Mudanças climáticas e ciência

sábado, 5 de outubro de 2019
"A morte é a união da alma e do corpo, dos quais a consciência, o estado de alerta e o sofrimento são a desunião."   -   Ambroise-Paul-Toussait-Jules Valéry   -   Tal e Qual II


A ciência é uma forma de entendermos e interpretarmos a realidade baseados em fatos, pensamento racional e experiências. A principal ferramenta utilizada pela ciência na elaboração de teorias, desde seus primórdios no século XVII, foi a matemática – que até hoje ainda é o principal instrumento na construção de teorias que expliquem o mundo.

Esta maneira peculiar de explicar o meio que nos cerca, a ciência, foi um invento (uma descoberta?) da civilização ocidental europeia nos séculos XVI-XVII. Não que povos de outras épocas não tivessem atividades que hoje poderíamos chamar de ciências. Os antigos egípcios e sumérios foram precursores na astronomia, no invenção da agrimensura e no desenvolvimento da matemática. Indianos e maias desenvolveram, mais ou menos na mesma época (século II EC) de forma independente, o conceito do número zero. Gregos do período helênico (século III AEC) criaram diversas máquinas utilizando a força mecânica gerada pelo vapor.

Mas foi somente a civilização europeia quem desenvolveu uma maneira peculiar de observar e estudar a realidade, de forma metódica, racional e consequente. Este novo método, que em pouco tempo traria muitos frutos – seja na explicação da realidade ou no desenvolvimento de tecnologias – passou a ser chamado de método científico. Surge assim a ciência e seus cultores, os cientistas.


De início, os cientistas não foram muito populares. Poucos conseguiam entender o que faziam e o que diziam. Muitos dos que compreendiam este novo método não gostavam do que ouviam, já que negava ou tornava obsoletos conhecimentos milenares. Copérnico, Servet, Cardano, Kepler, Bruno, Galileu, foram perseguidos por suas ideias científicas, que não coadunavam com crenças religiosas e estratégias políticas de suas épocas.

A partir do Iluminismo (século XVIII) a ciência passou a ser olhada de uma nova maneira. No plano das ideias a religião havia perdido parte de sua influência, ao passo que reis e comerciantes passaram a enxergar as vantagens – poder e lucro – que as invenções tecnológicas começavam a trazer. Com o advento da industrialização no século XIX, a ciência impulsiona o desenvolvimento material de uma civilização que com suas máquinas domina a natureza cada vez mais, extraindo materiais, produzindo mercadorias e gerando riquezas – para poucos. Ciência é progresso e os cientistas são festejados como os sacerdotes da nova crença da sociedade industrial.

No século XX e o desenvolvimento da ciência e de sua filha dileta, a tecnologia, acelerou mais ainda. O sistema produtivo industrial domina a Terra, valendo-se de uma infinidade de tecnologias destinadas a fabricar produtos de consumo, consumindo grandes volumes de recursos naturais.

No percurso rumo ao progresso e à produção sem limites os cientistas identificam um problema: o uso indiscriminado da natureza está colocando em risco a vida no planeta, poluindo e aquecendo a atmosfera. Surge um impasse entre a ciência e setores do sistema produtivo, alguns dos quais colocam em dúvida a teoria do aquecimento global. Isso faz com que governos e instituições sejam influenciados por argumentos negacionistas, baseados em ideologias, crenças e interesses econômicos. Assim, a negação da crise climática mostra que mesmo no cientificamente avançado século XXI interesses econômicos e estranhas ideologias se sobrepõem às teorias científicas. As consequências desse engano serão conhecidas nas próximas décadas.  

Escreve o físico e professor Marcelo Gleiser em seu livro O caldeirão azul: 

Não vivemos no século XVII, mas seria inocente - especialmente dada a atitude do governo atual - achar que a ciência e sua credibilidade não estão sendo atacadas. Vemos isso todos os dias, quando muitos políticos e amadores criticam, sem a menor autoridade ou conhecimento, as conclusões de milhares de cientistas, em assuntos que vão da validade das vacinas do aquecimento global. Não acredito que tenhamos um único cientista no Congresso ou no Senado Federal. Nos EUA, a situação não é muito diferente. (Gleiser, 2019) 

E, mais adiante Gleiser completa:

É paradoxal e trágico que isto esteja ocorrendo em pleno século XXI, quando dependemos tão diretamente das tecnologias resultantes da aplicação da pesquisa em ciência básica. O vídeo SOS Ciência, produzido por cientistas brasileiros, é extremamente importante e deveria ser visto por todos (https://www.youtube.com/watch?v=g2873J5t4pw). Sem a ciência brasileira, não existem carros movidos a àlcool ou gás natural, com flexibilidade no uso do combustível. Sem a ciência brasileira, não temos liderança na exploração de águas profundas, ou no controle da erradicação de várias doenças tropicais. Como então, me pergunto, nos encontramos na situação absurda de termos governos que parecem declarar guerra ao conhecimento científico? (Gleiser, 2019) 

Olhando retrospectivamente a história do início da ciência, podemos entender um pouco melhor o fato de confissões religiosas e governos terem perseguido ou condenado à morte os precursores do progresso científico. Às vezes, mesmo os mais racionais argumentos não conseguem vencer o fanatismo ou a sede de poder e riquezas.  

(Imagens: fotografias de Mario Giacomelli)

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