertos ou explicados – e muito menos implantados, como no caso
comunismo. A filosofia, assim como a ciência, concluiu que a realidade natural
e humana é complexa e que não pode ser abarcada por teorias abrangentes, com
pretensão de serem universais.
Conclui-se,
apenas ressaltando estes três ramos do conhecimento atual, de que civilização
ocidental; a cultura ocidental que foi gestada no continente europeu e que ao
longo da história recebeu influências da África e da Ásia, navega por um amplo
mar, do qual não enxerga mais os limites. Chegamos a um ponto no qual já
acumulamos muito conhecimento sobre o mundo e sobre nós e, paradoxalmente,
descobrimos que tudo o que sabemos não é definitivo e não é exato; são
conhecimentos mudarão ao longo do tempo, além de nunca representarem “o que é”,
sendo apenas uma interpretação. Isto nos possibilita saber: a) que o que
sabemos ainda é muito pouco em relação ao que sabemos que não sabemos; e b) o
que sabemos é quase nada em relação ao que nem sabemos que não sabemos.
No
entanto, mesmo aquilo que pensamos saber, o que pensamos não saber e o que nem
pensamos não saber, é apenas conhecimento humano; produto das elucubrações de
uma espécie animal específica, surgida há cerca de 150 mil anos, em um dos
bilhões de sistemas solares existentes em uma galáxia de porte médio, dentre as
bilhões de outras galáxias existentes no universo; este talvez contemporâneo de
bilhões ou trilhões de outros.
No
passado acreditávamos que o universo e a vida humana haviam sido explicados pela
crença. Mais tarde pensamos que ambos, universo e vida humana, quase estavam
sendo explicados pela ciência. Hoje sabemos que crença e ciência são constructos, elaborações de nossas
mentes – das quais também pouco conhecemos – tentando explicar “algo”, o mundo,
que nem apreendemos efetivamente. O universo físico e o universo mental; os
dois únicos possíveis para nós, e nos quais existimos por um curto período, são
muito, mas muito mais complexos do que (vagamente) pensamos.
(Imagens: pinturas kalamkari indianas)
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